The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 55
Capítulo LV - 18 de Março de 1875 (Final)




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Parcialmente escondida pela sombra e ramos frondosos do pé de azevinho mais antigo do castelo, Sarah transcrevia alguns de seus pensamentos nas folhas amareladas do diário de sua mãe. Por vezes, a escrita era interrompida por longos momentos de reflexão, em que seu olhar vagava pelo ambiente sem propósito até que, de maneira súbita, sua atenção voltasse para o caderno que tinha em mãos.

Usufruir das benesses de seu cargo era muito mais difícil do que aparentava ser, visto que sua rotina contava com visitas oficiais, inspeção de tropas, encontros com os mais diversos segmentos da classe operária, acrescendo-se ainda as exaustivas reuniões com o Conselho das Famílias Fundadoras. Em mais de uma ocasião tivera que aturar os murmúrios interesseiros que tentavam afastá-la de suas atribuições, ansiosos para conseguir uma delegação que lhes garantisse uma boa quantia de ouro. No entanto, mesmo ciente de que muitas daquelas funções pudessem ser desempenhadas por oficiais e nobres de patente inferior, o gesto apenas serviria para confirmar sua inaptidão para governar seu reino. Uma atitude daquela dimensão seria como taxar a si mesma de incapaz, um gosto que ela não daria a ninguém.

Esse é o dia mais importante da minha vida e, talvez, até mesmo da história de Odarin”, cogitou com empolgação, tornando a inclinar-se na direção do diário enquanto discretamente mordia o interior de suas bochechas. A Companhia de Fundição de Minérios estava finalmente pronta e operante, sendo impossível não se deslumbrar com a enorme construção ao recordar-se que tudo aquilo começou com uma despretensiosa conversa entre ela e seu consorte enquanto viajavam de volta para casa.

Erguendo o olhar na direção da enorme construção à sua frente, ela podia visualizar através das janelas a intensa movimentação dos empregados que preparavam tudo para o baile que aconteceria em algumas horas. Ainda que a jovem rainha não fosse afeita a este tipo de celebração, achava que a ocasião pedia por algo que estivesse à altura de sua conquista. “Além disso, ele merece todas as vênias e homenagens por toda sua dedicação”, concluiu enquanto erguia-se do gramado, afastando-se cuidadosamente dos ramos mais baixos de azevinho.

Pensar na figura excêntrica de Robert Banville geralmente lhe tomava muitos minutos de divagação, mas sua linha de raciocínio foi interrompida pelo jardineiro que avançava lentamente em sua direção. Trazia um conjunto de utensílios apoiados num dos ombros que, aos olhos da menina, pareciam ser bastante pesados. Quando ele estava próximo o suficiente, apressou-se em indagar com um ar preocupado:

— Já tem algum tempo desde que Elliot partiu, não acha que está na hora de escolher uma outra pessoa para auxiliá-lo? Eu mesma posso providenciar um ajudante para você muito rapidamente.

Se olhasse com atenção, poderia perceber marcas de expressão em seu rosto, parcialmente cobertas pela sombra proporcionada pelo chapéu envelhecido. O acessório era indispensável em dias ensolarados como aquele, mas também servia para ocultar os fios grisalhos do homem à sua frente. Como não poderia deixar de ser, Jacques estava envelhecendo e ela temia o dia em que iria perdê-lo para a eternidade. Ainda tinha tanto para perguntar, conversar e aprender com sua recém descoberta figura paterna. Mesmo que não pudesse recuperar os anos que foram perdidos, o fato não a impedia de desejar que ainda houvesse tempo suficiente para apreciar sua presença silenciosa e protetora.

— Não se incomode comigo, os demais empregados dirão que está sendo injusta e tendenciosa em meu favor — Jacques respondeu com tranquilidade, apoiando seu equipamento no chão com um suspiro cansado, tornando a dirigir-lhe o semblante pacífico de sempre. — Não é o tipo de boato que gostaria de ter circulando na cozinha, imagino.

— À essa altura, aprendi que as pessoas irão me julgar independente do que faça — retrucou a menina, dando com os ombros enquanto o examinava de maneira minuciosa. — Se não posso impedi-los, então ao menos permita que eu alivie seu fardo.

O antigo servente sorriu timidamente em resposta, não desejando prolongar o assunto ou iniciar uma discussão a respeito. Tinha a esperança de que Sarah eventualmente se esqueceria daqueles detalhes e passaria a se dedicar àqueles que realmente precisavam de seus cuidados. Já estava plenamente habituado aos fardos e reveses de sua posição social inferior de uma maneira tal que qualquer busca por conforto lhe soava como um luxo desnecessário.

Erguendo o olhar com o intuito de examinar o tempo, Jacques admirou o centenário pé de azevinho que se estendia de maneira esplendorosa na direção do céu azul. Com uma das mãos, ele habilmente colheu um pequeno galho onde três tímidos frutos avermelhados resistiram à mudança das estações.

— Para nossa Majestade, um símbolo universal de proteção, felicidade e paz — pontuou enquanto posicionava o ramo atrás de sua orelha, prendendo-o no penteado da jovem rainha com cuidado.

Uma reprimenda cruzou o pensamento de Sarah, que detestava ser chamada de modo tão formal pelo jardineiro, mas deixou a censura de lado ao constatar que aquela era sua maneira particular de desejar-lhe sorte no desempenho de suas funções.

Badaladas vindas de longe lembraram-na de que precisava inspecionar o salão antes da chegada dos convidados. Seus olhos recaíram uma última vez sobre a figura de Jacques, antecipando a dor da partida. Em sua trajetória, aprendera que qualquer despedida, por mais corriqueira que fosse, poderia facilmente ser a última. Diante daquelas questões, sentia um incontrolável desejo de abraçá-lo com força, encostando a cabeça em seu peito e fechando os olhos por um instante, para que pudesse ser invadida pela sensação de segurança, além de uma forma de agradecer por tantos anos de lealdade e dedicação. No entanto, o gesto lhe era terminantemente vedado, pelas regras de etiqueta e, também, pela voz da razão que ecoava em sua mente de maneira aborrecedora.

Da forma mais discreta que conseguiu empregar, a menina estendeu uma das mãos, capturando os dedos calejados do servente no processo. Dirigindo-lhe um sorriso tenro e um meneio positivo, ela se afastou a passos lentos de volta à sua extensa morada.



Imóveis como estátuas de mármore sob o julgamento criterioso do Secretário Real, os empregados mantinham os olhares baixos enquanto aguardavam por novas instruções. O rapaz inspecionava o local com uma expressão austera, avaliando não só a limpeza das taças ou o arranjo das mesas e cadeiras, mas também os trajes daqueles que se apresentaram para servir os convidados durante o evento. Buscava encontrar qualquer detalhe destoante que pudesse dar margem para comentários críticos e debochados entre os nobres que ali estariam durante a noite.

O som característico das portas brancas adornadas de ouro do Salão Principal interrompeu o trabalho do jovem Chevalier, relevando a figura delicada e imponente de Sarah. Sua entrada fez com que os serventes pudessem respirar aliviados, uma vez que a Rainha lhes inspirava muito mais confiança e apreço do que o rapaz. Em sincronia, todos empregaram uma respeitosa vênia para recepcioná-la, ao passo que ele empertigou-se ao vê-la dirigir-lhe um singelo sorriso.

— Que esplêndida decoração temos aqui — comentou enquanto observava o ambiente, que aparentava muito mais zelo e riqueza hoje que em seu próprio casamento. Avançando com passos curtos, ela tornava o rosto de um lado ao outro em contemplação, enquanto os gestos contidos lhe conferiam uma incontestável elegância à sua imagem. À despeito daqueles detalhes, o ar de deslumbre em seu semblante continuava a denunciar o lado infantil de sua personalidade, do qual jamais poderia dissociar de si mesma. — Não me recordo de ter visto esse salão tão limpo ou arrumado como hoje, o que me leva a congratular todos que estiveram envolvidos na organização deste baile. Espero poder presenciar a mesma dedicação durante a noite. No momento, estão dispensados para repousarem até a chegada de nossos convidados.

Depois de se retirarem silenciosamente, a menina foi deixada à sós com Phillip, que se aproximou vagarosamente, somente então se permitindo exibir uma expressão mais amena.

— Imagino que eu não seja o único a me sentir orgulhoso diante desta grandiosa conquista para Odarin — pontuou com um meio sorriso que foi prontamente retribuído, confirmando seu palpite. Examinando novamente o ambiente decorado de maneira ostensiva, era preciso reconhecer o trabalho maestral dos empregados, ainda que tamanho grau zelo denunciasse a participação de Evangeline em boa parte dos preparativos. Como ela conseguia cuidar da pequena princesa, lidar com a jovem rainha e ainda supervisionar os criados era algo que fugia de sua capacidade imaginativa. — No entanto, confesso que me surpreendeu sua iniciativa em sediar um baile comemorativo. Significaria isto uma mudança de opinião em relação aos gastos excessivos destes eventos?

— Pelo contrário, apenas reforça a ideia que tinha antes — Sarah retrucou de imediato, que continuava a circular pelo local. — Apenas julguei que a ocasião merecesse uma exceção. Além disso, embora festas como essa não se encontrem em minha lista de preferências, nosso homenageado demonstra um apreço incomum em relação a elas. Se essa é a maneira como ele gostaria de celebrar este momento, não me resta outra escolha senão realizar seu desejo.

A confissão honesta arrancou uma tímida risada do Secretário Real, que jamais deixaria de se surpreender com sua Rainha. Jamais conseguiria precisar o que mais admirava nela, se sua habilidade de reinventar-se a cada novo obstáculo superado ou a capacidade de mostrar-se sempre atenta às necessidades e anseios daqueles à sua volta. Com ela, aprendera a conciliar o mais antagônico dos interesses, zelando sempre pelo bem-estar do próximo, convencendo-se de que seria através daquelas mãos delicadas e cheias de determinação que Odarin avançaria rumo ao progresso.

— Você não deveria estar em Hallbridge neste momento?

A pergunta despretensiosa tomou o rapaz desprevenido. Afastando-se de seus devaneios de maneira súbita, Phillip logo percebeu o olhar cheio de significado que a jovem rainha lhe dirigia do lado oposto do cômodo.

—Irei amanhã, pela manhã — respondeu vagamente, sentindo uma onda de calor subir de seu pescoço em direção a face. Como era de se esperar, nem mesmo seus deveres a fazia esquecer-se daquilo que julgava realmente importante. Embora um tanto constrangedor, atitudes como aquela eram responsáveis por fazê-lo perceber o quanto era estimado, reforçando o quão acertada fora sua decisão em permanecer ao seu lado. — Agora devo me retirar para finalizar meus preparativos para a viagem e preparar-me para o baile. Estarei em meus aposentos, caso necessite de algo.

