Retrato em branco e preto escrita por The Escapist


Capítulo 1
Retrato em branco e preto


Notas iniciais do capítulo

A música:

https://www.youtube.com/watch?v=2FXCqShD3Eg

Boa leitura xD



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/739957/chapter/1

Cris entrou no apartamento e o encontrou mergulhado em silêncio e escuridão. Sem fazer barulho, ela fechou a porta atrás de si, depois deixou a bolsa e o jaleco em cima do sofá. Nico, o gato siamês de quatro anos, estava deitado ali e se espreguiçou, ergueu a cabeça por breves segundos, depois deu dois giros e voltou a se deitar. Nico não estava a fim de conversar, e provavelmente não era o único.

Olhou brevemente para a sala de jantar, onde a mesa ainda estava posta. Imaginou a comida jogada no cesto da cozinha e suspirou. Foi caminhando em direção ao quarto, já abrindo os botões da blusa e sonhando com um banho quente e uma massagem nos pés. Teria o banho, mas duvidava que estivesse em condições de ao menos pedir por uma massagem.

— Oi... — falou assim que entrou. Foi largando a blusa em cima da poltrona, soltou os cabelos e retirou os sapatos.

Alana estava sentada na cama, com as costas escoradas à grade, usando seu pijama do Mickey, um livro aberto e cara de poucos amigos.

— Olha, eu sei você está chateada... Sinto muito. Tive um contratempo, era uma emergência, não foi de propósito, você sabe disso. Você poderia olhar pra mim e parar de me ignorar? Poxa vida, Alana, isso é tão infantil.

— Quinta vez — Alana disse. Ela fechou o livro com tanta força que Cris sobressaltou-se. — Não uma, nem duas, Cris, cinco. Cinco malditas vezes que você teve um contratempo.

— Eu...

— Quer saber, não tô a fim de conversar, ok? Já tô de saco cheio das suas desculpas.

— Minhas desculpas? — Cris irritou-se. Claro que a entendia por ficar chateada, mas acusá-la de inventar desculpas era ir além da infantilidade normal com a qual já estava acostumada. — Meu trabalho não é uma desculpa. Havia uma emergência, não podia deixar um paciente morrer só pra satisfazer suas vontades.

— Claro que não! Porque eu nunca seria sua prioridade, certo?

— Você está sendo ridícula, Alana!

— E você não é a única médica naquele maldito hospital, é? Ao menos admita que você sempre me deixa em segundo plano! Quando não é o seu trabalho, é o seu filho, e eu... Sou apenas alguém que pode ser dispensada, reagendada, sempre. Às vezes, eu me pergunto o que tô fazendo aqui? O que eu sou pra você, Cris? Sabe o que é pior? É que eu fico pensando nos meus relacionamentos passados, como se estivesse revivendo tudo, e não é isso que eu quero pra minha vida.

Cris abriu a boca, mas ficou sem palavras. De todas as vezes que haviam discutido, nunca tinha visto Alana tão magoada. A sensação que aquelas palavras causavam não era nada boa.

— Você não está sendo justa comigo.

— Olha, eu falei que não queria conversar... Não quero. — Alana levantou-se da cama e procurou pelas pantufas, enfiando-as nos pés e se atrapalhando no processo.

— Alana, não faz isso — Cris pediu, mas não houve volta. Alana saiu do quarto e bateu a porta com violência atrás de si.

Tinha duas alternativas: ir atrás dela e tentar acertas as coisas logo, ou deixá-la se acalmar. Optou por esperar que a poeira baixasse; conhecia-a o suficiente para saber que, às vezes, era inútil insistir.

Foi para o banheiro e demorou mais do que o necessário embaixo do chuveiro. Ela até queria se sentir culpada, mas não era assim que via as coisas. Passara as últimas dez horas dentro de uma sala de cirurgia operando o coração de um homem que dentro de algumas semanas voltaria para a família. Se aquilo era colocar sua namorada em segundo plano, bem, teria que conviver com isso.

