O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 4
Capítulo 4




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“O inferno são os outros.” – Sartre.

Uma semana antes do incêndio.

O ser humano tem uma tendência natural de querer compartilhar o que lhe faz feliz ou o que acha interessante, embora esse sentimento nasça de um pingo do ego em querer ser reconhecido como aquele ou aquela que trouxe felicidade a alguém. Imagine isso: Você assistiu um vídeo do youtube e riu tanto que chorou, imediatamente quer mostrar o mesmo conteúdo para seu amigo, irmão ou colega e quando o mesmo assisti não dá uma risada sequer.

O sentimento de frustração é inevitável, correto? O mesmo se aplica para quando encontra um tema que te chama tanto a atenção que a admiração não pode ser contida, talvez sobre buracos negros ou sobre o funcionamento do cérebro ou quanto tempo durou a guerra dos 100 anos, mas quando mostra a outra pessoa, não há qualquer reação ou pior, ela acha o assunto tedioso.

Um segundo exemplo: quando você ouve uma piada incrível e conta para alguém e essa mesma pessoa ri tanto quanto você, o sentimento de satisfação é poderoso e a felicidade durante aqueles poucos segundos é ótima. Você é alguém que traz felicidade, os outros querem você por perto e isso leva a uma massagem excelente no ego. Sua autoconfiança sobe, há uma emoção tão sublime que sua mente e corpo parecem leves, relaxados.

E você descobre querer mais daquilo. Como um remédio controlado ou uma droga mais leve, se não houver um autocontrole... causa dependência e desta dependência vem consequências terríveis.

Passamos a medir nosso próprio valor baseado na aceitação de terceiros.

E Alexandre cometeu esse erro ou, se tornou viciado na droga da “atenção” ao fazer piadinhas sobre tudo e todos se vangloriando pelas risadas e sentimentos efêmeros de satisfação à custa da vergonha alheia. Como alguém mimado cujo universo gira em torno do próprio umbigo, o adolescente não reparava nos pontos negativos de suas “brincadeiras” onde aos poucos fora se isolando sem perceber.

E o choque da realidade veio justamente das palavras de Suzane e do afastamento de Estevão. Com os olhos abertos agora e a autoconfiança destruída, Alexandre percebeu em todos os níveis quanto estava sozinho, na escola seus conhecidos desconversavam com ele rapidamente, em sua sala os colegas se limitavam a um sorriso forçado de educação e logo puxavam assunto com outra pessoa.

Nos dias seguintes o mesmo padrão se repetia, e o vazio em seu peito se espalhava ameaçando suga-lo para uma região escura de sentimentos ruins de solidão, ódio, tristeza e ansiedade.

— Nossa, garoto! Parece que seu quarto sofreu um terremoto.

Reclamou Brena, a diarista que três vezes por semana limpava a casa de Getrudes. Alexandre não ligava para ela, nem tinha qualquer apreço por organização. Roupas sujas se misturavam as limpas no chão do cômodo, os aparelhos de videogames com dezenas de jogos amontoavam-se junto com os sapatos perto da televisão, papéis de salgadinhos e doces ficavam sempre a borda da lata de lixo ou perto dela, como se um péssimo jogador de basquete estivesse praticando com o próprio lanche. A cama era um redemoinho de lençóis formando uma espécie de gruta mágica com um interior tenebroso.

O neto de Gertrudes estava na sacada de seu quarto com os olhos fixados no celular não dando a mínima para as reclamações da mulher, afinal ela era paga para limpar. Na tela do aparelho, alguns grupos do zap o tinham simplesmente excluído sem qualquer aviso, Estevão sequer visualizava mais suas mensagens.

A frustração é um sentimento perigoso, ela é a porta para a raiva; a raiva um caminho para o rancor e como um Pokémon que evoluí, o rancor se torna o ódio impensado. Mais forte, resistente e perigoso.

Finalmente, Alexandre passou uma mensagem para Suzane. Ela era do mesmo ano, mas de classe diferente de modo que parecia ser a única que não o evitava.