Com um meneio positivo ela acatou aquela decisão, acompanhando-o até a saída. O rapaz já estava prestes a sair quando atentou para a movimentação da maçaneta e as portas se abriram novamente, de onde irrompeu Evangeline acompanhada da pequenina princesa de Odarin. Concedendo passagem a ambas, o Secretário sorriu educadamente antes de prosseguir com suas obrigações, deixando as três damas à sós no Salão Principal.

— Veja quem está aqui, a flor mais radiante do meu jardim — Sarah comentou com empolgação, abaixando-se num movimento rápido, tomando a menina em seus braços com algum esforço. — Por céus, Lis, você está crescendo rápido demais. Se continuar nesse ritmo, muito em breve não serei mais capaz de carregá-la em meus braços.

O protesto surgiu em meio a uma risada jocosa, que disfarçava qualquer traço de contrariedade que pudesse haver naquelas palavras. Quanto a pequena, que desconhecia por completo o real significado de sua fala, se limitou a rir abertamente ao vislumbrar o olhar confidente da mãe em sua direção. Vislumbrar cenas como aquela fazia com que o coração da governanta transbordasse de alegria, pois olhar para elas era como reviver situações que nunca puderam se concretizar. “Se Katherine tivesse tido chance, certamente seria tão atenciosa quanto você”, pensava enquanto as contemplava em seu momento mais sublime. Já tinha percebido que ambas partilhavam dos mesmos traços de personalidade, o que sem dúvidas haveria de gerar atritos entre as duas no futuro. “Mas isso não importa no momento”.

— Seu tamanho e peso estão perfeitamente adequados para alguém da sua idade. — Mesmo que não houvesse qualquer aspereza em sua voz, Evangeline se via incapaz de abandonar o tom impositivo que já lhe era característico. Por sorte, a jovem rainha estava suficientemente habituada aos seus modos e se concentrava em observar as reações honestas da filha em seu colo, que tentava alcançar com os dedos miúdos o broche dourado utilizado pela monarca. — Embora pense que sua opinião seja facilmente compartilhada por Edgar, não estou certa?

— Você nem imagina quanto— respondeu enquanto caminhava pelo salão com a princesa. Pretendia mostrar-lhe o ambiente, mas a menina de pouco mais de um ano mantinha os olhos fixos no objeto de desejo recém descoberto. — É exaustivo vê-lo lamentar-se sobre isso todos os dias. Se lhe fosse facultado, certamente não permitiria que Lis sequer chegasse à idade adulta.

— Penso que uma nova criança poderia distraí-lo de questões como essa.

O modo sugestivo como aquelas palavras soaram aos ouvidos de Sarah fizeram com que ela erguesse os olhos de imediato, substituindo a expressão contemplativa de antes por um semblante de genuína surpresa. Ao ver a mais velha lhe exibir um discreto, mas orgulhoso sorriso enquanto comprimia os lábios, não restou outra saída a jovem rainha senão permitir-se partilhar daquela íntima sensação de ansiedade. Continuamente passavam-se as estações, mas isso em nada afetava a perspicácia de sua governanta, cujo os olhos de águia estavam sempre atentos aos indícios mais ínfimos.

— Quando pretende contar? — Indagou com um ar de cumplicidade.

— Ainda não tenho certeza — Sarah confessou depressa enquanto abaixava-se novamente, desta vez para libertar a pequena Lis de seus braços protetores. Visualizando um passarinho esverdeado na soleira da janela, a menina engatinhou para vê-lo de perto. — Gostaria de pensar em algo para surpreendê-lo, mas até então nada me veio em mente.

— Você bem sabe que Edgar não gosta que lhe ocultem algo — Evangeline advertiu-a enquanto corria até a princesa, que àquela altura esforçava-se para escalar os móveis até a vidraça que a separava do mundo exterior. — Se não se apressar, acaba por aborrecê-lo sem qualquer necessidade.

— Eu não me preocuparia com isso. Se o conheço tão bem como imagino, já posso antever que a última sensação que esta notícia lhe trará será aborrecimento — retrucou a jovem rainha despreocupadamente, suspirando enquanto afastava tais pensamentos de sua mente. Instintivamente, seu olhar voltou-se para a filha. — Não acha que é cedo demais para aprontá-la? Ainda dispomos de algumas horas antes da chegada dos convidados.

— Receio que sim, mas de outro modo não me restaria tempo o suficiente para ajudá-la a se preparar.

A resposta honesta de sua governanta arrancou-lhe um sorriso afável. Se um dia chegou a sentir-se sufocada com os cuidados excessivos de sua companheira, atualmente não dispunha de palavras ou gestos que pudessem recompensá-la por toda a segurança e carinho que lhe transmitia. Como Jacques costumava lembrar, ela abdicou de boa parte de sua vida para assegurar seu bem-estar e, à sua própria maneira, tinha a amado como nenhuma outra pessoa.

Com aquilo em mente, Sarah aproximou-se em silêncio e, tomando a mais velha desprevenida, abraçou-lhe carinhosamente. Evangeline se mostrou atordoada, precisando de alguns instantes para compreender o que se passava ali. Sua confusão logo foi substituída por um entendimento mútuo e um discreto sorriso brotou em seus lábios, levando-a a retribuir o gesto ao passo em que era invadida pela sensação de ter, enfim, cumprido com a sua missão.



Finalmente”, Anya pensou enquanto suspirava pesadamente, como se o ar lhe faltasse aos pulmões. Com uma das mãos repousada sobre a região lombar e a outra apoiada contra a parede, ela avançava lentamente na direção de sua sala de estar, pelo simples fato de que já não suportava permanecer no próprio quarto. Se alguém tivesse lhe dito que alcançar o andar térreo se tornaria um enorme desafio em algum momento de sua vida, ela teria rido no ato sem qualquer pudor. No entanto, a realidade se concretizava na forma que menos esperava.

Sentando-se na cadeira de balanço de sua mãe, a camponesa tornou o rosto em direção à janela, na tentativa de ignorar o antigo relógio de corda, cujo andar lento e constante dos ponteiros cumpria com a função de deixá-la apreensiva. Os meses de gestação foram gastos em meio a uma ansiedade desmedida, costurando vestes e pelúcias ao passo em que desejava poder segurar sua criação em seus braços o quanto antes. No entanto, na medida em que sua espera se aproximava do fim, o desejo fervoroso se transformava numa apreensão quase irracional. Como se acompanhasse seus pensamentos, pôde sentir a criança mover-se em seu ventre, causando-lhe algum desconforto. “Ainda não, por favor, aguarde apenas mais um pouco”, suplicou mentalmente, tentando acalmar a si mesma e o próprio filho que demonstrava alguma impaciência e inquietude nos últimos dias.

Instintivamente, seus olhos buscaram a estrada de terra batida até onde a vista alcançava. Não havia o menor indício de qualquer movimentação junto a linha do horizonte e sua frustração fazia com que se sentisse tola por nutrir uma esperança tão pífia. Ele não viria, ao menos não ainda. Há muito já estava ciente de que Phillip somente deixaria seu posto em Odarin quando já não houvesse mais nada que pudesse ser adiantado e, ainda assim, não podia lhe prometer mais do que duas semanas de ausência. Apesar da saudade de seu companheiro, detalhes como aqueles não chegavam a aborrecê-la, pois ela aceitara todas aquelas imposições desde o princípio. Entretanto, a ideia de não o ter ao seu lado numa ocasião tão importante vinha tirando-lhe toda a tranquilidade.

Haviam riscos, estava ciente disso, mas aquela ameaça invisível lhe parecia muito mais palpável diante da ausência de Phillip. Era como se sua presença por si só pudesse espantar todo tipo de desventura, pois estava sempre um passo à frente do restante do mundo, nunca deixando que nada o surpreendesse.

Cansada de pensar naquelas questões, Anya tencionou buscar algo para entreter a si mesma, mas foi surpreendida pela mesma dor de antes, que retornou de maneira súbita e com o dobro de intensidade. Até então, vinha contendo a si mesma com gemidos baixos que eram abafados pelos dentes trincados, mas diante da inesperada onda de desconforto, um grito assustado escapou-lhe sem que pudesse evitar, alertando-a para a gravidade da situação.

Num gesto apavorado, seus olhos novamente correram pela estrada, mas como era de se esperar, não havia o menor sinal de vivalma. Sem dispor de outra alternativa, caminhou com passos lentos e incertos que até a cozinha, apoiando-se na mobília durante todo o percurso caso não quisesse ir de encontro ao chão. Para seu desespero e frustração de sua última esperança, o local estava vazio como nunca.

Começava a sentir-se ligeiramente zonza, enquanto suas pernas davam indícios de fraqueza. O nervosismo apossava-se dela aos poucos, o que dificultava a respiração e até mesmo a manutenção de um único pensamento racional que fosse. Suas mãos instintivamente buscaram as costas de uma cadeira como suporte e seus olhos se fecharam com força, levando-a a uma prece muda e desesperada. Precisava de ajuda, e qualquer pessoa que surgisse serviria para o propósito, pois sensação de isolamento estava deixando-a mais em pânico do que o prospecto do parto.

Ao longe, pôde escutar um baque surdo, mas estava tão temerosa de aquela fosse uma peça pregada por sua mente inquieta que sequer abriu os olhos para verificar. Somente ao ter seu rosto delicadamente erguido por um par de mãos ásperas foi que percebeu não se tratar de uma ilusão. Elliot lhe direcionava um olhar preocupado que não se suavizou mesmo quando ela suspirou aliviada. Não se recordava de outro momento em que tivesse ficado tão feliz com a presença do rapaz.

— A mamãe, onde ela está? — questionou, tornando a erguer o torso, respirando profundamente enquanto buscava recobrar a calma. Saber que não estava sozinha tirava-lhe um enorme peso das costas, mas não mudava o fato de que ainda se sentia gelada e fraca pelo ataque de pânico de momentos antes.

— Não tenho certeza, saiu hoje cedo para comprar qualquer coisa no mercado — ele respondeu com pressa, percorrendo a figura da jovem camponesa com um olhar ansioso, na tentativa de certificar-se de que ela não estava machucada. — Eu estava nos estábulos e escutei um grito, pensei que tivesse levado uma queda ou…

— E o papai? — Anya interrompeu com brusquidão, pouco interessada na fala embaralhada de seu amigo. De repente, a dor retornou com uma força exauriente, levando-a a ranger os dentes mais uma vez. — Quando ele estará de volta?

— Apenas amanhã — Vê-la naquele estado era de partir o coração e sentindo que não podia mais ficar parado, decidiu agir mesmo sem a sua anuência. — Você não pode ficar aqui, precisa voltar para o seu quarto.