Naquela noite, Alana não voltou para a cama e, ao acordar no dia seguinte, Cris não a encontrou em casa. Ela havia deixado água e comida suficientes para Nico, mas nenhum recado para a namorada. Era exatamente o tipo de birra para a qual Cris não tinha muita paciência, por isso resolveu que não daria mais importância do que o caso merecia. Alana precisava amadurecer e confiar que a integridade daquele relacionamento não estava condicionada a jantarzinhos românticos. O que havia entre elas era mais do que isso. Ou pelo menos deveria ser.

Como acordara cedo, resolveu ficar mais alguns minutos na cama. Pegou o celular e checou as mensagens, talvez com alguma esperança de que Alana tivesse pensado melhor e mandado um bom dia cheio de emoticons. Contudo, só encontrou as frases motivacionais que suas tias enviavam para o grupo da família no WhatsApp.

Nesse meio tempo, Nico entrou no quarto e pulou na cama, aninhando-se ao seu lado, todo dengoso. Pelo menos ele já havia feito as pazes, ela pensou, acariciando o pelo do gato.

— Você sabe que ela está exagerando, não é, Nico? Quer dizer, se fosse o contrário, eu entenderia.

Nico soltou um miado fraco, que tanto poderia ser concordando ou criticando-a. Não tinha como saber. Depois de mais alguns minutos gastos aleatoriamente passando a vista pelo Facebook, Cris levantou e se arrumou para ir trabalhar.

Não costumava tomar café, pois tinha pouco apetite pela manhã, mas foi à cozinha a fim de tomar um copo d’água. O jantar que Alana havia preparado estava na lixeira. Balançou a cabeça, com pesar. Em primeiro lugar, jogar comida fora era um desperdício, e segundo, deixar a lixeira cheia daquele jeito não era muito higiênico.

Sem querer, se pegou criticando mentalmente o jeito explosivo de Alana. Ela sempre metia os pés pelas mãos, sem pensar direito nas consequências. Aquele jantar poderia ser uma metáfora para o relacionamento delas — Alana seria capaz de abrir mão dele por causa de uma bobagem.

Apesar de não se sentir culpada por nada, não pôde evitar passar o dia inteiro pensando na namorada. Mesmo ocupada entre um paciente e outro, de vez em quando pegava o celular para checar se não havia uma mensagem. Por mais de uma vez, começou a escrever algo, mas acabava desistindo de enviar. Assim, não voltaram a se ver até à noite.

Quando Cris chegou, Alana estava na cozinha preparando um sanduíche para jantar. Apenas ergueu os olhos por breves segundos para a namorada e, sem nem mesmo cumprimentá-la, voltou a atenção à sua tarefa.

— É sério que você vai me ignorar? — perguntou e, como se fosse uma questão retórica, a resposta de Alana foi o silêncio. — Poxa vida, Alana! E tô tentando conversar com você!

— Você não está tentando, Cris, esse é o problema. Você só quer varrer isso pra debaixo do tapete e continuar fingindo que está tudo bem entre nós. Só que não está. E eu tô cansada.

— Olha, entendo que você fique chateada, não concordo com suas razões, mas te entendo, só que você está exagerando. Nós vamos ter outros anos pra comemorar nosso aniversário....

Alana a interrompeu com um risinho carregado de cinismo. Tinha acabado de preparar o sanduíche, mas percebeu que seu apetite havia desaparecido.

— Você não entende nada mesmo — resmungou, enquanto pegava uma jarra de suco na geladeira e servia um copo para si.

Estava cansada daquele eterno dilema: sempre iria cobrar de Cris mais do que ela estava disposta a dar. Quando a conhecera, aquele jeito prático de enxergar o mundo era um charme, mas depois de um tempo, ficara cansativo ter que mendigar pela atenção dela. Chegava mesmo a duvidar da reciprocidade dos sentimentos. Era difícil estar em um relacionamento e não se sentir parte dele, e sua namorada parecia incapaz de entender isso.

