The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 3
Capítulo III - 12 de Maio de 1863 (Parte I)




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Henrique vagava pelos corredores do castelo à passos lentos. Ainda era cedo, e estava certo de que seu desjejum não estava pronto. No entanto, não suportaria passar mais um minuto sequer acamado em seus aposentos. Ainda não lhe era recomendado expor-se ao ar livre, então ao menos uma caminhada pelos numerosos ambientes do castelo havia de lhe fazer algum bem.

A febre havia cedido já tinha um tempo, e com ela os delírios que tanto o importunavam, muito embora ainda sustentasse os sintomas de seu fígado debilitado. Seu corpo parecia queimar por dentro, e como se isto já não bastasse, a imagem do fantasma de Katherine rondando o quarto com muita propriedade, como se o cômodo ainda a pertencesse, enfurecia-lhe os nervos e o fazia proferir todo tipo de praguejo. Vê-la andando de um lado para o outro com suas passadas leves e silenciosas, encarando-o com desprezo, zombando de seu estado de decadência o fazia recordar-se da maneira como os urubus aguardavam para comer as carniças. Ela estava disposta a aguardar pacientemente a chegada de sua hora, no intuito de arrastar sua alma para onde quer que estivesse.

Ele balançou a cabeça com força, tentando afastar aquelas memórias horríveis. Sempre que pensava em sua rainha, seu estômago revirava-se e o coração enchia-se de raiva, causando-lhe violentos acessos de cólera, que seu Secretário havia presenciado diversas vezes nos últimos dias.

Seus passos pararam subitamente. Os corredores costumeiramente eram adornados com decorações luxuosas, vasos e cerâmicas raras, quadros de pintores famosos, alguns guardando parte da árvore genealógica da Família Real. Pouco depois do nascimento de Allen, alguém achou por bem emoldurar um grande retrato de Katherine no Hall Principal. Estava sentada em um dos bancos próximos ao jardim, com os antebraços apoiados do encosto de seu assento. Usava um vestido vermelho escurecido com bordados dourados distribuídos pelo torso, uma de suas vestes prediletas. O cabelo negro estava parcialmente preso, com algumas poucas madeixa onduladas caindo em torno da face pálida e as bochechas rosadas. Sua expressão demonstrava um sorriso tímido, contido, acompanhado do olhar enigmático que lhe era tão característico. Encarando sua imagem eternizada à tinta óleo, ele podia sentir outro de seus acessos de cólera iniciando-se.

Sarah acabava de dobrar o corredor. Precisava passar pelo Hall Principal se quisesse alcançar a Sala de Jantar, e surpreendeu-se ao encontrar seu pai  de pé. Não o via há dias, pois Evangeline proibiu quaisquer visitar em seus aposentos, já que os médicos eram incapazes de precisar que tinham ali uma doença contagiosa. A menina não chegou a insistir no assunto, estando demasiadamente concentrada em suas tarefas. Com muito esforço havia conquistado seu dia livre e tratou de acordar bem cedo para fazer tudo valer a pena.

Aproximando sua mão pequenina da de seu pai, ela tentou chamar-lhe a atenção. No entanto, o monarca não pareceu reparar em sua presença, e ao inces de agraciá-la com algum gesto caloroso, pôs-se a chamar seu Secretário Real com um vigor excessivo para alguem que se encontrava convalescido. Augusto nao tardou a surgir por um dos caminhos que levavam até ali, exasperado de ver seu semhor esforcando-se daquela maneira.

— Não deveria estar caminhando por aqui, ainda está se recuperando! — o oficial exclamou, enquanto buscava retomar o fôlego. — Em que posso lhe ser útil?

— Não poderia ficar mais tempo isolado naquele quarto como se fosse um leproso — Henrique retrucou com severidade, da maneira como lhe era característico. — Tire esse quadro daqui, imediatamente. Coloque-o no fundo de um armário ou queime-o se achar conveniente, mas desapareça com isto daqui.

Augusto não conseguiu mascarar sua expressão de espanto, mostrando-se boquiaberto, sem compreender a motivação por detrás daquela ordem. Estavam falando do retrato da falecida rainha Katherine, uma verdadeira obra de arte, tendo o pintor sido muito afortunado em conseguir reproduzi-la com tanta precisao, eternizando assim suas beleza juvenil. Sarah, cuja a presença era ignorada por ambos, trazia em seu semblante a mesma reação, sofrendo para entender o que acontecia ali. Aquela era uma das raras pinturas de sua mãe, a única a que tivera acesso e através da qual pôde conhecer as feições de sua genitora.