Sem forças para protestar, a jovem deixou-se guiar pelo tratador de cavalos, que passara um de seus braços sobre os ombros enquanto a outra mão a segurava firmemente pela cintura. Subir aquele lance de escadas com ela naquele estado seria um desafio, mas Elliot não se queixou ou disse nada a respeito. “Se a Sarah conseguiu selar um cavalo e me carregar de volta para casa quando estive enfermo, então chegar ao segundo andar com uma Anya cambaleante não será um problema”. A recordação surgiu de maneira espontânea, sem que ele percebesse para onde seus pensamentos estavam o guiando. Desde que se mudara para Hallbridge, as poucas vezes que sua mente retornou para o castelo foi por saudar a companhia silenciosa de Jacques ou da presença exasperante de Marco. Ali, longe das memórias vividas ao lado da princesa, podia finalmente superar as mágoas do passado, mas não se esquecer das razões que o fazia admirá-la.

Alcançando o cômodo que pretendiam, o rapaz apressou-se em colocá-la sentada na cama. Quase instantaneamente, um novo gemido escapou por seus lábios, fazendo-a encostar-se contra a testeira de madeira enquanto sentia o suor gelado escorrer em seu rosto, causando-lhe calafrios.

— Você precisa ir até a cidade e trazê-la de volta — a loira pontuou em meio a uma voz sôfrega. A raiz de seu cabelo estava escurecida em função da excessiva umidade, servindo apenas para potencializar os arrepios de antes, que eram entrecortados pelas pontadas esporádicas que sentia em seu quadril.

— Não vou deixar você aqui sozinha nesse estado — ele rebateu de imediato, sentindo-se afrontado diante de uma insinuação como aquela.

— Ficar aqui do meu lado não vai ajudar em nada! — Apesar da inverdade daquelas palavras, estando certa de que seria tomada por uma nova onda de pânico logo que se visse sozinha novamente, era preciso definir suas prioridades, e no topo delas estava a presença de Edeline quando chegasse a hora. — Por favor, Elliot, eu preciso da minha mãe aqui mais do que nunca. Não se preocupe comigo, eu vou ficar bem.

Era difícil negar uma súplica tão angustiada quanto aquela, mas de igual modo, abandoná-la lhe parecia uma atitude pouco sensata. Grande era o impasse em que se encontrava, mas somente depois de constatar o par de olhos fulminantes voltados para si foi que se sentiu apto a tomar uma decisão.

Girando sobre os calcanhares com extrema rapidez, o rapaz deixou o cômodo correndo, pois quanto mais rápido conseguisse encontrar Edeline, logo poderia estar de volta. Saltando os degraus aos tropeços, não foi preciso mais que alguns minutos para chegar aos estábulos e sair montado em Petruchio, passando a cortar a extensão da propriedade como um raio. Durante todo o trajeto, uma questão específica não lhe escapou da memória: além da senhora Lewinter, havia mais alguém que precisava ser imediatamente comunicado do que se passava ali.

O rapaz, no auge de suas boas intenções, não tinha ideia de quantas horas um mensageiro levaria para chegar até o castelo de Odarin, mas desejava ardentemente que não fosse mais tempo do que dispunham.



Examinando seu reflexo pela última vez, Phillip achou que suas vestes estavam bastante adequadas para o evento daquela noite. Espiando seu relógio de bolso, percebeu que já estava na hora de juntar-se aos primeiros convidados. Cruzando o cômodo, que majoritariamente era composto por estantes e pilhas de livros, mais se assemelhando a uma segunda biblioteca, aproximou-se de sua cama, verificando mais uma vez se seus preparativos estavam todos em ordem. Uma mala grande e uma bolsa de mão abertas exibiam todos os pertences que julgava serem necessários para as próximas duas semanas. Em seus trajetos oficiais, normalmente apenas àquela última era necessária, mas diante da excepcionalidade que motivava aquela viagem, preferia estar preparado caso precisasse permanecer por mais tempo.

Amanhã, pela manhã”, repetiu para si mesmo antes de fechar as presilhas de ambas. Havia um nervosismo crescente em seu íntimo e era preciso controlar a si mesmo para que não checasse o relógio a cada três minutos. Sua espera finalmente chegava ao fim e, embora não fosse capaz de admitir em voz alta, ele se sentia ansioso para conhecer seu primeiro herdeiro. Nas últimas semanas, ficara imaginando quais seriam suas características físicas ou que traços de personalidade traria. Seria mais parecido consigo, com Anya ou haveria de ser uma harmoniosa mistura dos dois? Ele mal podia esperar para descobrir.

Três batidas pesadas na porta de seu cômodo despertaram-no de seus devaneios, que certamente pertenciam a algum criado eficiente que tencionava lembrá-lo da hora. Como lhe era de costume, inspecionou uma última vez os sapatos, as abotoaduras e o estado de seu cabelo, tendo seu pequeno ritual interrompido por uma nova série de batidas insistentes que o fizeram franzir o cenho em evidente desaprovação àquele gesto.

À distância, ele espiou seu reflexo novamente, dirigindo-se então com tranquilidade até a entrada de seu quarto. Antes que pudesse alcançar a porta, outra sequência de batidas, desta vez mais fortes que as anteriores, cumpriram com a função de aborrecê-lo por completo. Já estava ciente de que deveria descer para recepcionar os convidados antes da chegada da Rainha, não compreendendo a razão para tamanha impaciência.

A expressão em seu rosto tornou-se ainda mais desgostosa ao perceber que estava diante de alguém que muito remotamente lhe lembrava um mensageiro. Tinha não só as botas, mas parte das calças sujas de lama seca, a fronte encontrava-se banhada em suor e parecia ter corrido três dias e três noites sem descanso.

— Em que posso ajudá-lo? — Arguiu com irritação, imaginando que tipo de problema poderia surgir em inoportuna hora e quem poderia ter lhe enviado um mensageiro em tão deplorável estado.

— Tenho uma mensagem para Phillip Chevalier, enviada por um rapaz chamado… — o rapaz precisou abaixar o rosto, buscando em um de seus bolsos um papel amassado, que continha o nome do remetente escrito aos garranchos, como o Secretário pudera perceber com um olhar de soslaio. —  Elliot Gallant, senhor.

— Não conheço ninguém que atenda por este nome — retrucou com impaciência, cada vez mais certo de que se tratava de uma peça de mau gosto, empregada para distraí-lo de seus afazeres. — Acredito que tratar-se de um terrível engano, agora dê-me licença para…

— “Venha para Hallbridge o mais rápido que puder, ela precisa de você urgentemente” — narrou o mensageiro sujo, habituado a escutar negativas que muitas vezes não se justificavam. — Eu também não compreendi o que significa, mas disseram que eu o encontraria aqui. Tem certeza de que não é para o senhor?

Com agilidade, Phillip tomou o papel que estava na mão do rapaz à sua frente. Não era como se pudesse ler qualquer coisa do que estava escrito naquele retalho imundo, mas por alguma razão segurá-lo entre os dedos fazia com que o teor daquelas palavras se torna-se absurdamente real aos seus ouvidos. Valendo-se de um gesto impaciente, ele dispensou o garoto que afastou-se com um ar de alívio em seu semblante, feliz por ter encontrado seu receptor depois de tantas horas de viagem.

Não podendo precisar o que poderia ter acontecido, sua mente ansiosa passou a imaginar todo tipo de cenário, inclusive os mais desastrosos e trágicos possíveis. “Amanhã não, agora”, foi o único pensamento coerente que lhe ocorreu antes de guardar o bilhete num de seus bolsos, concentrando-se em chamar a atenção de um servente que passava por ali.

— Preciso que prepare uma carruagem para mim com a maior urgência possível, devo partir para Hallbridge imediatamente — explicou-lhe com a voz trêmula, a todo momento olhando para os lados como se temesse ser flagrado por alguém. — Depois, se encarregará de entregar a carta que escreverei agora para a Rainha. Agora vá, preciso desses cavalos o quanto antes.

O criado assentiu antes, logo afastando-se com passos apressados. Retornando para o interior de seu quarto, Phillip correu até a escrivaninha, puxando as gavetas sem qualquer delicadeza, ávido por encontrar um papel e um caneta. Suas mãos estavam trêmulas e suadas, o que resultou na correspondência mais desleixada que tivera o desprazer de elaborar. No entanto, não podia perder um único instante sequer, de modo que selou-a num envelope com afobação.

Tomando apenas a bolsa de mão, esquecendo-se por completo da mala cuidadosamente organizada para as duas semanas que viriam, ele praticamente correu pelos longos corredores do castelo até a saída.

O servente de antes surgiu poucos minutos depois, indicando-lhe o veículo preparado para si. A cabine era diminuta e não tão elegante quanto a que costumava utilizar, mas o cocheiro assegurou que sua dimensão reduzida proporcionava uma viagem mais rápida. Incapaz de ponderar aquele argumento, ele embarcou sem maiores questionamentos. Sua carta fora deixada aos cuidados do empregado que lhe atendera e, na medida em que se afastava da morada da Família Real, uma fileira de carruagens avançava justamente naquela direção oposta, denunciando a chegada dos primeiros convidados.

O último pensamento que lhe ocorreu foi que precisaria desculpar-se com Sarah num momento posterior, pois naquela ocasião havia alguém muito mais importante do que a Rainha que precisava de seus cuidados.



— Será possível que você nunca descansa? — comentou o Duque de Odarin ao abrir a porta do Gabinete Real e encontrar a jovem rainha concentrada num extenso documento. Podia perceber seus olhos correndo sobre o papel enquanto ela murmurava algo para si mesma durante o processo.

— Estou apenas revisando este memorando uma última vez — retrucou com um ar ausente, sem erguer os olhos na direção de sua companhia. Somente após terminar sua leitura, Sarah tomou a caneta prateada em mãos, assinando os papeis com sua caligrafia ligeiramente inclinada.

— Essa não deveria ser a tarefa de nosso Secretário Real? — Edgar arguiu com um quê de preocupação estampado em seu rosto. Até então, caminhava com um misto distraidamente pelo cômodo, aguardando que lhe fosse dada a devida atenção.

— Ele teve de ausentar-se em razão de uma ocorrência inesperada. — Sua entonação exprimia uma tranquilidade ímpar, como poucas vezes ele tivera a chance de presenciar. Muito embora aquele comportamento não condissesse totalmente com a personalidade da menina, a repentina demonstração de confiança trazia-lhe uma sensação reconfortante. — Como sabe, nascimentos são eventos realmente imprevisíveis, mas apesar do choro e da demanda incessante por atenção, não se trata de um fato grave ou digno de preocupação.

Tais palavras, mesmo ditas num tom bem humorado, não foram capazes de amenizar o impacto sofrido por Edgar com aquela notícia. Muito embora já não mantivesse quaisquer restrições ao jovem Chevalier, ainda que tivesse sido nomeado Secretário à sua revelia, o mesmo não poderia ser dito sobre seu relacionamento com Anya. O que lhe parecia ser uma brincadeira de mau gosto do destino acabou se concretizando como uma janela para o passado que evitava se recordar. Phillip podia não ter qualquer relação com os problemas travados com sua antiga noiva, mas indubitavelmente serviria como uma eterna ponte até ela, a única pessoa de quem deseja dissociar-se por completo, por trazer à tona a incômoda sensação de fracasso que aflorava em seu âmago.