— Talvez a gente precise dar um tempo... — disse finalmente, ainda encarando o jantar e sentindo o estômago embrulhado. Sendo a pessoa que ouvira aquela frase em todos os relacionamentos anteriores, não se sentia confortável em dizê-la. “Dar um tempo” era o tipo de eufemismo ridículo para uma situação sem saída.

— Do que você tá falando?

Cris tentou reagir, mas naquele mesmo instante, seu celular tocou. O timing era horrível, e largar a conversa no meio para atender outra pessoa não ajudaria em nada, porém, reconheceu o toque e o nome de Murilo no visor, assim, não pôde ignorá-lo.

— Oi, ahm, aconteceu alguma coisa? — perguntou logo, já que ele não costumava ligar no meio da semana.

Oi, Cris, tudo bem? Não aconteceu nada. Só liguei pra dizer ‘oi’.

— Fala sério, Murilo.

— Ei, tá tudo bem aí? — Ela fechou os olhos por um instante. Murilo reconhecia qualquer alteração em seu tom de voz mesmo à distância. Às vezes, saber que havia alguém que a conhecia de tal forma era assustador. — Cris?

— Tô bem. Então, o que você queria mesmo? — Tentou soar o mais despreocupada possível.

O Théo pediu pra falar com você. Acho que é importante.

— Aconteceu alguma coisa com ele?

— Ele mesmo vai te contar.

Houve um instante de silêncio na linha, logo depois ela ouviu a voz infantil de seu filho de seis anos. Antes de contar a novidade, Théo enrolou um pouco, perguntou como a mãe estava, quis saber de Nico e disse que estava com saudade — Cris o escutava com um sorriso bobo nos lábios; seu filho sempre conseguia lhe arrancar um, mesmo quando as coisas não estavam bem. Se em algum momento de sua vida tivera dúvidas sobre ser mãe, elas já não existiam, porque Théo era um garoto adorável que justificava aquela decisão a cada segundo de sua existência.

Depois de dar várias voltas, Théo finalmente contou a novidade: a fada do dente passara por seu quarto ontem à noite e deixara dinheiro em troca de um de seus dentinhos.

Quando o filho terminou de falar e se despediu, mandando beijos para Alana, Cris ouviu, do outro lado da linha, Murilo pedir o telefone de volta.

Oi.

— Fada do dente, Murilo, sério? — Mesmo sem vê-lo, podia imaginar o sorriso quase infantil dele. — Daqui a pouco você vai falar de cegonha pra ele!

Ah, não, essa parte é você quem vai explicar. — Ele deu uma risadinha; depois de uma pausa, voltou a falar: — Ahm, então, quais são seus planos para o fim de semana?

Cris olhou para Alana, que encarava o sanduíche como se ele fosse culpado pelos problemas por que estavam passando.

— Nenhum, por quê?

— É que eu consegui uma folga amanhã e queria viajar com o Bruno, você sabe, a gente tá fazendo um ano...

Cris pensou no próprio aniversário de namoro e em todas as vezes que já havia cancelado a comemoração. Sabia o que Murilo pediria a seguir e uma parte de si gostaria de dizer não a ele, argumentar que, na verdade, fizera planos com Alana.

Será que você poderia ficar com o Théo?

— Você poderia ter avisado antes.

— Se você não puder, tudo bem, eu cancelo essa viagem.

— Ele pode ficar, sem problemas.

Obrigado, Cris, te amo. Ah, só mais uma coisa: você pode ir pegá-lo na escola amanhã? — Cris rolou os olhos. Às vezes, Murilo tinha uma mania horrível de improvisar. Ele ia fazendo as coisas e esperando que dessem certo. Agora, por causa da falta de planejamento dele, teria que trocar seu horário de trabalho no dia seguinte e o plantão do fim de semana. Felizmente, um de seus colegas devia um favor que ela poderia cobrar.

— Ok, tudo bem. — Além de mais agradecimentos de Murilo, pôde ouvir Théo soltar “obas” de alegria porque passaria o fim de semana com a mãe.

Após desligar o telefone, ela ficou um instante olhando para a tela escura.