— Papai, não pode fazer isso, esse é o quadro da mamãe, o único que nós temos! — ela exclamou em tom de súplica, enquanto puxava-lhe o braço com força.

Rei Henrique não deu atenção aos protestos de seu Secretário, muito menos da menina que importunava-lhe os nervos. Sacudindo o braço com força, não foi difícil livrar-se dela, que caiu sentada devido ao impacto do empurrão. Retirou do recinto logo em seguida, tomado por uma fúria semelhante a um furacão, seguindo para Deus sabia onde.

Evangeline surgiu segundos depois, guiada pelo som dos gritos e do barulho oco que se sucedeu a queda de Sarah. A menina parecia zonza, mas não demonstrava estar machucada. Ajudando-a a se reerguer, seu olhar atento vislumbrou o exato instante em que dois guardas retiravam o quadro de sua antiga senhora da parede, com excessivo cuidado para não danificá-lo. Logo entendeu o que se passara ali, mas optou por não tecer comentários de modo a não inflar ainda mais a discussão.

Tal logo conseguiu manter-se de pé, a princesa saiu correndo em direção a saída do castelo. Evangeline achou prudente não segui-la naquele momento. Talvez quisesse ficar sozinha. Se a governanta bem a conhecia, este era o tipo de situação que a levaria a ficar horas a fio conversando com seus equinos favoritos. Que ela poderia fazer? Era seu dia livre, afinal de contas.

 

 

— As pessoas sempre dizem: “você vai entender quando for mais velha”. Mas acho que é tudo uma grande mentira, não concorda?

A menina dirigiu seu olhar inquisidor para Ourives, o cavalo de crina dourada que arrancava vigorosos tufos de um bloco de feno que havia sido abandonado ao lado de fora de sua baia.  O animal devolveu o olhar e soltou um relincho baixo, o que a satisfez de imediato. Sarah havia utilizado o bloco para subir na divisória de sua baia, onde atualmente encontrava-se sentada, enquanto que o cavalo aproveitou o apoio utilizado para fazer um furtivo lanche antes da primeira refeição do dia.

— Existe algum sentido em retirar o quadro da mamãe do Hall Principal? Não responda, eu mesma lhe digo: não há nenhum! É simplesmente ultrajante ter de viver sob as ordens dos outros. Você é um sortudo, Ouvires. Como não é bom em nada, ninguém cria muitas esperanças de que vá fazer algo útil, então pode aproveitar sua vida sem ter de se preocupar com expectativas que não existem. — Ela riu por um segundo, e o cavalo relinchou novamente como se concordasse com seu raciocínio. Porém, seu humor murchou em instantes. — As pessoas esperam grandes coisas de mim, imagino. Menos o meu pai. Creio que muitas vezes ele sequer se dá conta de que estou ali.

Embora não deixasse transparecer, a menina muito se incomodava com ar relapso de seu pai. Nas raras ocasiões em que houveram festas e jantares no castelo, não só ele como os outros nobres falavam com muito orgulho da postura de Allen, prospectando nele um excelente monarca. Todos o admiravam, inclusive ela própria, mas quando a discussão migrava para seu próprio futuro, as pessoas limitavam-se a desejar que pudesse ser uma boa esposa. Todos tinham uma posição de importância dentro daquele sistema, assim como funções personalíssimas, tornando cada Lorde ou Barão essencial para que tudo se mantivesse em ordem. Menos a princesa de Odarin; ela deveria recolher-se em sua insignificância, limitando-se a ser uma esposa virtuosa.

Pensar naquela espécie de futuro lhe causava um sentimento de revolta que, por vezes, a motivava em seus pequenos atos de rebeldia. Ora, se seu futuro resumiria-se tão somente ao seu casamento, por quê deveria ter tantas lições ou trazer consigo um conhecimento tão vasto e em tantas áreas distintas, se em breve não teria autorização para contestar seu consorte? Nada ali lhe soava minimamente coerente.

