O abismo em todos nós. escrita por Ninguém


Capítulo 3
Capítulo 3




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/740156/chapter/3

“Solidão não é estar só, é estar vazio.” – Sêneca

Com o susto, o rapaz virou a cabeça na direção do som e seu olhar testemunhou a vinda de algo permeando as chamas enquanto avançava pela fumaça que se rebelava contra o invasor abrindo espaço em minúsculos redemoinhos.

Ao ver o que era, Alexandre fechou os olhos piscando várias vezes para testemunhar um homem da guarda florestal todo equipado com uma capa laminada para se proteger do calor  e uma máscara de oxigênio por causa da densa fumaça tentando falar com a voz abafada e energética pelo desespero.

— Garoto! Garoto! Consegue me entender!? Ow!

Alexandre o entendia, o adolescente sabia que estava no meio da floresta dos pinheiros da princesa, um amontoado verde que subia a colina da montanha que circundava a cidade. Não se lembrava de como havia ido parar ali, nem a causa do incêndio, mas compreendia a situação, por isso se levantou com a ajuda do homem e apontou para o cadáver. O guarda florestal testemunhou o corpo por alguns momentos até puxar Alexandre pelo braço para longe dali.

— As chamas não foram contidas ainda! – gritava o mascarado – vou notificar que há vitimas nesse setor, só que por enquanto tenho que tirar você daqui! Consegue respirar?

Alexandre só acenou com a cabeça dizendo que sim, e aos trancos e barrancos foi sendo puxado para longe do indigente que jazia naquele chão em cinzas, e conforme se distanciava tudo foi desaparecendo em meio a neblina de fumaça que se apoderava cada vez mais do ambiente.

***

O incêndio foi contido em um dia. O rapaz fora resgatado e levado para a central da guarda florestal onde de lá foi direto para o hospital, sua avó Gertrudes devidamente avisada chegou para auxiliar o neto em poucos minutos. Alexandre foi banhado para se livrar da fuligem e das cinzas depois posto numa mesa cirúrgica, sentado nu só com um avental branco de bolinhas azuis para cobri-lo enquanto o médico e uma enfermeira lhe faziam perguntas em meio ao atendimento; o rapaz nada respondia, parecia absorto à realidade.

Sua mente tinha sido de algum modo anestesiada, tinha noção dos acontecimentos a sua volta, mas não se importava nem um pouco, era como se as pessoas falassem dentro de um globo de vidro onde seus ouvidos só reconheciam chiados e esses chiados eram chatos e sem importância.

Finalmente sua avó pôs a mão em seu ombro e ele encarou os olhos cansados e o rosto enrugado de uma senhora de quase sessenta e cinco anos, Gertrudes era do tipo de mulher orgulhosa que reconhecia que estava velha, mas jamais admitiria que os outros reconhecessem também. Alexandre a tolerava, mas não respeitava. Para ele, ela era só uma idosa que não entendia nada de sua vida, mas como pagava suas contas e lhe dava dinheiro o mínimo que poderia era mostrar tolerância e não discutir com Gertrudes.

Agora, porém, o descaso de sempre sumira. O par de olhos castanhos cansados e preocupados o fitava e Alexandre não sentia nada.

— Alexandre... explique pra mim... o que houve? Por que diabos você estava no meio da mata!?

O garoto não pronunciou uma palavra, só encarou o rosto da avó por um segundo e desviou o olhar para a janela.

— Alexandre! – Gertrudes o pegou nos ombros forçando-o a olhá-la – o que aconteceu? Onde conseguiu esses cortes?

Sem entender o que a mulher quase chorando falava, ele ergueu os braços e viu inúmeros cortes finos e avermelhados de não mais de que uns dois centímetros de comprimento, alguns tiveram que levar pontos do médico sendo que o rapaz nem notou quando foram feitos.

Seguindo o rastro dos ferimentos, o adolescente puxou a gola do avental e viu que boa parte do tronco estava tomado pelos mesmas lesões pequenas. E aquilo chamou sua atenção, quando tinha se machucado daquela maneira?

— Todos os cortes – disse o médico de pé ao lado da idosa – são do mesmo tamanho e bem recentes... uns mais fundos que outros ainda sim quando o trouxeram pensei que se tratasse de algum espinho de uma moita ou que houvesse sido atacado por um animal. Confesso que esperava alguma queimadura, mas não há nenhuma. Ele estava empapado de sangue por causa das finas aberturas no tecido muscular e não mostrou qualquer problema respiratório por aspirar a fumaça.

O garoto soltou a gola do avental, olhou para a avó e depois para o médico esperando que alguém dissesse o que havia acontecido com ele quando na verdade era o doutor e a juíza quem queriam as respostas.

— Ontem de manhã – disse Gertrudes – você saiu de casa perfeitinho, disse que ia para aquele maldito Beco do Compadre numa festa com os amigos e não voltou pra casa de noite. Alexandre – Gertrudes foi mais incisiva – o que houve nesse meio tempo de só um dia!?

Tentando puxar da memória os eventos do dia anterior, Alexandre teve o vislumbre de alguém... não conseguia se lembrar do rosto, mas sabia que tinha conversado com essa pessoa, eles se falaram ao lado da pista que sobe a montanha em direção ao Beco do Compadre. Sim... ele se lembrava disso, diante dos dois o penhasco de vinte metros com o horizonte da floresta imersa em trevas pela noite escura de lua nova preenchia o cenário solitário e vazio.

Quanto mais o garoto tentava lembrar mais as memórias pareciam fugir, até que finalmente veio uma frase. Aquiles contemplava a escuridão sentindo o frio da umidade que subia da floresta, quando atormentado por seus sentimentos conflitantes, ouviu a voz da pessoa estranha perguntar:

Então... quem você realmente quer matar


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O abismo em todos nós." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.