— O Théo vai ficar aqui no fim de semana — disse. Em outras circunstâncias, talvez Alana ficasse feliz, ela adorava Théo, mas naquele momento, limitou-se a dar as costas e jogar o prato com o sanduíche quase intocado na pia. — Alana...

— Não acha que é um péssimo momento para o seu filho ficar aqui? Nós estamos no meio de uma crise! — Alana desabafou.

Como alguém que crescera no meio do fogo cruzado dos pais, Cris concordava que ter o filho entre elas naquele momento poderia não ser muito bom para ele, porém, sabia também que seria pior se negar a recebê-lo. Uma coisa era dizer a um adulto que precisaria remarcar um encontro, outra, e bem diferente, era explicar isso a uma criança de seis anos. Só queria que Alana enxergasse isso da mesma maneira.

— Eu estou tentando resolver essa “crise”, mas você não ajuda.

— Não vamos começar com isso de novo, ok?

— x —

Cris estendeu o braço sobre o outro lado da cama, apenas para confirmar que ele continuava vazio. Ouvia o som de passos dentro do quarto e, ao abrir os olhos, viu Alana caminhando de um lado para o outro.

— O que você tá fazendo? — perguntou, sonolenta, ao reparar na mala em cima da cama. A resposta demorou o suficiente para que Cris pensasse que continuaria a ser ignorada.

— Vou ficar na casa dos meus pais esse fim de semana.

— Por quê?

Alana suspirou.

— Você sabe por quê.

— E o que eu vou dizer ao Théo? Ele te adora!

— Não sei.

Cris não soube como reagir. Apenas ficou assistindo enquanto sua namorada terminava de arrumar as coisas. Tentava encontrar a garota por quem se apaixonara e não conseguia enxergá-la. Alana era só mágoa e ressentimento. A sensação que tinha era de que ela estava querendo fazê-la escolher entre o filho e a namorada, e não conseguia se sentir confortável com essa ideia. Não acreditava nesse tipo de amor egoísta.

— Olha, eu... te amo, mas... talvez você esteja certa, a gente devia dar um tempo.

A facilidade com que as palavras deixaram sua boca surpreendeu até a si. Era verdade que amava Alana, mas se não se via insistindo em um relacionamento fadado ao fracasso. Talvez o amor não fosse o bastante para elas.

Alana também estava surpresa. Ficou alguns segundos tentando processar as informações, então fechou a mala, pegou a chave do carro e saiu. Dizer “até logo” naquele momento não parecia adequado e um “adeus” talvez pudesse ser mal interpretado. O silêncio, portanto, fez seu papel.

Cris usou toda sua capacidade de ser objetiva para prosseguir com as atividades normais do seu dia. Foi para o hospital, trabalhou, conversou com Miguel e pediu para que ele assumisse o plantão do fim de semana, visitou o paciente que havia operado no fatídico dia do jantar com Alana — felizmente, ele estava reagindo muito bem à cirurgia —, e no fim da tarde, foi buscar o filho na escola.

Theo mostrou, com orgulho, o sorriso faltando um dentinho na frente. Por mais de uma vez, Cris duvidara da capacidade de Murilo em ser um bom pai, mas o tempo estava provando que ela — e todos que duvidaram — enganara-se. Theo era um garoto feliz, comunicativo, inteligente, e o pai dele tinha todos os méritos por educá-lo bem.

Sete anos atrás, Cris e Murilo eram médicos residentes, além de melhores amigos que se conheciam desde a infância. Ter filhos, ou mesmo um relacionamento, não fazia parte dos planos de nenhum dos dois. Porém, as coisas mudaram de figura quando, o que seria uma brincadeira, resultou numa gravidez.

Agora, toda vez que olhava para Theo, Chris pensava que aquele fora o melhor acidente que poderia ter acontecido em sua vida.

— Cadê a Alana? — Theo perguntou assim que entrou no apartamento.

— Ahm, ela não tá em casa, meu bem. Vai passar o fim de semana fora.