Entretida em seus próprios dilemas, mal pôde perceber o momento em que Elliot adentrou nos estábulos. Somente se deu conta de sua presença quando o rapaz vozeirou num tom angustiado:

— Não acredito que está alimentando os cavalos antes da hora! Se Earnshaw vê algo assim, arranca minha cabeça fora com uma enxada!

Exasperado, o menino correu até o bloco de feno que àquela altura já não detinha mais o formato de um bloco, não passando de alguns tufos de feno amarrados por um barbante.

— Eu não estava alimentando eles, mas precisei de um apoio para subir aqui em cima — Sarah defendeu-se, a teimosia fazendo com que sua voz soasse ainda mais aguda que o habitual. — Não tenho culpa se Ourives não tem modos e comeu tudo sozinho.

— Essas coisas não aconteceriam se tivesse uma altura normal, sem parece com um gnomo de jardim… Ai, isso dói! — Elliot afastou-se, levando as mãos à cabeça ainda sentindo-se meio desnorteado. A paciência da princesa muito se assemelhava à um dente de leão, esvaindo-se rapidamente com a menor das provocações. Para descontar a falta de modos do aprendiz à sua frente, um chute certeiro atingiu seu ombro, gesto possível apenas por estar sentada em cima da mureta que delimitava o espaço entre cada baia.

O menino afastou-se com um ar amuado, dando continuidade aos seus afazeres, sendo observado atentamente pelos olhos da menina. Ocupava-se em esvaziar o compartimento de cada cavalo, limpando-o com um esfregão, renovando então as provisões de água e comida. A mistura alimentícia dos animais era composta por feno, grama fresca e grãos variados. O composto era mantido dentro saco meio surrado, sendo preparado pelo próprio Earnshaw, uma fórmula que ele mesmo havia inventado para potencializar a nutrição dos cavalos. Elliot já conhecia as proporções de cabeça, mas nem assim o velho permitia que ele assumisse a função. “Deixar você preparar a mistura? Só por cima do meu cadáver! Você vai acabar envenenando meus cavalos, isso sim”, era o que ele sempre dizia.

Findo o trabalho com as baias, o aprendiz sentou-se por um momento num balde emborcado, enquanto massageava os próprios ombros. Suas tarefas não passavam de uma pequena parcela das atribuições do velho Earnshaw, mas não deixavam de ser cansativas, ainda mais quando o executor não passava de uma criança de doze anos.

— Se já terminou, sele um cavalo, pois nós vamos dar um passeio.

— Até parece que você sabe cavalgar — o menino zombou, mas logo se arrependeu daquelas palavras e fechou os olhos com força, aguardando outra agressão vinda da princesa como punição por sua implicância. Por sorte, nada ocorreu nos segundos seguintes e ele tornou a encará-la, ainda receoso.

— Por isso que disse “nós vamos”, e não “eu vou”. Evangeline tinha razão, você é realmente iletrado. — Elliot revirou os olhos diante de tal imputação. Não esperava outra coisa e sua simpatia pela governanta era inexistente.

— Ao menos eu sei cavalgar — ele resmungou, enquanto se levantava para cumprir aquilo que lhe havia sido solicitado.

 

 

O horário do almoço já se aproximava, e Evangeline sequer imaginava o paradeiro da princesa. Não que houvesse realmente algo a ser feito, pois a menina tinha feito por merecer seu dia de descanso. No entanto, ociosidade era algo que a incomodava profundamente, e sem outras opções, decidiu ir até a cozinha verificar o andamento das panelas. Era um tanto gratificante observar o serventes movendo-se em sincronia outra vez, compenetrados em temperar a comida, lavar os pratos ou mesmo secar a louça. Apenas ela conseguia trazer alguma ordem àquele caos, sentindo-se orgulhosa de si mesma pelo bom trabalho.

Martha destampou uma das panelas, deixando que a fumaça tomasse de conta do local, enquanto o aroma agradável da carne cozida invadia as narinas dos presentes. Tinha a tez escura, com os cabelos castanhos constantemente escondidos debaixo de um lenço. Servia para a Família Real há anos, e havia sido com esta ocupação que criara os dois filhos com toda a fartura que uma família de serviçais poderia almejar.

— A que devemos o prazer da sua companhia aqui conosco, Evangeline? — questionou a cozinheira, mexendo o conteúdo da panela recém destampada. — É muito raro vê-la aqui, ainda mais de braços cruzados.