Um silêncio constrangedor tomou conta do ambiente e prolongou-se além do esperado. Sarah comprimiu os lábios num gesto de desaprovação. Ainda que seu consorte tivesse decretado o fim daquele relacionamento, reações como aquela a faziam questionar-se se tais palavras eram dotadas de verdades, ou seriam apenas uma tentativa do Duque de enganar a si mesmo. Alegava ter deixado aquele envolvimento para trás, mas ainda mostrava-se incapaz de perdoar ou esquecer os anos gastos em meio a dor da incerteza. Vê-lo novamente perturbado por questões atinentes ao seu passado serviam para alimentar o lado inseguro da personalidade da jovem rainha.

— Devemos descer em breve — Edgar anunciou de maneira súbita, rompendo a quietude de antes com excessiva sobriedade. — Creio que nossos convidados mais importantes já estejam aqui e não me parece adequado deixá-los esperando por muito tempo.

— Você tem razão — ela concordou, dizendo-lhe aquilo da forma mais natural que pôde exprimir. Depois de guardar o memorando em sua gaveta, afastou-se de sua mesa apressadamente, mas seus passos foram perdendo velocidade na medida em que se aproximava de uma das janelas do Gabinete, como se algo ali tivesse capturado sua atenção. Retendo-se por alguns instantes, a menina refletiu em silêncio antes de proferir num tom ligeiramente entusiasmado: — Estou pensando em construir algumas sacadas junto a essas janelas, começando por esta aqui. O que acha disto?

O jovem Avelar tornou o rosto para sua companhia, piscando diversas vezes com incredulidade enquanto tentava imaginar de onde surgira aquela sugestão aparentemente impensada. Confuso e ainda sentindo os efeitos do comunicado de antes, ele rendeu-se à ignorância e optou por perguntar-lhe diretamente:

— Alguma boa motivação por trás disso ou trata-se apenas de um capricho desarrazoado? — Perguntou de maneira seca, deixando transparecer seu real estado de espírito no momento. Sarah, por sua vez, não se abalou com o tratamento indelicado e devolveu-lhe o mesmo sorriso de antes.

— Odarin está crescendo e com a inauguração de nossa Companhia de Fundição de Minérios, o povoado terá de se expandir para algum lugar. Muito em breve seremos capazes de presenciar o despertar da cidade, vendo os aldeões erguerem-se para desempenhar suas tarefas diárias. — Edgar tentava prestar atenção, mas aquele prelúdio não lhe deu qualquer indício da real necessidade de ter sacadas construídas ali, na ala norte do castelo, que sequer estava voltada para o nascente ou poente. No entanto, antes que pudesse formular um novo questionamento, a menina adiantou-se e continuou. — Veremos tudo daqui, nesse mesmo local em que estamos agora. Imagine poder acordar pela manhã e cumprimentá-los, eu e você ao lado das crianças, saudando o povo e mostrando que nossos olhos sempre estarão voltados em sua direção. Não lhe parece uma ideia fabulosa?

A justificativa fez com que o rapaz precisasse conter uma risada. Se havia no mundo alguém mais espontâneo e idealista do que a jovem rainha, ele desconhecia completamente. Apesar disso, lhe impressionava como suas falas podiam ser sedutoras mesmo aos ouvidos menos inclinados a ouví-la, tal como se encontrava na ocasião.

— O cenário me parece inspirador — ele comentou com brandura, na medida em que recobrava a consciência e abandonava o comportamento reticente e arredio de antes. — Mas não compreendi o porquê disse poderíamos fazer isto ao lado das crianças. Quero dizer, sei que Lis dispõe de energia equivalente a três outras crianças de sua idade, mas não deixa de ser nossa única filha.

— Por enquanto — Sarah retrucou de imediato, exibindo um sorriso enigmático. Na ocasião, sentiu tola por todo o tempo gasto em conjecturas desnecessárias, pois o destino sempre se encarregava de preparar o momento certo para revelações como aquela, de modo muito mais espontâneo do que se tivesse planejado algo.

Toda a sua atenção estava voltada para as reações de Edgar, que externava um semblante atônito, demonstrando dificuldade em compreender o real significado daquilo. A jovem rainha aguardava pacientemente e, por essa razão, foi surpreendida com passadas urgentes de seu consorte antes de tomá-la num beijo afoito e inesperado. A surpresa inicial logo foi superada, pois gestos intensos como aquele faziam não só com que se sentisse amada e desejada, mas também tinham o condão de afastar de sua mente atribulada quaisquer dúvidas que porventura viessem a surgir.

— Eu nem mesmo tenho palavras… Meu pai precisa saber disto o quanto antes! — Sarah não conseguiu conter uma risada diante da euforia do rapaz à sua frente, cuja exasperação conseguia contagiá-la com extrema facilidade. “Por ele, eu faria qualquer coisa, desde que isso pudesse fazê-lo feliz”, pensou naquele instante enquanto o observava andar em círculos antes de voltar-se para ela, tomando suas pequeninas mãos entre as dele. — Quando pretende fazer o anúncio oficial? Ainda esta noite?

— Eu gostaria de manter essa informação somente conosco por ora, evitar comentários ou insinuações estapafúrdias enquanto for possível — respondeu com um ar reticente, ao que ele logo aquiesceu. Pouco depois do anúncio de que seu primeiro herdeiro, houve uma onda de protestos por parte dos representantes da Famílias Fundadoras, que a julgavam inapta para governar e viram naquela ocorrência uma oportunidade de tirá-la de cena a todo custo. Se já não bastasse as restrições impostas pela própria gravidez, eles conseguiram deixar seus dias ainda mais longos e estressantes, restando a ela poucas boas lembranças daquele período. — Além disso, esta noite será exclusivamente dedicada à nossa conquista e a valorosa contribuição do Lorde Banville. Jamais faria algo que pudesse ofuscar minimamente o seu brilho, ele não me perdoaria por isso.

As mãos de Edgar passaram a segurar o rosto da menina entre os dedos, mais uma vez concordando com um aceno mudo, demonstrando ainda alguma incredulidade diante da notícia com a qual fora agraciado. Como mágica, o prospecto de uma nova criança amornou seu coração e fez com que o desconforto de antes fosse rapidamente esquecido. De nada lhe adiantava pensar no caminho que Anya havia escolhido para si e agora percebia o quão irrelevante eram suas preocupações. Ainda que sua vida atual estivesse muito distante de seus planos originais, ele estava plenamente feliz com o futuro que lhe fora concedido.

Abaixando o rosto novamente, o beijo desta vez fora mais sereno e sóbrio que o anterior, mas que em nada carecia de sentimento. Afinal de contas, não havia maneira melhor de expressar sua satisfação do que aquela.

Eu me pergunto o que virá desta vez”, Sarah pensou com a prematura sensação de curiosidade, enquanto sentia as mãos de seu consorte se moverem lentamente, passando a acariciar sua cintura protetoramente.

A gravidez comportava uma sequência quase infindável de meses repletos de situações desagradáveis e restrições, mas ela não se incomodava de passar por tudo aquilo novamente se isso desse a Edgar uma alegria e plenitude imensuráveis, tal como presenciava naquele momento.



Com movimentos curtos e elegantes, o líquido parecia dançar dentro da taça ao completar perfeitas trajetórias circulares, uma após a outra. Robert Banville mantinha os olhos fixos em seu conteúdo, ligeiramente hipnotizado pelo gesto. “A importância exagerada que se dá ao sangue nobre, aliada a essa ambição desmedida, faz com que estejamos sempre no centro do jogo de interesses de alguém. Exatamente como essa pequena dose de vinho, vivemos presos em nossas gaiolas de cristal, andando em círculos e alheios àquilo que realmente importa”, pensou consigo mesmo, ainda observando ao objeto com curiosidade.

A metáfora fez com que ele risse de maneira discreta, tomando aquele último gole antes de abandonar a peça de cristal na mesa em que estava apoiado. Em seguida, um grupo de fidalgos aproximou-se para cumprimentá-lo e ele tratou de recepcioná-los de maneira calorosa. Retiveram-se ali por algum tempo, apenas o suficiente para atender aos protocolos de etiqueta, buscando causar uma boa impressão. Como era de costume, ele os tratou com a mesma cortesia que despenderia a alguém de sua família, ainda que não estivesse interessado em nada do que diziam. “O mundo estava mais cheio de sorrisos falsos e conversas vazias do que nunca”, concluiu ao vê-los se afastarem sob o pretexto de terem outros convidados para saudar. Intimamente, ele se sentiu grato por ficar sozinho novamente.

Eu já apreciei mais eventos como esse”, pensou com melancolia enquanto examinava o Salão Principal com um olhar crítico, um tanto abatido. Antes, nada lhe dava mais prazer do que estar envolto de pessoas, fosse em bailes importantes ou em estabelecimentos bem frequentados. Houve um tempo em que chegou a ser reconhecido nestes lugares como o Rei das Falácias, graças a sua habilidade incomum que o permitiria persuadir as pessoas a tomarem qualquer posicionamento e, com a mesma facilidade, convencê-los do contrário em questão de minutos, independente do assunto em questão.

Chegaram a recomendá-lo para o Exército, onde facilmente conquistaria um cargo importante como estrategista ou coisa semelhante. O raciocínio não era de todo errado, mas Robert era reconhecidamente boêmio demais para tanto. Além disso, precisava ocupar o assento da Família junto ao Conselho de Fundadores, sendo este um dos últimos desejo de seu pai. Dizia-lhe que conquistar a confiança e o respeito dos demais membros seria uma tarefa simples, a ser cumprida com a maior brevidade, para que pudesse focar em seu verdadeiro objetivo: tornar-se Secretário Real do Rei.

Pense bem, este é o cargo perfeito para investir seus esforços”, repetia o patriarca da Família Banville. “O seu talento permitirá que governe Odarin por intermédio de um monarca. Seja quem for, use-o como distração para os comuns, pois assim jamais será diretamente responsável por qualquer coisa que venha a dar errado. O nome dos Banville será resguardado de qualquer crise e nossa influência permanecerá soberana ao longo das gerações”, quase podia ouvi-lo dizer em seus últimos devaneios ambiciosos antes de falecer. Pessoalmente, dinheiro e poder não integravam sua lista de desejos e ele estava satisfeito em ser o centro das atenções em convenções sociais como aquela. Mas, se atender à sua ambição pessoal pudesse lhe dar liberdade o suficiente para a vadiagem que o aprazia, então ele o faria sem contestar. O destino, por outro lado, tinha planos bem diferentes para ele.