— Por quê? — Cris se abaixou para ficar da altura do garoto e poder olhar para ele do mesmo nível enquanto falava. Detestava mentir para ele, mesmo quando o objetivo da mentira era protegê-lo.

— Ela teve que resolver coisas de gente grande.

Theo balançou a cabeça, como se “coisas de gente grande” encerrasse suas dúvidas.

— Quer dizer que eu não vou ver ela? — concluiu, um pouco decepcionado.

— Dessa vez, não. — Consigo, Cris pensou que talvez Theo não voltasse a ver Alana naquele apartamento. Todas as vezes que ele viesse ficar com a mãe dali para a frente, seriam apenas os dois... Enquanto isso, Theo já estava entretido com a entrada de Nico em cena.

— Nico!

Theo correu para pegar o gato no colo e apertá-lo, e Cris teve que ficar por perto para socorrer caso Nico se enfurecesse, o que não era difícil de acontecer, considerando que ele não era o maior fã de carinho. Enquanto olhava para a bolinha de pelo nos braços do filho, pensava que o fato de Alana tê-lo deixado ali era um bom sinal: ela teria que voltar em algum momento e então conversariam novamente e resolveriam tudo.

O momento da volta de Alana, no entanto, demorou mais do que Cris consideraria normal. Depois de passar todo o fim de semana sozinha com o filho — jogaram videogame, assistiram vários episódios dos Power Ranger, brincaram de acampar —, esperava que Alana voltasse para casa na segunda pela manhã. O que não aconteceu.

Murilo passou no final da tarde de domingo para buscar Theo. Com o rosto corado, esbanjado felicidade (provavelmente o fim de semana romântico tinha valido a pena), ele não deixou de perceber que sua amiga estava quieta demais, até mesmo para os padrões Cris de ser séria.

— Então, quer me contar o que tá acontecendo? — perguntou.

— Não tá acontecendo nada.

— E eu sou o coelhinho da páscoa! Qual é, Chris, vai ficar de segredinho comigo agora?

Bom, se havia alguém com quem poderia conversar e certamente não a julgaria, essa pessoa era Murilo. Todavia, Bruno ficara esperando no carro e ele não era a mais paciente das criaturas.

— Não vai deixar o Bruno esperando, depois a gente conversa.

— Ok. E você, Theo, se comportou bem? — perguntou ao filho, que estava se despedindo de Nico.

— Muito bem — o garoto respondeu e a mãe confirmou com um aceno.

— Então vamos nessa. Cris, me liga pra gente conversar direito, ok?

Murilo e Theo foram embora e ela ficou sozinha com o silêncio do apartamento vazio.

— Você acha que eu devia ligar pra ela? — perguntou a Nico, que se limitou a ignorá-la, girar em volta do próprio eixo e sentar no sofá, como se quisesse dizer que aquele assunto não era com ele. — Mas você tá certo, eu devia mesmo.

Apesar de o gato não ter manifestado nenhuma opinião, Cris se viu pegando o telefone. Ficou olhando para a tela, pensando no que poderia dizer. Um pedido de desculpas parecia-lhe a coisa mais vazia que poderia fazer naquele momento. Talvez devesse ir atrás dela, quem sabe um gesto exagerado e impensado ajudasse. Mas como poderia fazer isso se não tinha nem sequer ideia de onde Alana poderia estar?

Naquele momento, Cris se deu conta que não sabia muito da vida de sua namorada fora daquele apartamento. Ok, sabia onde e em que ela trabalhava, mas tirando isso, não conhecia os amigos dela, tampouco a família — embora Alana a tivesse convidado por mais de uma vez para ir a casa dos pais, Cris nunca aceitara.

Será que Alana estava certa todas as vezes que a acusava de ser indiferente e de colocá-la em segundo plano? Sempre se recusara a aceitar essa acusação, pois apenas se considerava uma pessoa objetiva, pouco propícia a externar emoções de forma intensa. Não conseguia, por exemplo, fazer qualquer demonstração de carinho em público, e não dava importância a datas comemorativas. Por isso, talvez, o aniversário de namoro que era tão importante para Alana, não significasse muito para si. Em sua mente, porém, isso não significava que não se importava com a namorada, apenas que tinha maneiras diferentes de evidenciar isso. Para Cris, amor era algo que não precisava ser expresso por palavras, era uma coisa que as pessoas simplesmente sentiam. Talvez ela estivesse errada, afinal.

