O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 8
Capítulo 8




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“ A alma não tem segredo que o comportamento não revele.” – Lao-Tsé.

 

— Lia não foi a primeira que você salvou... ela foi a quarta.

Alexandre achou ter escutado errado.

— Do que você está falando?

Catarina então começou a contar a história.

“ Em casa, somos minha mãe eu e duas irmãs. Recentemente ela se divorciou do meu pai, e enfiou a cabeça cada vez mais no trabalho. Dona Luiza é uma das gerentes das editoras mais conceituadas no país, geralmente eles pegam os títulos mais famosos no mundo e trazem para o Brasil traduzido, só que as vezes, ele lançam originais daqui mesmo e para isso ela comprou uma casa de campo na floresta da princesa com o intuito de analisar os textos.  

“ Para minha mãe ler é um vício, acho que é de família por que eu também adoro, só que com o divórcio ela pareceu ficar mais frenética com isso, e sempre leva dezenas de manuscritos para essa casa a fim de lê-los na calmaria da floresta. Eu gosto de lá, é realmente um belo espaço e a casa é toda feita de madeira vernizada, mamãe não poupou o dinheiro do papai na separação e construiu uma residência típica daqueles folhetos sobre as moradias na Suíça. Enfim, no último fim de semana ela teve de viajar a negócios e eu levei minhas irmãs menores para lá.”

— Não foi para o Beco do Compadre? – perguntou Alexandre.

— Pra quê?  Pra ver os mesmo rostos que vejo todo dia nas aulas, só que agora mais desagradáveis por causa da bebida? Não, prefiro ir ler na cabana no meio da floresta. É um lugar ruim de chegar, são 42 km por uma estrada de pedra no meio das árvores. Papai me ensinou a dirigir embora ainda não tenha carteira, daí coloquei minhas irmãs mais novas no carro e fomos.

A expressão do rosto de Catarina escureceu.

— Sabia que os noticiários só falavam da queimada? Do fogo bizarro que tomou conta da vegetação? Ninguém mencionou os tremores.

— Tremores?

— Sim – disse ela lembrando-se – começou com tremores. Senti o chão vibrar como se um gigante estivesse pisando com dificuldade sobre o solo. Assustada, chame Isis e Brena para meu quarto na cabana esperando que aquilo parasse. Bom – ela arfou – parou. Só que em questão de segundos veio as chamas iluminando a noite escura trazendo um calor surreal. Corremos para fora em direção ao carro quando as árvores começaram a desabar, seus troncos cedendo ao poder do fogo. Uma delas caiu sobre o carro e no desespero eu tive de tomar uma decisão: pedir ajuda e esperar ou correr com minhas irmãs pela estrada a fim de tentar escapar daquele inferno.

Catarina fitou Alexandre no fundo de seus olhos.

— Quando a fumaça começou a ficar densa, parte de mim sabia que morreríamos se ficássemos aguardando ajuda, por isso corremos. Só que... não fomos muito longe. Estava quente, tinha muitas cinzas... Isis só tem sete anos, ela não aguentaria... e não aguentou. Quando minha irmãzinha desmaiou eu a peguei e continuamos a correr, embora eu não tivesse certeza se ela estava viva ou não... droga, nunca me senti tão assustada!

A moça respirou fundo olhando para cima.  

— Foi então que outra árvore em chamas caiu, desta vez bem no meio da estrada bloqueando nosso caminho. Puxei Brena para junto de mim e abracei-as numa inútil tentativa de protegê-las.

  Catarina volta a encarar Alexandre.

— Foi quando você surgiu. Vindo do meio do fogo, da fumaça ou da escuridão... sei lá da onde você apareceu. Simplesmente estava ali diante de nós. As roupas em frangalhos todo sujo de fuligem com os cabelos um bagaço, nossa senhora, você sangrava demais a ponto de escorrer por seus braços e pingar da ponta dos dedos; uma parte da minha mente queria saber por que diabos você estava ali e todo arregaçado só que eu estava aterrorizada demais para me importar com detalhes.

A colega de classe parou de falar apenas olhando Alexandre.

— Não se lembra disso?

— Não. Nadinha. O que houve depois?