Sua resistência e disposição minguavam a cada dia, até que não fosse mais possível esconder seu real estado de saúde. Ele desmoronou como um edifício em ruínas e nem mesmo a fortuna de sua família ou a influência que tinham em outros reinos puderam salvá-lo do mal que o afligia. Seu retiro em Greenwall garantiu-lhe uma melhora significativa, mas muito distante da cura que necessitava. Não tinha maiores pretensões ao retornar para Odarin, desejando apenas aproveitar seus últimos meses ao lado de sua família, ansiando por um pouco de sossego para a alma que começava a se despedir do mundo. Novamente, os acontecimentos seguintes não seguiram à risca seu planejamento inicial, mas desta vez não poderia alegar qualquer descontentamento quanto a isso.

Um discreto meio sorriso brotou em seus lábios e instintivamente seus olhos voltaram-se para a suntuosa escada localizada ao centro do Salão Principal, separando-o dos demais cômodos do castelo. Um tapete vermelho com bordados de ouro forrava os degraus de madeira, dando ao local uma dose extra de requinte, mas sem exibir nada de excepcional. Ao menos, não ainda. Seu rosto retornou para posição anterior, tornando a encarar os próprios pés como forma disfarçar o riso, que novamente surgiu de maneira involuntária. “Eu não pensei que fosse agir como um menino tolo e inexperiente outra vez”, pensou consigo mesmo, tentando recobrar a seriedade de antes. “Dirigir olhares ansiosos naquela direção não fará diferença alguma”, repetiu mentalmente na tentativa de convencer-se daquilo.

Do lado oposto do salão, a orquestra tocava uma bela melodia, ainda que não muito contagiante. Ninguém estava autorizado a dançar antes da chegada da Rainha para abrir o baile e o soneto cumpria com a sua função de entreter a todos, não permitindo que o som dos talheres ecoasse de maneira incômoda. Os nobres, em sua maioria, aproveitavam a ocasião para degustar dos primeiros petiscos e trocar gentilezas uns com os outros.

Robert observava tudo à distância, questionando-se quando havia deixado de apreciar prazeres supérfluos e efêmeros como aquela. “Tudo mudou depois que eu a conheci”, concluiu após um suspiro cansado, como se o ar estivesse rarefeito. Fechando os olhos e respirando pausadamente na tentativa de recobrar o equilíbrio de antes, esqueceu-se por um momento de onde estava ou que fora fazer ali. Ao invés daqueles detalhes, sua imaginação o levava a um local reservado e quieto, longe do burburinho enquanto todas as pessoas eram substituídas pela companhia de uma só, a única que realmente lhe importava naquela noite.

Após alguns instantes imerso naquele delírio pessoal, o jovem Banville tornou a abrir os olhos, bem a tempo de perceber a entrada de um membro da Guarda Real junto escadaria, prestes a anunciar a chegada de alguém.

— Vossa Majestade, a Rainha Sarah de Odarin e o Duque Edgar de Hallbridge.

De imediato, todos os convidados abandonaram suas mesas e rodas de conversa para se dirigirem ao centro do Salão Principal. Em instantes, centenas de rostos estavam voltados para o alto, assistindo a magistral entrada de sua soberana. Seu semblante exibia um sorriso, não muito largo ou expansivo, mas que denunciava um ar de confiança inabalável.

O casal desceu os degraus lado a lado, examinando a multidão à sua frente sem nada temer. Chegando ao andar térreo, eram os únicos com as cabeças erguidas, pois todas as demais curvaram-se para recepcioná-los.

— É um grande prazer para mim recebê-los em minha casa para celebrar este momento — ela pontuou em bom tom, para que todos os presentes pudessem ouvir seu breve discurso de abertura. Sua voz soava imponente e não havia um único ruído para distraí-la. — Esta noite, damos o primeiro passo na direção do futuro. A incerteza é uma variável constante na vida de um monarca e embora não possamos prever como serão os dias que estão por vir, acredito que nossa mais recente conquista, a inauguração da Companhia de Fundição de Minérios, proporcionará a todos uma prosperidade nunca antes presenciada. Essa vitória eu dedico a todos os presentes e, em especial, ao Lorde Robert Banville, que transformou esse sonho distante na realidade de hoje. Por essa razão, eu gostaria de propor um brinde, à sua habilidade e profunda sabedoria.

A sugestão da Rainha foi prontamente acatada por seus convidados, que receberam de bom grado as taças de champanhe, sendo erguidas na direção do homenageado e saboreadas logo em seguida. A orquestra deu início a uma valsa animada e muitos dos que estavam ali dispersaram-se na direção da área reservada para danças. Sarah suspirou com um ar de alívio, satisfeita por ver o evento seguir à risca o seu planejamento inicial.

— Excelente discurso — Edgar sussurrou em sua direção, devolvendo para um servente sua bebida intocada. Livrando-se do objeto, ele lhe direcionou um olhar espirituoso antes de acrescentar: — Eu não poderia ter feito melhor.

— Pare de zombar de mim, foi você quem escreveu o discurso — a menina riu, mas rapidamente retomando a seriedade ao perceber a aproximação do Conde Van Berger e sua esposa. Depois do Barão e da Baronesa Chevalier, ela não conseguia imaginar uma companhia mais indesejável do que o casal que agora se encontrava a poucos passos de onde estava.

— Quanta honra poder estar aqui em sua presença, minha Rainha — saudou a Condessa enquanto ensaiava uma exagerada reverência, sua voz ecoando uma nota mais alta que o necessário, possivelmente para chamar a atenção dos demais ao seu redor. Sarah tentou recepcioná-los de maneira afável, mas não conseguiu esboçar mais do que um sorriso forçado e um cumprimento educado. — Não se atenha tanto às formalidades, lembre-se de que eu a vi crescer nesse castelo. Ao menos, é claro, durante o período em que residiu aqui.

A jovem meneou positivamente enquanto estendia o braço para que o Conde beijasse as costas de sua mão. Não foi capaz de elaborar quaisquer acréscimos, pelo simples fato de não ter qualquer lembrança de sua presença em seus primeiros anos de vida. Suas memórias se restringiam às lições enfadonhas de Evangeline e as tardes gastas na companhia dos serventes ou de Elliot, um contra-argumento que ela certamente não poderia utilizar naquela conversa.

— Fico muito feliz em poder recebê-los — Sarah pontuou com polidez, ciente de que aquela aproximação tinha um propósito maior do que apenas causar uma boa impressão. — Alegra-me vê-la tão bem de saúde, dispondo de tanto vigor.

— Bobagem! — Exclamou enquanto gesticulava sem qualquer modéstia, havendo um quê de vulgaridade da maneira como se portava. — Não sou mais tão forte quanto em minha juventude, mas certamente possuo muito mais disposição do que algumas figuras mais jovens.

Edgar percebeu de imediato que ela se referia ao homenageado da noite, o que o fez prender a respiração por um segundo. Críticas veladas como aquela faziam Sarah se impacientar com facilidade e ele temia que fosse exatamente essa a intenção do casal, descreditá-la e fazê-la exibir seu lado descomposto para uma centena de convidados. Por sorte, ao dirigir-lhe um olhar de soslaio, a menina exibia um semblante tranquilo, sem qualquer manifestação de indignação.

— Mas veja como são as coisas, no meu tempo as mulheres estavam mais do que satisfeitas em poder servir aos seus filhos e ao seu marido. Minha memória, infelizmente, já não me serve tão bem quanto antes. Creio ter perdido o momento histórico em que isto deixou de ser suficiente. Hoje estão até mesmo ocupando posições de poder — comentou a Condessa Van Berger sob um tom casual, mas que era revestido de malícia, chegando a rir de forma exagerada como quem conta uma piada muitíssimo engraçada, não se incomodando com a falta de reação da monarca. — Eu me recordo de quando era apenas uma menininha, correndo indiscriminadamente pelas mesas dos jantares sediados aqui, sem qualquer instrução de como se portar. Isso, é claro, foi há muito tempo. Mas diga-me, é realmente possível conciliar tantas atribuições? Como você consegue?

Pela maneira como a encarava, Sarah tinha certeza de que a senhora à sua frente já tinha em mente a resposta para aquela pergunta. “É muito simples, não consegue”, era o que deveria estar pensando enquanto a encarava com intensidade, ávida em vislumbrar qualquer gesto inadequado ou digno de reprovação. Se ainda estivesse em seus primeiros meses de reinado, certamente teria caído naquele truque ardil. Agora, depois de anos convivendo com insinuações como aquela, ela não entraria em seu jogo tão facilmente.

— Acreditaria em mim se dissesse que não é tão complicado como parece? — Retrucou com simplicidade, exibindo o mesmo sorriso confiante de antes. Pôde perceber, por um breve instante, a máscara de falsa simpatia Condessa se desfazendo diante de seus olhos e não pôde evitar de acrescentar com muita naturalidade: — Além disso, não sou apenas uma simples mulher. Eu sou a Rainha.

— Decerto que sim — devolveu a idosa com um sorriso frouxo e frustrado.

No entanto, antes de se afastar e permitir que a jovem pudesse escapar dali, lançou um olhar enigmático que a deixou intimamente desconfortável. Por um instante, sentiu que ela podia ver algo para além de si, como se soubesse a verdade sobre sua origem nenhum pouco nobre. Por fim, o casal esboçou um meneio respeitoso e seguiu em busca de outra companhia.

— Quando penso que não podem ser mais intragáveis que o de costume, eles conseguem superar a si mesmos — Edgar murmurou em sua direção e só então percebeu a seriedade que havia tomado conta do semblante de sua companheira, muito distante das feições alegres de instantes atrás. — Ignore-os, não deixe perceberem que podem lhe afetar com umas poucas palavras.

— Não podem — devolveu de imediato, antes de exalar um suspiro cansado. O evento estava apenas começando e algo lhe dizia que aquela traiçoeira armadilha não seria a única da noite. — Eu só preciso colocá-los em seu devido lugar, pois de outro modo serei obrigada a ouvir disparates ainda piores. Além disso, eu jamais sediaria um baile se não pudesse lidar com tantos elogios.

Podia sentir o olhar condescendente e piedoso de seu consorte sobre si e, se lhe fosse permitido na ocasião, ela teria procurado refúgio em seus braços, afastando-se por um instante daquela realidade predatória que tentava despedaçá-la a todo custo. Erguendo o rosto em sua direção, tencionava dizer algo para tranquilizá-lo, mas pela maneira como seu rosto havia se iluminado em segundos, imaginou que houvesse alguém atrás de si que merecesse mais sua atenção do que ela própria.

— Perdoe-me a interrupção, mas ela tem estado muito agitada já tem algum tempo. Pensei que trazê-la aqui pudesse acalmar um pouco seus ânimos. — Evangeline desculpou-se ao se aproximar dos dois, trazendo a pequena Lis em seus braços. Ao vislumbrar a figura de Edgar, a princesa estendeu os braços na direção de figura paterna, sendo prontamente recepcionada por ele. — Temo que eventos como esse sejam demasiadamente enfadonhos para alguém da idade dela.