— O povo meio que cansou das suas graças.

Foi a resposta de Suzane, novamente sendo mais direta que podia. Basicamente haviam decidido que Alexandre era um tipo de pessoa que deveria se evitar, alguém que envergonha pessoas alheias só para chamar atenção, uma espécie de pessoa nociva que abre as portas para o bullyng que arruína vidas sem qualquer pudor.

É claro, Alexandre não entendia a razão de todo o ódio contra sua pessoa, como alguém cego para si mesmo o garoto só via razões de “inveja” dos demais e nunca a culpa sobre ele próprio, mesmo assim ser evitado era algo que o estava deixando verdadeiramente irritado, ainda mais porque julgava ser inocente de tal tratamento que lhe impuseram. Logo, em vez de buscar uma solução pacífica ou no mínimo inteligente para livrar-se do isolamento... o garoto decidiu atacar a fonte de tudo aquilo.

Por causa do merdinha engomado do Aegon isso está acontecendo!” eram seus pensamentos “quem aquele metido pensa que é?”. E tais pensamentos levam a uma decisão errada que levou a outra decisão errada que culminou em Alexandre sentindo as dores no peito e no abdômen; o gosto de ferro do sangramento de sua boca o estava deixando enjoado. A agonia da falta de ar pelo último golpe que recebeu o forçou a ficar de quatro deixando a baba avermelhada sair de sua boca caindo no chão de cascalho do terreno baldio cinco quadras do colégio.

A dor é algo engraçado, ela é capaz de trazer um ódio ainda maior que nubla completamente a razão, ou é capaz de elevar a lucidez para perceber o erro terrível em que a mente idiota submeteu o corpo. Para Alexandre agora, era o segundo caso.

— Já chega, não acha? – perguntou Aegon de pé perto dele.

Com lágrimas de raiva e tristeza pelo orgulho ferido, o neto de Gertrudes ergueu a cabeça para fitar o metido que estendia a mão para ele.

— Não perca seu tempo Aegon! – disse um dos amigos na multidão – esse merda aí não merece nem sua pena.

Aegon virou o rosto na direção do pessoal que veio junto para acompanhar a briga.

— Calem a boca vocês – repreendeu o garoto loiro – só aceitei esse circo para pormos um fim a tudo isso.

Aegon voltou a fitar Alexandre.

— Não importa como olhe, violência nunca leva a nada. Ainda sim, você ignorou meus avisos, ignorou meus conselhos e fez de mim o vilão por seus próprios atos e agora está aí no chão. Essa dor física que sente é um mínimo comparado ao dano psicológico que você causa com suas graças, Alexandre.

Sim. Escolhas erradas. Alexandre decidiu atacar Aegon de uma maneira indireta, caçoando dele em vários grupos, espalhando rumores estranhos sempre à surdina; o problema de atacar alguém que é admirado e respeitado é que as pessoas não acreditarão nas fofocas, pelo contrário, terão raiva de quem as está espalhando, assim foi só questão de tempo até descobrirem quem era o responsável.

Os amigos de Aegon queriam dar uma surra em Alexandre, mas o garoto não deixou. Seria covardia, assim se o neto de Getrudes tinha rancor contra o garoto dos olhos azuis que eles resolvessem isso de uma vez por todas num combate um a um. Para o azar de Alexandre, o “certinho” tinha conhecimento de jiu-jitsu.

Enfurecido e envergonhado o rapaz se ergueu ignorando a mão estendida do colega de classe e segurando as lágrimas saiu correndo do terreno baldio ao som de vaias e risadas de mais de dez alunos que testemunharam em primeira mão um covarde fugir com o rabo entre as pernas.

***

Agora, após três dias descansando em casa com os dois braços enfaixados, Alexandre retorna para a escola onde os que não o odeiam, o ignoram. Porém, desta vez o rapaz não sentia o mesmo peso em suas emoções como antes, não havia mais aquele buraco que parecia sugar todo a sua felicidade quando alguém apontava em sua direção e ria. Os alunos ainda o encaravam e os comentários de como era um bebê chorão e medroso só não eram superiores ao incêndio que cobriu quase toda a cidade com fumaça.