Atordoada, Catarina continuou:

— Você levou uma mão a cabeça, nos olhou com uma expressão confusa e disse: “ vocês estão me atrapalhando, desapareçam daqui.

— O quê? – agora o rapaz estava surpreso.

— Eu mesma achei ter escutado errado. Cansada, assustada, respirando fumaça e suando horrores pelo calor excessivo não pensei muito, apenas me ergui num salto e gritei: “ É retardado por acaso!? Não estamos aqui por que queremos, temos que ir embora agora!” e você manteve a expressão serena e boba, parecia que a devastação ao nosso redor não era nada, sequer a percebia.

Certo, se vocês morrerem me causarão mais problemas. Vou tirá-las daqui.”

— Você pegou Isis a jogou por cima de um ombro, depois fez o mesmo com Brena a erguendo sobre o outro ombro e disse para segui-lo. Desatamos a correr no meio da fumaça. Na hora não pensava em nada, apenas acompanhava sua corrida rezando para que estivesse indo para um lugar seguro. – Catarina sorriu – e confesso que foi impressionante, mesmo carregando minhas duas irmãs quase não consegui alcança-lo.

— E então?

A colega de classe esticou os braços estralando os dedos.

— Você nos guiou para uma das extremidades da floresta, direto naquele rochedo de pedras cinzas, dali descia uma estradinha com degraus cimentado bem estreita que terminava num dos bairros da cidade. Assim que chegamos à borda, soltou minhas irmãs, mas Isis não estava consciente e eu estava aflita como nunca.

Alexandre hesitou em perguntar:

— Ela... ela...?

— Morreu? Não. – respondeu Catarina com alívio no tom de voz por causa das lembranças – nossa... realmente não se lembra de nada mesmo? Ao deixar minha irmãzinha no chão perto da escada você pôs a mão esquerda no peito dela e fez uma pressão forte; do nada Isis recobrou a consciência tossindo vorazmente.

Alexandre escutava a garota ao seu lado sem entender nada. Não é possível que tenha feito todas aquelas coisas e esquecido... como pode? Catarina também não parecia estar inventando nem tirando com sua cara. E pela primeira vez desde que as mudanças ocorreram Alexandre sentiu-se incomodado, receoso, temeroso pelo que estava havendo.

— Depois – continuou ela – você olhou para o horizonte da cidade e em seguida para a floresta que ardia ao fundo, nos encarou com a mesma, puta que pariu viu, com a mesma expressão! Sequer ostentou qualquer emoção apesar das circunstancias surreais.

Catarina voltou a estralar os dedos.

— “agora sumam” disse você no mesmo tom monótono e tedioso. E quando fez menção de correr de volta para a floresta eu gritei perguntando: “Aonde você vai?”.

— E? – Alexandre não suportava o suspense.

Ela balançou a cabeça.

— Você só disse: “Ainda não está acabado.” E desapareceu no meio da mata.

***

O delegado Mendes estava tendo uma terrível dor de cabeça. A cerveja com certeza é amiga do homem e grande cola da sociedade, com o álcool mulheres feias ficam bonitas. Pessoas chatas, interessantes. Problemas do trabalho, irrelevantes. Sogras, novas mães.

O problema de algo tão bom é a ressaca. Agora o policial encarregado da 7°DP estava fechado em sua sala com a cabeça apoiada na mesa fria por causa do ar condicionado, as cortinas estava fechadas e as luzes desligadas mesmo estando no meio do expediente. No dia anterior tinha ido ter uma conversa com a ex juíza Gertrudes a respeito do cadáver na floresta onde supostamente a única testemunha era seu netinho querido. Mendes não era idiota, ele sabia que Alexandre era menor de idade com uma avó influente e isso significava que não iria preso. Reformatório? Rá! No máximo  responderia um pequeno processo que “milagrosamente” não iria para frente e com o tempo ele desapareceria dos autos da justiça mostrando que o nobre netinho de Gertrudes nunca fez nada contra a lei em toda sua vida.