— Sarah não terá classes hoje. Dei-lhe um dia de folga, para que mantenha a concentração durante os estudos — respondeu grandes delongas, ainda distraída com o aroma agradável que tomava conta do ambiente.

— Ora, pois fez muito bem! Ela não passa de uma criança, e mesmo assim já tem tantas responsabilidades — Martha retrucou de imediato, tornando a fechar a panela e secando as mãos no avental já não mais branco que trazia consigo.

— Que injusto, você não dizia isso para mim quando eu era mais nova! —  A fala de Maria chamou a atenção das duas senhoras. Filha mais velha da cozinheira, a jovem ocupava-se em guardar uma pilha de pratos limpos em seus respectivos armários.

— Não se meta, Maria! Discutiremos seus privilégios quando fizer parte da realeza. Até lá, nem mais uma palavra.

Embora o gesto não fosse usual, Evangeline foi incapaz de conter uma discreta risada ao presenciar uma típica cena entre a mãe e filha. Maria deveria ter em torno dos doze anos quando começou a descascar verduras e cortar legumes, deixando a humilde cabana em que habitavam sob a responsabilidade de seu irmão mais novo.

— O almoço logo estará servido, e tenho certeza de que Sarah deve estar acompanhada de Jacques. Por que não vai lá chamá-la? — a cozinheira sugeriu, assim que sua filha ausentou-se de modo resignado.

— Eu? De modo algum! Ela retornará quando estiver com fome. Além disso, prefiro não estragar meu dia olhando para aquele jardineiro estúpido.

— Ora Evangeline, não seja tão arisca. Você sabe o que as pessoas comentam na vila, não é mesmo? — Martha atiçou a curiosidade da governanta com uma piscadela, sendo aquilo suficiente para deixá-la ansiosa, uma vez que estava incrédula quanto aos boatos que percorriam a vila de serventes. — Todos comentam que sua hostilidade se dá pelo fato de nunca ter sido cortejada por ele. É verdade?

— Isso não tem fundamento algum! — Poucas coisas conseguiam irritá-la mais do que mentiras e fofocas, e aquela confissão gerava em si um sentimento de revolta. A cozinheira observava sua reação em meio a risadas despretensiosas. — Quem inventaria um boato desses? Logo eu, frustrada por não ser cortejada por um jardineiro ordinário? Faça o favor de não me ofender dessa forma!

— Deixe de bobagens, não há nesse castelo servente mais polido e charmoso que Jacques. Além do mais, quem há de saber onde essas histórias começam? Ouvimos cada coisa naquela vila que, se fôssemos acreditar em tudo… Minha nossa, seria um estrago — ela finalizou, rindo novamente consigo mesma.

— Pois esteja certa de que essa é a coisa mais estapafúrdia que ouço em anos! Eu o detesto, tenho certeza que o sentimento é recíproco. Além disso, não existe nenhum homem que possa me fazer uma pessoa melhor, então não tenho razões para perder meu tempo com eles.

O humor da governanta piorou de modo significativo após aqueles comentários. No entanto, não tinha sido inteiramente precisa em sua fala. Embora a cozinheira não pudesse antever, sabia exatamente na mente de quem aquele absurdo surgiu pela primeira vez. Ainda apoiada contra a porta aberta, ela fechou os olhos por um instante, buscando no fundo de seu coração a memória do dia em que ouvira tamanha tolice...

 

— Katherine, onde pensa que está indo? — questionou o jardineiro ofegante, tendo dificuldades em acompanhar seus passos.

Milady, você não pode simplesmente sair de um encontro assim, é loucura. Principalmente quando milord Henrique pediu expressamente que você o ajudasse desta vez. Por favor, eu lhe imploro, volte para o castelo imediatamente antes que nosso rei seja avisado. — implorava uma jovem Evangeline que praticamente corria atrás de sua senhora.

— Eu sou a Rainha, esqueceram? Decido quando devo ir e quando devo ficar. — Katherine cantarolou sem olhar para trás e sem reduzir a velocidade de seus passos.