— Tem toda razão, é bem provável que esteja cansada e com sono — retorquiu o Duque enquanto a embalava em seus braços. Sua inquietação cessou quase imediatamente ao apoiar o rosto contra o ombro do único que lhe transmitia alguma segurança e a cena foi responsável por arrancar um olhar enviesado da jovem rainha, que via-se impossibilitada de poder esboçar um gesto semelhante àquele. — Imagino que queira voltar para o seu quarto. Eu a levo para lá.

— Espere um pouco, não pode sair assim, preciso que fique e… — Sua tentativa de argumentar restou frustrada, pois Edgar ignorou seus protestos e afastou-se com a pequena em seus braços, o que a fez bufar com indignação. — Eu detesto quando ele faz isso, como se Lis não fosse capaz de sobreviver em sua ausência. Tratando-a assim, irá transformá-la numa garota mimada e dependente.

— A princesa tem um pouco mais do que um ano de idade — lembrou-lhe Evangeline, enquanto lhe dirigia um olhar grave. — Considerando o avançar da hora e o fato de estar cercada de desconhecidos, não me admira o fato de que queira um local familiar para se proteger.

— Vá atrás dele e certifique-se de mandá-lo de volta para cá assim que a puser na cama — Sarah retrucou com rispidez, ignorando por completo as palavras sensatas de sua governanta. Não seria a primeira vez que fora deixada displicentemente de lado daquela maneira, e tinha plena convicção de que não seria a última, o que servia para aborrecê-la ainda mais.

— Tem certeza disso? — arguiu de maneira incerta, temerosa de que ela não estivesse em seu melhor estado de nervos para permanecer sozinha, sem supervisão.

A menina, por sua vez, não deu atenção a governanta, ocupando-se em examinar o Salão em toda a sua extensão. “Que bela hora para Phillip se ausentar”, pensou com irritação, ainda vasculhando o local, até vislumbrar a figura de Robert Banville. A visão fez com que parte de seu descontentamento desaparecesse como mágica.

— Sim, tenho certeza.



Nem bem o cocheiro havia destrancado a porta da cabine, Phillip saltou para fora do veículo com afobação. Afora as lanternas a óleo penduradas nas extremidades da carruagem e a luz pálida da lua cheia, não havia nada mais para iluminar seu caminho até Hallbridge. Nunca antes havia feito aquele trajeto em tão pouco tempo e, em determinados momentos, julgou que a estrutura de madeira não fosse resistir à viagem.

Depois de prospectar todo tipo de cenário desastroso, o jovem Chevalier sequer conseguia pensar com clareza na ocasião, ansiando tão somente por ver sua camponesa o quanto antes. Encontrava-se em tamanho estado de perturbação mental que esqueceu-se das boas maneiras por um instante, adentrando na morada da Família Lewinter sem qualquer cerimônia ou cuidado, produzindo um barulho excessivo no processo. Seus passos apressados logo o levaram até a Sala de Estar, estando o local tomado pela penumbra.

Sem o menor indício da presença de Anya, ele avançou na direção da escadaria, mas acabou por tropeçar num aparador, tornando a produzir ruídos altos de maneira indiscriminada.

— Silêncio! — Demandou a senhora Lewinter, que surgiu como um furacão da cozinha, perguntando-se quem seria o responsável por tamanho estardalhaço àquela hora. Ao vislumbrar a figura atordoada de Phillip, assumiu uma postura maternal de modo quase involuntário. — Por céus, meu rapaz, isso são modos de entrar na casa de alguém? Tem alguma ideia de que horas são? Vai acordar a todos dessa maneira!

— Desculpe-me, mas não estou em meu melhor estado. — O comentário era dispensável, podendo constatar com seus próprios olhos o quão perturbado estava. Pela primeira vez em meses estava vendo-o com roupas amarrotadas, o cabelo desarrumado e um olhar ansioso que em nada combinada com sua costumeira impassividade. — Aconteceu alguma coisa grave? Como a Anya está? Eu recebi uma mensagem e juro que vim o mais rápido que pude.

Edeline crispou os lábios e ponderou por um instante no que fazer. Só Deus podia imaginar o passara naquela tarde, correndo de volta para casa quando soube o estado de sua filha. Não haviam palavras para descrever sua aflição, ao vê-la em pânico pelo simples fato de encontrar-se sozinha, sem qualquer apoio. Se não fosse Elliot, ela não gostaria de imaginar o que poderia ter ocorrido.

— Apenas para que saiba, eu estou profundamente desapontada com você. Talvez tenha realmente vindo logo que teve notícias, mas isto não muda o fato de que não estava aqui quando ela precisou. — Sua voz, normalmente doce estava banhada em seriedade na ocasião. O rapaz sentiu a vergonha tomar conta de si, ao passo que seu rosto esquentava gradativamente, devendo estar corado como nunca na ocasião. No entanto, julgou-se merecedor daquela dose de constrangimento e limitou-se a aguardar pelo que viria depois. — De todo modo, não é algo que caiba a mim julgar. Suba as escadas e entre na segunda porta do lado esquerdo. Em silêncio, se é que isto é possível.

— Obrigada, Edeline — respondeu de imediato, enquanto tomava uma de suas mãos, beijando-a como forma de agradecimento por conceder-lhe permissão para vê-la. — Eu sinto muito por não ter vindo antes, espero que possa me perdoar.

À despeito de sua descrença, ela podia sentir sinceridade em suas palavras, de modo que apenas assentiu, indicando-lhe com um gesto mudo de que não perdesse mais tempo e fosse ao seu encontro de uma vez.

Phillip subiu os degraus tomado por uma ansiedade crescente, sem saber ao certo o que iria encontrar quando finalmente a encontrasse. Estaria furiosa consigo ou decepcionada como sua mãe, o que lhe soava muito pior? Tentando controlar a si mesmo, ele avançou com passos vagarosos, girando a maçaneta lentamente antes de invadir o cômodo que lhe fora indicado.

Diferentemente do que estava esperando, Anya sequer estava acordada. “Ela não esperava por mim antes do entardecer de amanhã”, pensou enquanto aproximava-se da cama, sentindo o peso da culpa sobre seus ombros. Ele deveria ter vindo antes, permanecendo ao seu lado nestes dias tão importantes e decisivos. Recordava-se de quando Sarah estivera em situação semelhante, praticamente presa em seus aposentos, impossibilitada até de caminhar por sua propriedade, um hábito que se tornara seu último consolo naqueles meses de restrição. Edgar estava sempre ao seu lado, cuidando de todas as suas necessidades para que nada lhe faltasse. E quanto a ele? Ausentara-se sem qualquer remorso e agora arrependia-se profundamente por sua falta de zelo.

A camponesa dormia profundamente, jogada sobre a cama de modo displicente, aparentando completa exaustão. Ele contornou a cama, jogando o casaco sobre uma cadeira sem muita atenção, só então dando-se conta de uma terceira presença. Posicionada ao seu lado na cama, enrolada numa manta de algodão, estava o que ele julgava ser a coisa mais linda que já vira em toda a sua vida.

Sem saber ao certo como reagir, o rapaz sentou-se ao chão, a apenas um palmo da beira da cama. Após engolir seco algumas vezes, reuniu coragem o suficiente para tocar em sua testa, afastando os espessos fios negros com toda a delicadeza que possuía. Em resposta, a menina recém-nascida torceu o nariz, e nada além disso. Dormia com tranquilidade, alheia aos problemas e aos males do mundo.

Sob a luz da lua que iluminava o cômodo através da janela aberta, ele a observou por um período indeterminado, até que escondesse o rosto entre os joelhos, permitindo-se um breve momento de fragilidade, externando tudo aquilo que sentia no formato de lágrimas. Sentia-se pequeno, feliz, culpado, orgulhoso e assustado, tudo ao mesmo tempo, não havendo em seu repertório um adjetivo que pudesse exprimir com precisão o que estava verdadeiramente sentindo. Tentava manter-se quieto, mas seu corpo convulsionava e, às vezes, um soluço escapava por seus lábios sem que pudesse evitar. O barulho foi responsável por despertar a jovem loira, que demorou algum tempo para situar no tempo e atentar para o choro angustiado bem ao seu lado.

— O que está fazendo aqui? — Questionou enquanto esfregava os olhos e tentava conter um bocejo sem sucesso. Sentia como se uma manada de cavalos tivesse passado por cima de si, de modo que limitou-se a rolar para o lado com cuidado, apoiando-se sobre o antebraço para que pudesse encará-lo diretamente. — Eu esperava vê-lo apenas amanhã. Como soube?

O jovem Chevalier, por sua vez, não tinha a menor condição de responder àqueles apontamentos todos, mantendo a cabeça baixa enquanto tentava recobrar o controle. Não queria que ela o visse naquele estado, embora imaginasse ser tarde demais para preocupar-se com questões daquela ordem.

— Você está… chorando? — Ela arguiu com incredulidade, sequer conseguindo acreditar no que estava acontecendo diante de seus olhos. Pensava ter sido acordada pelo choramingo da recém-nascida, mas a menina dormia com a mesma paz de antes. — Não fique assim, está tudo bem. Olhe bem para ela e diga se não é a coisa mais perfeita que já viu. É muito quieta também, chorou muito pouco depois de nascer. Acredito que vá ser muito parecida com você, ela até tem o cabelo escuro como o seu.

Aqueles comentários pouco a pouco foram responsáveis por afastar suas mágoas e incertezas, ainda que momentaneamente. Enxugando o rosto com as costas da mão, ele ergueu o olhar mais uma vez na direção da filha, ainda sem acreditar que tinha ali uma pequenina parte de si. Não tiveram mais que alguns minutos de convivência, nem sequer conhecia sua voz ou a cor de seus olhos, mas já se via completamente cativado por ela, por mais insano que o pensamento pudesse lhe parecer.

— Eu gostaria de chamá-la de Diana — Anya comentou com cautela, ansiosa para ver sua reação. Phillip, por sua vez, tinha os olhos vermelhos, o rosto molhado e corado, não tendo condições de argumentar contra aquela decisão. Na realidade, não havia nada para protestar, pois tratava-se de um nome lindo e estava apenas confuso diante daqueles acontecimentos.

— Eu não tenho ideia do que fazer agora — ele confessou, só depois percebendo que aquela eram suas primeiras palavras desde que entrara ali.

— Você precisa fazer do mundo um lugar melhor para ela — pontuou a camponesa, sorrindo largamente enquanto tornava a deitar-se, alisando as bochechas cheias de sua menina com as costas de um dedo.

Embora ele não tenha dito mais uma única palavra naquela noite, seria impossível não concordar com as palavras de sua companheira. Não se tratava de uma tarefa fácil ou simples, mas jamais negaria o desafio. Afinal de contas, a pequena Diana, em sua breve existência, já havia feito do mundo um lugar melhor para ele.