O delegado sabia como as coisas funcionavam e mesmo que um ou dois assassinos escapam, a grande maioria vai em cana, nesse caso em especial ele nem queria condenar Alexandre, não era uma briga que estaria disposto a travar em nome de um indigente. Mas como ser humano e policial, ao menos ele devia a verdade aos familiares do cadáver – que ainda não apareceram – por este motivo teve uma conversa bem problemática com a velhota que ao “cheirar” que o delegado queria insinuar o envolvimento de Alexandre com o corpo, se pôs em guarda com leis, textos constitucionais, nomes de amigos de peso, ameaças e por aí foi.

Ele não desistiria é claro, mas teria que pensar numa nova abordagem.

De repente a luz de sua sala foi ligada, e sentindo como se fosse a morte de uma estrela  a claridade entrou em seus olhos provocando uma supernova em seu crânio; o delegado já ergueu a cabeça com o braço sobre as vistas.

— Lolita sua maldita, eu já falei que não quero interru-

Mendes parou de falar ao ver o sujeito parado ao lado da porta perto do interruptor.

— Ah... desculpe, achei que fosse minha secretária. Digo – ele teve de piscar várias vezes para entender por que um estranho tinha entrado tão casualmente em sua sala. – hã... em que posso ajudar?

— Você vai receber um telefonema em alguns segundos. – respondeu o estranho.

Mendes voltou a piscar várias vezes baixando o braço. O estranho deveria ter quase dois metros de altura, estava usando uma jaqueta de couro preta sobre uma camisa branca, calças de couro preta e botas de igual cor, tinha um rosto quadrado com barba loira por fazer e ostentava uma expressão séria.

— Ah...ah... arrã, ok, tá bom. E você é...? Nostradamus ou o exterminador do futuro? Esse visual Arnold Schwarzenegger tá meio passado não? Sem contar que usar jaqueta de couro no final da primavera perto do verão... uau. Você gosta do calor.

Foi então que o telefone tocou. Mendes focou no aparelho sobre a mesa e depois para o estranho, e sem tirar os olhos do sujeito; atendeu.

— Aristóteles?

 Era a voz do superintendente, seu superior. O único que Mendes não socava por usar seu primeiro nome, ele odiava esse nome.

— Senhor. – respondeu Mendes.

— Você tem uma lista das pessoas desaparecidas que possam vir a ser o corpo que foi encontrado na floresta, certo? Entregue para o homem a sua frente.

Antes do delegado protestar o fone ficou mudo. Sim, ele tinha uma lista por que estava trabalhando no caso, um caso simples. Ele tinha um defunto sem nome, e existem pessoas que desapareceram na cidade ao longo de certo tempo... é só somar dois mais dois e rezar pra não dar cinco.

— Hã... – ele fitou o exterminador do futuro – você é parente de alguns dos sumidos? Por que se for eu tenho um presunto que precisa de parentes para reconhecê-lo.

— A lista, por favor Aristóteles.

Mendes tamborilou os dedos sobre a mesa. Sua ressaca diminuía seu humor consideravelmente para um cretino que acha que é a mãe diná chama-lo de Aristóteles e ainda lhe dar ordens.

— Posso saber o que vai fazer com ela?

— Primeiro a lista.

Mendes tirou-a de uma gaveta e esticou o braço. Não ia dar o luxo de se levantar para entregar ao metidinho de merda que acha que pode fazer o que quiser na sua delegacia. Nostradamus a apanhou e leu os nomes.

— Nove possíveis. – disse ele com os olhos no papel – vai ser mais rápido do que eu pensava.

— O que vai fazer? Investigar por conta própria?

O estranho amaçou o papel formando uma bolinha minúscula na mão e encarou o delegado.

— Interrompa as investigações.

Mendes limpou a garganta e se levantou devagar da cadeira. O desgraçado estava realmente querendo que o delegado testasse se debaixo da carne havia um esqueleto de metal, só precisaria de um tiro para ter certeza.

— Vou interromper é o caralho. O que pensa que vai fazer? E quem diabos é você?

— Quem eu sou não importa. O que vou fazer? Vou encontrar o responsável e vou matá-lo antes que seja tarde. Seja um bom guardinha e obedeça a seus superiores... – seu tom ficou mais grosso e sombrio –  e não se envolva nisso.

O exterminador do futuro jogou a bolinha amaçada sobre a mesa do delegado e se foi fechando a porta atrás dele.


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