Algo havia mudado em seu âmago, Alexandre sentia; só não sabia o quê.

Tais mudanças em seu interior logo emergiriam em violência e sangue revelando para o rapaz que o problema não são as pessoas, nunca foram, e sim os demônios que vivem dentro de cada uma delas.

***

Na 7° DP o delegado Mendes fica girando em sua cadeira de couro negro novinha que comprou numa promoção. Sozinho em sua sala ele passa o tempo de modo infantil como com a cadeira ou com as bolas prateadas onde você bate em uma da extremidade e a da outra ponta que balança, além de uma pequena caixinha de areia sobre a mesa com um rastelo minúsculo que só serve para ficar alisando – dizem que é terapêutico. Mendes faz só por que gosta.  Como uma criança, o agente da polícia se deliciava  nesses pequenos prazeres. No entanto, dessa vez ele girava e girava na cadeira tentando juntar os fatos e esquecer a conclusão em que eles chegavam.

— O que está fazendo?

Soou a voz da colega Clarisse bem à porta.

Mendes para de dar voltas em si mesmo e olha para a mulher.

— Estou me elucidando.

Ela franze o cenho entra na sala e joga uma pilha de papéis sobre a mesa do delegado.

— O que foi dessa vez? Sua namorada descobriu sobre sua outra namorada?

— Uhum... mas isso foi semana passada, hoje as duas são amigas e me odeiam. – Mendes pega o rastelinho – só que agora estou mais preocupado com o telefonema do legista.

— Sobre cadáver no meio da floresta que pegou fogo?

— Uhum.

Mendes continua passar o rastelo pela caixinha de areia imerso em pensamentos. Clarisse puxa a cadeira e se senta bem a frente do colega.

— Então? Descobriu quem é?

— Não. – seus olhos só focam na caixinha – o corpo ficou tão tostado que está irreconhecível, as digitais também já eram. Resta tirar um raio-x da arcada dentária e tentar descobrir quem é o dentista para nos dizer o nome do nosso amigo bem passado.

— Então por que essa cara de quem vai no aniversário da sogra?

Mendes olha para Clarisse, larga o rastelo e se endireita na cadeira giratória.

— O guarda florestal que achou o cadáver disse que viu um garoto ajoelhado ao lado dele no meio do incêndio e daquela fumaça. Obviamente dos moleques sem ter muito o que fazer ficam perambulando pela mata quando o fogo se alastra, tudo normal, não é?

— Sim, e daí?

Mendes trava a mandíbula.

— O legista me informou também que a causa da morte do nosso desconhecido não foram as queimaduras nem crise respiratória pelo excesso de gás carbônico. Ele foi assassinado. Havia várias perfurações no tronco e nos braços feita por uma faca alongada... talvez uma lâmina extensa.

A notícia surpreendeu Clarisse.

— Ótimo, chame o garoto que estava junto para depor.

Mendes bufou.

— Já pensou que é uma má ideia você perturbar um ninho de vespas usando seu próprio pau?

— Do que está falando?

— O garoto, a testemunha ou o principal suspeito no caso, se chama Alexandre Henrique Carvalho .

— E?

— Ele é o neto único de Gertrudes Sousa Carvalho.

Agora Clarisse entendeu a metáfora sobre perturbar um ninho de vespas. A velha é uma juíza aposentada, mas detém de todos os contatos e prestígio de uma carreira implacável; há pouco mais de uma década perdeu seu único filho e nora num acidente tendo que cuidar do neto, o último resquício que sobrou de sua família.

Na primeira menção que fizerem sobre o caso irão liberar a ira de uma pessoa problemática que defenderá o neto com unhas, dentes, o poder da lei e da influência.

— O que vai fazer? – perguntou Clarisse.

Mendes respirou fundo.

— Vou me preparar para entrar no inferno e enfrentar a diaba velha em nome de um maldito que nem sei o nome nem o rosto.  


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