O discurso de abertura da Rainha levou dezenas de outros nobres a congratulá-lo pela conquista recente. Agradecia-os com polidez, mas sem exibir o ar entusiasmado de costume. Ninguém percebeu sua visível mudança de comportamento, o que diminuía sua fé na humanidade, mas igualmente o divertia ao demonstrar a ignorância daquelas figuras, que se julgavam tão superiores. “As pessoas conseguem ser tão obtusas”, pensou com graça ao bebericar do vinho que tinha em mãos.

Era muito fácil conseguir o que queria depois de aprender a ler as pessoas e, principalmente, a dizer-lhes o que gostariam de ouvir. No entanto, uma moeda sempre possui duas faces, e depois de habituar-se àquela realidade, tornava-se difícil encontrar algo digno de admiração. Naquele estágio da vida e estando tão próximo do fim, ele não tinha a menor pretensão de encontrar algo que lhe tirasse o sono ou o fizesse tomar decisões insensatas. O destino, como já havia percebido, adorava provar-lhe como estava enganado.

Muito antes de seu encontro, Robert já havia percebido a aproximação da jovem monarca e não poderia ser de outro modo. Seu vestido, simples ainda que elegante, era de um vermelho intenso semelhante as cores do reino, ao passo que suas joias e coroa traziam rubis que reluziam sob a luz emanada dos lustres. Se o que via em sua frente não era algo digno de fascínio, então já não sabia de mais nada.

— Espero que esta comemoração seja do seu agrado — disse sob um tom amável, enquanto estendia a mão direita em sua direção. Sarah exibia um largo sorriso, sendo impossível não retribuí-la com a mesma intensidade. — Tudo, nos mínimos detalhes, foi planejado pensando em você.

— Me sinto extremamente honrado por ser digno de tamanha graça — Robert pontuou sob um tom galante, curvando-se para beijar as costas de mão que lhe era oferecida. Seus olhos mantiveram-se fixos nos da Rainha durante todo o gesto, não havendo nada em seu redor que pudesse tirar sua atenção da figura altiva e delicada daquele que o agraciava com sua presença. — Tenho muito orgulho de ter participado desta ação que, tenho certeza, nos renderá bons frutos por muito tempo. Me pergunto qual será seu próximo grande investimento em Odarin.

A intensidade no olhar de Lorde Banville era de algum modo hipnotizante, como se o mundo inteiro pudesse caber ali. Sarah sentia-se ligeiramente desconcertada diante de toda a tenção que lhe era dedicada e, talvez por isso, tenha levado tanto tempo para assimilar aquelas palavras.

— Você é inacreditável — respondeu após instantes de reflexão, que culminaram numa risada incrédula, responsável por atiçar a curiosidade do rapaz. Ainda estava aprendendo a decifrá-la, sendo esta a parte mais divertida do processo. — Pensei que depois de tanto trabalho e esforço com a Companhia de Minérios você ansiasse por um pouco de descanso. Isso é, inclusive, o que penso que deveria fazer.

— Garanto-lhe que terei tempo de sobra pra repousar quando chegar a hora de partir. — Sua fala fúnebre fora acompanhada por um riso que ela julgou ser um tanto sinistro na ocasião. Era com frequência que ouvia comentários semelhantes àquele, mas de modo algum conseguia habituar-se com aquilo. Sem que percebesse, sua expressão serena de antes fora substituída por um olhar dolorido, deixando visível como não partilhava de sua opinião.

— Perdoe minha falta de humor — proferiu a menina em voz baixa, enquanto encarava os próprios pés, envergonhada por sua própria franqueza. — A despeito de minha pouca idade, eu já vi mais pessoas partirem do que gostaria de me recordar. Por mais que admire sua grandeza de espírito ao tratar do assunto com tamanha naturalidade, devo dizer que prospectos como esse não me trazem nenhuma alegria.

— Desculpe-me por deixá-la desconfortável — ele apressou-se em acrescentar, inclinando-se ligeiramente em sua direção sem que desse conta. Um sorriso encorajador brotou nos lábios de Sarah, indicando que não estava aborrecida e, com isso, livrando-o da culpa por magoá-la. — Permita recompensá-la com uma dança.

— Posso ser uma grande admiradora desta arte, mas sinto que me falta o mínimo necessário para praticá-la — confessou com algum constrangimento. Não bastasse isso, estar na companhia instigante de Robert e afastada dos demais convidados, fazia com que se sentisse imensamente mais confortável do que envolta de abutres que desejavam desacreditá-la em público. Por isso, a mera perspectiva de colocar a si numa posição de risco não lhe soava nada convidativa. — Eu também não pretendo dar aos meus convidados mais um motivo para rirem de mim.

— Somente um tolo ou um louco seria capaz de rir da Rainha. — Exibindo um meio sorriso enquanto estendia-lhe a mão, o jovem Banville assistiu a indecisão da menina transformar-se numa súbita onda de confiança. — De todo modo, sempre é possível mandá-los para as masmorras por tamanho insulto.

Desta vez, sua tentativa de arrancar uma risada da jovem rainha fora bem sucedida e ele não pode deixar de apreciar toda a sua espontaneidade na ocasião. Sua figura risonha assemelhava-se a coisa mais preciosa que já pudera presenciar, fazendo pensar que trocaria toda a sua fortuna para vê-la daquela forma mais vezes.

Superado aquele singelo momento, ele a conduziu até a área reservadas para danças, bem diante da orquestra, que se concentrava em tocar as valsas mais empolgadas da noite. Para sua surpresa, seus passos eram fluidos e precisos, de modo que Sarah não teve qualquer dificuldade em acompanhá-lo. A música estava alta e por vezes sentiu seu coração palpitar no mesmo ritmo que as notas graves dos instrumentos de sopro.

Sentia a intensidade de seu olhar, e começava a acostumar-se com toda aquela atenção. Era, na realidade, muito reconfortante a sensação de ser guiada por ele. No entanto, percebeu que seu parceiro de dança não o único atento aos seus passos, não tendo dúvidas de que logo todo o salão estaria voltado em sua direção.

— Eu o invejo por sentir-se tão confortável debaixo destes olhares críticos — murmurou após algum tempo. Robert se limitou em erguer uma sobrancelha em sua direção, instigando-a falar mais sobre o assunto. — Tenho certeza que todos os convidados estão olhando para mim, esperando a hora certa para salientar alguma falha minha.

— Não, nem todos — acrescentou com um ar misterioso, percebendo uma ligeira mudança em seu semblante, que passou a exibir traços de uma curiosidade infantil. — Há um senhor idoso dormindo numa cadeira que sequer sabe que estamos aqui.

— Pare de me fazer rir! — Sarah retrucou de imediato, sem conseguir conter uma gargalhada ou o insistente sorriso expansivo que relutava em ser suprimido. — Você não sabe que um monarca é a última pessoa que deveria se divertir em bailes e cerimônias como essa?

— Bobagem, quem escreveu essas regras? — A menina deu com os ombros, não dispondo de qualquer boa resposta para aquele questionamento. — Acredito que esteja na hora de inovarmos um pouco.

Se o Lorde Banville pretendia fazer algo para surpreender a jovem rainha ou aos demais convidados que não deixaram de encará-los durante um único instante sequer, sua ação nunca chegou a se concretizar. Nem bem havia terminado de proferir aquelas palavras quando uma forte dor em seu peito arrancou-lhe todo o ar, seguido por um acesso de tosse que o obrigou a afastar-se dali.

Ignorando por completo a falta de reação dos demais à sua volta, Sarah o conduziu até uma das varandas, para que ele pudesse tomar um pouco de ar fresco. Ambos foram recepcionados por uma brisa gelada que o acolheu como uma benção. Robert precisou apoiar-se no parapeito por alguns instantes, abaixando a cabeça enquanto puxava o ar com força, como se estivesse prestes a sufocar.

— Compreende agora o porquê tenho insistido tanto em seu repouso? — Questionou com o cenho franzido, banhado numa espécie de preocupação maternal. Partia-lhe o coração ver alguém tão cheio de vida definhar daquela maneira. Já havia reparado em sua respiração cada dia mais curta, ou nos fios de seu cabelo que perdiam o brilho tornavam-se precariamente grisalhos, acompanhando cada uma daquelas mudanças com a sensação de inutilidade. Queria poder fazer qualquer coisa por ele, mas nada lhe via em mente. — Diga-me, o que devo fazer para conseguir pôr alguma razão nessa sua cabeça? Farei o que for preciso para que tenha um pouco mais de cuidado consigo mesmo.

Aquelas palavras, tão ingênuas e autênticas arrancaram uma risada debochada do rapaz ao seu lado, sendo novamente interrompidas por um novo acesso de tosse. Suas costas convulsionaram algumas vezes até que se sentisse apto a falar outra vez.

— Guarde suas palavras de conforto para quem realmente precisa delas. Não há mais qualquer esperança para mim e essa já é uma questão superada — afirmou sob um tom seco, não havendo qualquer nota de humor em sua voz desta vez. Em seguida, dirigiu-lhe um sorriso muito distinto dos anteriores, havendo um quê de amargura em seu rosto. — E também, você não pode me dar aquilo que eu quero.

Sarah piscou algumas vezes, não compreendendo o real significado por trás de sua fala. Passou em sua mente a ideia de fazê-lo dizer o que pretendia dizer com aquilo, mas o som da porta de vidro se abrindo chamou sua atenção naquele exato momento. Tornando o rosto, ela pôde vislumbrar a figura de Edgar, que a encarava com uma expressão atônita. Por puro reflexo, ela regrediu dois passos, só então percebendo o quão próxima estava do Lorde Banville, estando antes a menos de um palmo de distância.

— Há um Oficial do Exército requisitando uma audiência particular com você — proferiu o Duque de maneira mecânica, como se sua mente estivesse focada em algo completamente distinto da mensagem que tinha de repassar. — Está aguardando-a na antessala oeste.

— Vá, eu ficarei bem. — Robert disse antes que ela pudesse responder qualquer coisa. Muito embora não estivesse habituado a sensação de desejar algo que não pudesse possuir, a última coisa que gostaria era causar-lhe algum constrangimento. Assentindo em sua direção, insistia para que Sarah partisse, à despeito de seus próprios anseios.

— Tem certeza disso? — Perguntou de modo apreensivo. O rapaz manteve-se silente, e a jovem rainha sabia exatamente o significado daquilo. Acabou optando por não insistir, percebendo que ele não desejava desapontá-la.

Seus passos foram incertos, relutando em desfazer o contato visual, temerosa de que aquela fosse sua despedida. Nenhuma pessoa que conhecia poderia se assemelhar a ele, em toda a sua excentricidade. Havia tantas ideias que ainda gostaria de discutir, não se sentindo pronta para deixá-lo partir. Na realidade, duvidava que algum dia estaria.