            — x —

Alana estava no terceiro shot de tequila. Já fazia tanto tempo que não saía para beber que ainda estava se readaptando à sensação do álcool descendo pela garganta. O celular estava ao lado de sua mão, mas ela já perdera as esperanças de receber alguma chamada. Sabia que Cris não iria ligar, já a conhecia bem o bastante para adivinhar os passos dela, ou melhor, para prever que não haveria nenhum passo. Ela sempre iria preferir a inércia, o “deixa a vida me levar”. Às vezes nem conseguia entender como tinha se envolvido com alguém com tão pouca empatia.

— Empatia — pontuou depois de mais um gole longo. — É isso que falta pra Cris, cara. Ela é egoísta, não se importa comigo nem com o que eu sinto.

— Amor, você sabe que ela é assim desde que a conheceu. — Ouvir o óbvio não era exatamente o que Alana queria, por isso ela fez uma careta para João Pedro, que não se incomodou.

— Isso não torna nada melhor.

— Não, Alana, mas o que eu tô querendo dizer é que você sabia dos defeitos dela desde antes de vocês começarem a ficar, e aceitou tudo mesmo assim. Então…

— Então agora não adianta reclamar, é isso?

João Pedro deu de ombros. Não queria ser a pessoa que atirava verdades inconvenientes na cara da melhor amiga, porém, não conseguia ter a paciência de ouvir Alana reclamar de algo que ela mesma provocara. Lembrava-se muito bem de tê-la avisado, desde o começo, que um relacionamento com Cris estava fadado ao fracasso. Bastava ver como as duas eram diferentes para saber disso. Se Alana tinha ido contra toda a lógica, não fora por falta de aviso.

— Só que o fato de eu saber disso ou mesmo o fato de eu amar a Cris, não quer dizer que tenha que aceitar tudo, né? Eu tenho uma vida, sou um indivíduo independente, um ser pensante…

— Um ser pensante e bêbado! Já chega, você já bebeu demais.

— Me deixa.

— Me deixa nada! Amanhã você vai se arrepender de ter enchido a cara e ainda vai colocar a culpa em mim. — Determinado, João evitou que ela virasse outra dose. — O caso de vocês é simples — disse ele.

— Simples? — Alana até riu da ideia. Não havia nenhuma simplicidade naquele caso.

— Você conhece a Cris, sabe de todos os defeitos dela, sabe que ela não vai mudar, porque vamos combinar, são os defeitos que a tornam uma pessoa diferente de todas as outras. Então você só tem que escolher se quer ou não levar esse relacionamento adiante. Sinto muito, mas a decisão é apenas sua, Alana. Se você decidir que não vale a pena, ela não virá aqui insistir, você sabe disso. Lembre-se que essa não é a primeira vez que vocês terminam.

Alana relembrou todos os términos anteriores, todas as vezes que ela teve que abrir mão do que queria em prol do relacionamento. Porque era sempre a vontade de Cris que prevalecia.

O fato é que havia colocado muitas esperanças naquele relacionamento. Talvez fosse injusto colocar toda a culpa pelo fracasso na namorada. João Pedro estava certo, afinal de contas, ela havia deixado que as coisas seguissem mesmo quando todas as probabilidades diziam que não daria certo.

Conhecera Chris em um momento de fragilidade, tinha acabado de sair de um relacionamento abusivo e ela salvara sua vida, não apenas figurativamente — Cristina era a médica de plantão quando dera entrada no hospital, vítima de agressão do ex-namorado.

— Já te ocorreu que o que você sente por ela talvez seja mais gratidão do que amor? — Joao Pedro arriscou. Ele já havia insinuado aquilo outras vezes, mas escutar com todas as letras deixou Alana assombrada.