Ocorria no castelo um encontro qualquer acerca de um novo tratado sobre demarcação de terras e ela não estava nenhum pouco interessada no assunto. Henrique havia lhe ordenado que fizesse companhia as esposas dos nobres que estavam no encontro, certificando-se que as senhoras não deveriam ficar entediadas, o que poderia ocasionar em interrupções desnecessárias às negociações. Ela respondeu que não era integrante de nenhuma companhia teatral ou circense para que tivesse de entreter outras pessoas e foi duramente repreendida com o olhar severo de seu marido. Não que em algum dia de sua vida ela tenha se intimidado com suas expressões sérias e aborrecidas. Comeu biscoitos e tomou chá com as senhoras por uns breves momentos, pediu licença para resolver um assunto pessoal e saiu castelo afora, buscando algo que pudesse lhe entreter mais que damas supérfluas e arrogantes. Evangeline, sua dama de companhia e aprendiz tratou de correr atrás da alteza e convencê-la a retornar para o castelo, antes que houvesse consequências piores para sua desobediência e rebeldia.

— Algo me ocorreu agora. — Katherine proferiu em voz alta, ainda que estivesse falando consigo mesma. Ela parou subitamente de andar, permitindo que Evangeline e Jacques pudessem lhe alcançar. — Por qual razão estão tentando me impedir de sair do castelo? Acho que perdi o ponto da coisa toda.

— Evangeline está preocupada com você, podia ao mesmo respeitar isso. — Jacques respondeu de maneira entrecortada, ainda arfava muito e se questionava como a rainha conseguia correr longas distâncias daquela maneira sem se cansar.

— Pedi para Jacques que me ajudasse a lhe convencer a voltar. Você sempre escuta mais a ele do que a mim. — Evangeline protestou, tão cansada daquela situação quanto o jardineiro.

— Não seja ciumenta Evangeline, não combina com você. — Katherine repreendeu a governanta sem muito empenho, não era o tipo de assunto que valesse qualquer desgaste. Mas então, uma pequena centelha acendeu-se em sua cabeça e ela mal pôde conter seu sorriso zombeteiro. — Vocês formariam um belo casal, sabia? Já cogitaram o assunto?

Os dois serventes proferiram um “Como?” espantado em uníssono, certamente nenhum dos dois poderia cogitar uma ideia daquelas nem mesmo em mil anos. A rainha ria divertidamente da cena, fazia parte de um de seus joguinhos pessoais, falar coisas aleatórias tão somente para zombar da expressão de assombro das pessoas logo em seguida. Ela girou sobre o calcanhares e saiu caminhando, de modo não tão apressado desta vez. Jacques recuperou-se do choque mais rapidamente e correu para alcançá-la.

— Que raios acabou de acontecer aqui? Acha mesmo que eu seria capaz de me juntar à pequena ladra? Porque sinceramente, eu prefiro viver na legalidade. — ele proferiu de modo baixo, para que a menina que caminhava alguns passos atrás deles não pudesse conhecer do teor da conversa.

Katherine levou as mãos ao coração enquanto soltava um profundo suspiro. Jacques sabia bem o que estava prestes a acontecer. Era tão característico dela, dramatizar suas palavras como se fosse uma atriz ou cantora de ópera. Ele não costumava ver graça, geralmente aquelas encenações eram acompanhadas de algumas zombarias, mas por vezes não podia evitar, suas expressões eram demasiadamente engraçadas e ele se admirava como a rainha podia rir tanto de suas próprias brincadeiras.

— Que disparate ter de ouvir isso! — ela disse com uma expressão de profunda tristeza, que obviamente não era autentica. — Diz preferir a legalidade, logo você, o rapaz que roubou meu coração!

Jacques espantou-se com aquelas palavras e não soube o que dizer. Tratava-se de mais uma das zombarias de Katherine e, ainda assim, ele se iludia sempre que ouvia qualquer coisa daquele gênero. Definitivamente, ela sabia como mexer com a mente de qualquer um. A jovem rainha logo caiu em gargalhada, muito provavelmente da expressão que o jardineiro fazia. Rapidamente e sem pedir qualquer licença, ela deu um rápido beijo em seus lábios, não passando de um contato rápido, ato costumeiro dela e que sempre o deixava profundamente envergonhado.

— Jacques, você é tão bobo! — ela exclamou e logo pondo-se a correr novamente, afastando-se ao som de sua própria risada infantil. Desta vez ela não foi seguida por nenhum dos dois. Evangeline estava abismada com aquela cena, nunca poderia imaginar sua milady aos beijos com um serviçal qualquer. Até então, ela imaginava que seu envolvimento com o jovem jardineiro não passava de uma amizade inadequada.