Ingressando novamente no Salão Principal, ela manteve seu rosto impassível e concentrado no trajeto, não direcionando ao seu consorte qualquer fala ou olhar. Podia imaginar que tipo de bobagem se passava em sua mente, não se sentindo nenhum pouco inclinada a discutir o assunto. Aliás, ele sequer estava em posição de censurá-la, ao menos não enquanto continuasse sendo afetado pelas decisões na vida de Anya. “Eu sou a Rainha”, pensou ao recordar-se das palavras de Robert, que afastaram qualquer resquício de remorso que pudesse ter. “Ninguém, nem mesmo Edgar, pode me julgar por qualquer que seja a razão”.

Adentrando na antessala oeste, um pequeno cômodo com pouquíssimas mobílias, destinado exclusivamente para tratativas privadas como aquela, encontrou um senhor de meia idade e semblante austero à sua espera. Trajava um elegante uniforme do Exército e, a julgar pelas douradas insígnias que trazia consigo, já havia sido por diversas vezes condecorado por merecimento.

— General Barrymount, que surpresa vê-lo nesta noite — Sarah proferiu de maneira polida, estendendo-lhe a mão para que ele a cumprimentasse da maneira devida. Seguindo os protocolos à risca, ele inclinou-se para beijá-la, sem abdicar do ar de seriedade em momento algum. — Diga-me, que ventos o trazem até aqui, tão distante dos postos da fronteira, onde acredito estarem lotadas suas tropas?

— Peço que me perdoe por interromper as festividades, Majestade, mas temo tratar-se de um assunto da maior urgência. — Portando um ar grave, ele retirou dos bolsos internos de seu casaco duas folhas cuidadosamente dobradas. Uma delas era de fácil identificação, estando a menina habituada a receber relatórios da fronteira com bastante frequência desde seu embate com a Coroa de Greenwall. — Ontem, durante a noite, houve uma investida por parte Exército do reino vizinho. Por sorte, conseguimos contê-los, mas nada nos assegura de que o mesmo não ocorrerá novamente.

— Mas o que poderia ter motivado um ataque assim, sem qualquer razão aparente? — Edgar adiantou-se em arguir, dando um passo à frente para ler o relatório que agora encontrava-se nas mãos de Sarah. — Como sabe que não se trata de um conflito interno entre as tropas? É uma ocorrência bastante comum em zonas fronteiriças.

— Com todo o respeito, Alteza, rixas entre soldados não causam a morte de vinte homens e a retirada de campo de uma dezena de feridos — retrucou o Oficial com uma nota de asco em sua voz. Empertigando-se na direção da jovem rainha, ele desdobrou o segundo papel, apontando-o em sua direção. — Precisamos que assine isto, Majestade.

— Sim, é claro — assentiu com a voz trêmula, recebendo o segundo ofício em mãos. Ela sabia desde o princípio, tinha certeza de que o Rei de Greenwall não deixaria sua afronta de lado, e aquela era a retaliação que tanto temia. — Uma ordem para reforçar as tropas na fronteira, eu suponho.

— Não, Majestade, essa não nos parece ser a medida adequada para um momento como esse — pontuou o General Barrymount, dirigindo-lhe um olhar endurecido pelas intempéries da vida como militar. — O que precisamos no momento é uma ação de impacto, algo que ponha os soldados de Greenwall em seu devido lugar. Trata-se de uma ordem para autorizar um ataque direto a tropa atacante e às outras três adjacentes.

— E você ousa elaborar um documento com este teor sem consultar a Rainha ou o Conselho Fundador? — Edgar questionou com indignação, mal podendo acreditar no que acabara de ouvir. — Eu não me recordo de ter-lhe sido concedida autonomia para tanto.

— E eu não me recordo de tê-lo visto prestar um único dia de serviço junto ao Exército para compreender as especificidades de nossas funções — rebateu com ferocidade, tornando a dirigir-se a menina de igual modo. — Precisamos de uma resposta imediata. Assine a ordem e nos autorize a atacar as tropas de Greenwall que feriram o Acordo de Paz.

Sarah apenas escutava, sentindo-se completamente incapaz de proferir uma única palavra. Phillip já tinha a alertado para preparar-se para o pior, mas sem tê-lo ali ao seu lado, não conseguia sequer formular um único pensamento que fosse. Suas pernas tremiam e seu estômago dava voltas enquanto se questionava como poderia lidar com as restrições de uma gravidez com um conflito daquela dimensão em suas mãos. Assim como o General havia lhe dito, não havia tempo hábil para reunir o Conselho ou aguardar o retorno de seu Secretário Real, teria de decidir por conta própria.

— Eu não assinarei isto. — De alguma forma, conseguiu fazer com que sua voz soasse calma e confiante, ainda que internamente ela estivesse em frangalhos. A sensação que tinha era de não pertencimento, como se assistisse a cena como uma mera espectadora, fora de seu próprio corpo. — Tem minha permissão para reforçar as tropas, mas não para atacá-los. Eu não enviarei centenas de soldados para um campo de batalha até termos certeza de que não se trata de um conflito interno, como Edgar bem pontuou. Seria como condenar toda uma nação pelos atos de um grupo isolado, distanciando-se muito daquilo que considero ser sensato.

O Oficial bufou de fúria diante daquela resposta. Recebendo de volta a ordem que fora elaborada às pressas, ele a guardou no mesmo bolso de antes, passando a caminhar em direção à saída. No entanto, antes de se retirar, tornou o rosto severo para a menina inexperiente que acreditava ser Rainha apenas por ter uma coroa empoleirada em sua cabeça, dizendo-lhe com um ar de gravidade:

— Permita-me lembrá-la de algo importante, Majestade. Depois de abaterem o Exército, é atrás da sua cabeça que eles viram. Espero que esteja pronta para recebê-los.

A porta se fechou com um clique baixo e no instante seguinte, as pernas de Sarah cederam por completo, levando-a ao chão enquanto era tomada por choro angustiado. De imediato, Edgar correu para ampará-la, ajoelhando-se ao seu lado e trazendo-a até seus braços, na tentativa de que o gesto pudesse acalmá-la.

— Não se preocupe, você fez a escolha certa — ele murmurava em sua direção, abraçando-a com força enquanto afagava seus ombros.

— E se não tiver sido a escolha certa? — Arguiu de modo desesperado, escondendo o rosto na curva de seu pescoço. Haviam tantas variáveis a serem consideradas que sua cabeça parecia estar prestes a explodir. — E se eu tiver acabado de condenar a todos nós?

— Então iremos enfrentar as consequências disso juntos — assegurou-lhe enquanto depositava um beijo em sua testa. Ele precisaria reunir o Conselho na manhã seguinte, enviar uma dezena de correspondências e, por mais que detestasse fazê-lo, pedir que Phillip retornasse imediatamente. — Compreendo os seus temores, mas lembre-se de que nunca estará sozinha. Eu sempre estarei ao seu lado.

Àquelas palavras foram responsáveis por fazê-la acalmar-se. As lágrimas secaram instantes depois, mas ela permaneceu quieta ali, dentro dos braços de seu consorte, o último lugar do seu mundo em que ainda poderia considerar seguro.


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Notas finais do capítulo

Eu não achei que esse dia fosse chegar e talvez por isso tenha sido tão difícil vir até aqui postar esse último capítulo. Não me sentia pronta para dizer adeus aos personagens que me acompanharam por tanto tempo que, como já havia mencionado, surgiram na cabeça de uma menina imatura e sem muito conhecimento de mundo nove anos atrás. A ideia inicial, por mais interessante que fosse, permaneceu esquecida por muitos anos, sem que lhe fosse dada a devida atenção.

Somente muitos anos depois, quando percebi que tinha me desconectado de mim mesma, tendo abdicado de tudo aquilo que me dava prazer, fossem leituras despretensiosas ou a própria escrita, foi que decidi retornar, em busca da menina sonhadora que tinha ficado em algum lugar do passado. E foi assim que essa história veio parar aqui. Os meses se passaram, as ideias foram amadurecendo, as pessoas foram se aproximando e quando me dei conta, The Queen's Path tinha atingido uma proporção que jamais poderia ter imaginado, se tornado uma parte essencial da minha rotina.

Todos os personagens são, em maior ou menor grau, um reflexo de mim mesma. Seja a Sarah como o seu temperamento arredio e indomável; o Edgar com seu péssimo hábito de sacrificar-se pelos outros, mesmo pondo em risco sua própria saúde mental; o Phillip com a sua dificuldade de relacionar-se com as pessoas ao seu redor; a Anya com seu instinto de buscar o aspecto positivo de todas as coisas; o Elliot em seu amor incondicional pelos cavalos; a Evangeline com sua impaciência e temperamento explosivo.

Explorar as pequenas nuances de suas respectivas personalidades foi uma jornada de autoconhecimento. Cada obstáculo superado me inspirava a seguir em frente em minha própria realidade. Talvez por isso eu sentisse a necessidade de compartilhar essa trama com o mundo. Queria que esses personagens inspirassem as pessoas assim como eles me inspiravam, talvez alguém estivesse precisando dessas palavras como um dia eu precisei.

The Queen's Path se encerra com um final aberto, um recurso literário que não me agrada tanto, mas que tem uma razão de ser. Por tratar tão intimamente da vida desses personagens, acredito ter ficado claro que a morte de um vilão ou a superação de um determinado problema não acaba com os obstáculos da vida. Eu poderia escrever sobre isso para sempre, mas acredito que minha mensagem já tenha sido dada e é por isso que escolho esse momento para me despedir. Todos estamos em constante processo de amadurecimento. O que se iniciou com uma princesa mimada e sem qualquer conhecimento se encerra com uma rainha cheia de incertezas, mas que dispõe de força suficiente para seguir lutado em prol daqueles que ama. Quis deixar essa mensagem para mim mesma, mas acredito que sirva igualmente bem aos leitores, que devem buscar forças para continuar lutando todos os dias, independentemente do que seja o seu obstáculo.

Ainda pretendo escrever um epílogo, talvez alguns spin-offs depois disso, mostrar um pouco como ficou a vida de nossos personagens depois alguns anos, embora ainda não possa estimar uma data para nenhum desses projetos. Muitos me pedem por uma continuação, mas não tenho certeza se seria um projeto viável. Alguns me perguntam sobre a possibilidade de uma publicação e, bem, é uma possibilidade.

Agradeço imensamente aos que deram uma chance a essa história, que marcou a minha vida e espero, de todo o coração, que também tenha marcado a de vocês. Estarei sempre à disposição de todos, seja para desabafar, debater algum assunto ou simplesmente jogar conversa fora. Essa história me proporcionou descobertas incríveis e, entre elas, estão as pessoas maravilhosas que tive a oportunidade de conhecer. Aos interessados em manter contato, a história tem um grupo no Whatsapp, basta me enviar uma MP com seu número e então teremos muito o que conversar. Todas as novidades sobre eventuais ramificações e continuações desse projeto principal serão disponibilizadas no meu perfil e, é claro, no grupo que mencionei.

Novamente, muito obrigada a todos.

Vittoria Cunha da Costa.



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