— Como alguém poderia confundir duas coisas tão diferentes, cara?

— Ela te ajudou quando você mais precisou…

— Se o que eu sinto é gratidão, qual seria o sentimento dela? Pena?

— Olha, não quero confundir ainda mais a sua cabeça, ok? Você precisa pensar, pensar com calma, no futuro da sua relação. Falo sério quando digo que você é a única que pode decidir o que vai acontecer. A Chris não vai mudar, então ou você continua aceitando as coisas como são, ou parte pra outra.

Alana abriu a boca, mas ficou vários segundos sem saber o que dizer. Ter alguém como Joao Pedro — que a conhecia tão bem — era um pouco assustador. Ele simplesmente dizia tudo que ela não teria coragem de dizer a si mesma, embora parecesse óbvio.

Todos os relacionamentos que tivera antes de conhecer Chris tinham dado errado. Fosse homem ou mulher, sempre escolhia a pessoa errada. Depois de tantas decepções e sofrimento, estava quase desistindo de tentar de novo. Ir parar no hospital entre a vida e a morte acaba se tornando um motivo plausível para que uma pessoa não queira confiar em ninguém.

Mas Cristina estava em seu caminho. Desde que abrira os olhos e a encontrara, com seu jeito sério e calmo, falando em termos médicos, porém gentis, ela se tornara alguém especial.

Claro que o relacionamento não começou enquanto ela estava no hospital, porém durante todo esse tempo, Cris lhe deu uma atenção, de certa forma, especial. Visitava-a mesmo fora das rondas rotineiras, e continuava tratando-a embora o caso já não pertencesse à sua especialidade.

Não acreditava que ela fosse tão gentil com todos os pacientes, na sua cabeça, era humanamente impossível que uma pessoa fosse tão boa. O mais engraçado era que, com o tempo, essa ideia havia mudado. Era como se a médica e a mulher fossem dois seres separados.

Enquanto ela possuía um dom incrível para lidar com as pessoas no desempenho de sua função, na vida particular, era como uma concha. Cris era, na maior parte do tempo, fria e indiferente. Partia sempre do principio que as coisas eram claras o suficiente, e não precisavam ficar se repetindo o tempo todo — tinha a mesma opinião com relação aos sentimentos: para ela, era bastante que soubessem que se amavam, isso não precisava ser dito o tempo todo, muito menos provado.

O jeito frio dela era, aliás, um dos motivos que levavam Alana a acreditar na veracidade do sentimento que as unia. Parecia um pouco controverso, mas depois de conhecer Cris, não era difícil perceber que ela jamais ficaria com alguém a quem não amasse de verdade. Por isso, também, a teoria de Joao Pedro, de que talvez houvesse alguma confusão em relação ao que sentiam realmente, não lhe parecesse sensata. Talvez, em algum momento, Cris tenha sentido pena da situação de Alana, afinal, a conhecera no pior momento possível, mas não fora isso que a mantivera naquele relacionamento.

Sentia como se estivesse andando em círculos. Amava Cris e reconhecia que o amor era recíproco; sabia também que as chances de sua namorada mudar eram poucas, porque isso significaria mudar a essência do ser de Cris, o que não lhe parecia justo. O caso era que também sentia falta de ter seus desejos atendidos, de ver as coisas que eram importantes para si terem relevância na relação. Se não era justo exigir uma mudança de personalidade da parte de Cris, tampouco era que a sua fosse completamente ignorada. O relacionamento deveria ser uma via de mão dupla, ambas tinham que ceder.

— Não é possível que as coisas simplesmente acabem de repente — falou depois de alguns instantes em silencio.

— De qualquer forma, acho que vocês deveriam dar um tempo. Talvez se ela começar a perceber como é a vida sem você…

Alana voltou para casa na segunda feira depois que saiu do trabalho. Precisava alimentar Nico. Embora não acreditasse que Cris o deixaria sem comida, o gato era sua responsabilidade. Contudo, não houve progresso nenhum com a namorada. Cris passava mais tempo no hospital do que em casa, e nessas horas, nenhuma das duas tomava a iniciativa para conversar. Dia após dia, Alana se pegava pensando se Joao Pedro tinha razão e as coisas tinham chegado a um ponto no qual ela seria forçada a tomar uma decisão definitiva.