— Essa asneira que acabei de ouvir, diga-me que não é verdade! — Evangeline exigiu dirigindo-se à Jacques, que tinha o olhar distante, observando enquanto sua amada se distanciava sem rumo certo.

— Quando você souber a resposta para essa pergunta, me avise. — ele respondeu dando os ombros, enquanto fazia menção de voltar ao trabalho. — Quem neste mundo pode precisar quando Katherine está sendo sincera ou não?

 

Evangeline suspirou mais uma vez, não fazia sentido ficar revivendo aquele tipo de memórias. Aquela imagem lhe assombrava, vê-la se afastando sem olhar para trás, sem demonstrar medo de nada, totalmente ignorante do perigo que o futuro lhe reservava. Mesmo absorta em memórias, ela ouviu claramente seu nome sendo chamado. Dirigiu-se até o salão de jantar e havia um mensageiro a sua procura. Ele trazia uma carta consigo, cujo o remetente era ninguém menos que o próprio Príncipe Allen. Somente aquela informação já lhe causava um mal presságio. Ela dispensou o mensageiro e abriu a carta de modo apressado, irritando-se com os próprios dedos trêmulos.

Não haviam mais que algumas linhas escritas. Diferentemente de sua irmã mais nova, a caligrafia do jovem príncipe era impecável e seu vocabulário era bastante polido. Suas cartas quase sempre eram curtas, dada a objetividade que lhe era inerente. Depois de ler a mensagem duas vezes, apenas para certificar-se de que havia compreendido seu conteúdo, ela enfiou os papéis dentro do envelope e dirigiu-se até os dois guardas mais próximos.

— Tenho uma ordem expressa do Príncipe Allen Miglidori para localizar a princesa Sarah imediatamente. Devem trazê-la de volta ao castelo em segurança o mais rápido possível.

Os dois soldados assentiram para a governanta e puseram-se a correr para fora do castelo. Ela subiu as escadas do Hall Principal apressadamente e felizmente acabou por encontrar-se com Augusto no meio do caminho.

— Graças a Deus, estava a sua procura! Como está o estado do Rei Henrique? — ela questionou, mal conseguindo conter sua ansiedade, o que despertou diversas suspeitas no Secretário Real. Algo não estava certo.

— Não muito melhor. O elixir deixado pelos médicos não tem o efeito desejado. Livra-o da febre e consequentemente das alucinações, mas não melhora em nada a condição do estômago e do fígado. Aconteceu alguma coisa?

— Acha que ele tem condições de realizar uma viagem? — ela arriscou, mordendo o canto dos lábios, deixando transparecer ainda mais seu nervosismo, que não era nada típico de sua personalidade.

— Ficou louca? É claro que ele não tem a menor condição. Mal consegue levantar da cama sem ajuda! Evangeline, o que está acontecendo? —  Augusto perguntou começando a ficar nervoso por tabela, ainda que não soubesse a razão para a governanta encontrar-se naquele estado de nervos.

— Acabei de receber uma carta do príncipe Allen. Ele tem informações de que uma rebelião está se formando e pretendem deflagrar o ataque inicial ainda hoje, durante a madrugada. — o secretário ficou vermelho apenas de ouvir aquela informação. Evangeline apressou-se em segurá-lo pelo braço. — Essa informação não pode se espalhar de modo algum, ou eles podem antecipar o ataque. Temos que evacuar o castelo até o entardecer. Portanto, eu vou cuidar das coisas da princesa e você vai arrumar um jeito de transportar o rei até Hallbridge, entendeu? Teremos asilo nas casa dos Avelar.

O Secretário Real tinha pelo menos uma dúzia de perguntas a fazer, mas sua fala fora interrompida pelas badaladas do relógio, indicando que já era uma hora da tarde. Ainda nervoso e desnorteado, ele engoliu sua perguntas à seco, afinal de contas, não havia um minuto a perder. Cada um seguiu em direções opostas, atrás de completar seus próprios afazeres.

Enquanto caminhava apressadamente até o quarto da princesa para arrumar seus pertences mais importantes, Evangeline punia-se mentalmente, repetindo diversas vezes: “Que ótimo dia para perder a princesa de vista… Excelente idéia Evangeline, excelente mesmo!”.


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