Já estavam há mais de uma semana naquela situação, quando, um dia, Cris chegou em casa por volta de meia-noite e ainda a encontrou acordada.

— A gente precisa conversar — Cris falou, sem rodeios, antes mesmo de tirar a roupa.

Estava cansada e ansiava pela maciez dos lençóis e uma noite de sono ininterrupto, merecia isso depois de vinte e quatro horas de plantão. Porém, não queria dormir mais uma noite sem resolver as coisas com Alana. Até porque agora não era apenas uma questão de querer.

— Ok, eu começo — disse, apesar de Alana não ter manifestado nenhuma intenção de falar antes. — Eu sinto muito por tudo. Por tudo mesmo. Por não ter sido legal com você, por ser egoísta durante a maior parte do tempo, por não demonstrar o quanto você é importante pra mim.

Alana abriu a boca, mas parecia que ficar sem palavras tinha se tornado uma coisa comum para ela, porque não conseguiu emitir som algum, tamanha sua surpresa pelas palavras que estava ouvindo.

— Porque você é importante pra mim, Alana, de tantas maneiras que nem eu mesma consigo entender direito. E eu sou idiota por não dar valor a isso.

— Você não…

— Não, é melhor você ouvir tudo antes de tirar suas conclusões. — Mexeu na bolsa e tirou um envelope grande de dentro e o entregou a Alana, que o olhou com o cenho franzido.  

Embora os documentos contidos naquele envelope estivessem numa língua que ela não entendia nada, não teve dificuldade de adivinhar do que se tratava.

Alguns meses atrás, Cris havia se candidatado a uma bolsa para fazer pós-doutorado na Alemanha. Uma parte de si imaginava Cris abrindo mão daquilo em favor do relacionamento, porém, a outra parte sabia que não era isso que ela diria a seguir. Parecia que não precisaria tomar nenhuma decisão, Cris já estava decidida.

— Em quanto tempo você tem que ir? — perguntou, enquanto devolvia o envelope.

— Dois meses.

Claro que, em circunstâncias normais, aquela era uma notícia para ser comemorada, afinal, era um sonho, uma grande realização para a vida profissional dela. Mas naquele momento especifico, parecia o empurrão que estava faltando para que o relacionamento caísse de vez no abismo. Alana não via nenhuma maneira de salvá-lo naquele ponto.

— Fico feliz por você — disse com o máximo de sinceridade que foi capaz de reunir. Houve um instante de silêncio mais longo, durante o qual ficou pensando no quanto parecia injusto que, depois de investir tanto numa relação, chegassem a um ponto em que tinham que terminá-la.

— Eu queria que você fosse comigo.

Aquela frase curta encerrava tantos significados que Alana se viu momentaneamente perdida. Poderia ser a prova de que ela precisava, a chance de retomarem a relação e ficarem bem. Mas também poderia ser interpretada de outro modo.

— Não… — Ouviu a si mesma responder sem titubear.

— Você não quer pensar antes? — Cris foi surpreendida pela negativa tão imediata.

— Não, não tem muito o que pensar, Cris. Eu tô cansada de pensar. Fico feliz por você, e acho que você tem mesmo que ir realizar o seu sonho. Só que é o seu sonho, não é meu. Se eu fosse com você não seria a solução para os nossos problemas, seria apenas transferi-los pra outro país. A gente tem que parar de se enganar.

Uma decisão precipitada? Talvez. Talvez estivesse desistindo de um relacionamento que poderia durar a vida toda, talvez estivesse abrindo mão da única pessoa que já a amara de verdade, mas era isso ou continuar sufocando a si mesma, a enterrar, dia após dia, um pouco de suas próprias vontades.  


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Retrato em branco e preto" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.