Contos de Aurora escrita por Wi Fi


Capítulo 6
Conto Seis: A Necromante


Notas iniciais do capítulo

Esse conto é sobre uma personagem que eu gosto demais ♥ Espero que vocês também gostem dela, ela é estranha mas é boa pessoa. Divirtam-se!



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Corina Amalie estava empolgada por estar nos territórios dos anões. Athelisa, a cidade híbrida, era fascinante – parte subterrânea, parte surgindo do chão em meio de uma montanha. Corina havia recebido uma carta da rainha Fallon para passar alguns dias no reino. Ela já conhecia a rainha havia anos, mas o convite veio como uma surpresa – a rainha estava ocupada demais recuperando seu povo de uma guerra contra seus vizinhos humanos – e Corina não esperava que a rainha e lembrasse de sua existência.

A mulher também esperava que seu cachorro não fosse um problema. Fortunato era seu fiel companheiro desde a adolescência e nada no mundo a separaria dele. Corina sabia que os anões gostavam dos cachorros grandes, que os ajudavam a carregar objetos pesados nas minas, mas Fortunato era um simples cão doméstico, saltitante e cinzento.

Quando o barco adentrou Athelisa pelo rio que cortava a cidade toda, e atravessou os portões gigantescos de cobre, Corina imediatamente se sentiu uma estranha. Tudo ao seu redor, com exceção do tal marco de entrada, era diminuto – as casas que iam da margem do rio até as entranhas da montanha, as carroças e os cavalos, as ferramentas de trabalho que os mineiros carregavam. Era de certa forma curioso como um espírito orgulhoso e briguento cabia dentro de criaturas tão pequenas, mas Corina tinha que ser educada em reinos que não eram o seu.

Aos poucos, as outras pessoas do barco foram deixadas em terra firme, até que Corina ficou sozinha, no convés superior, com Fortunato abanando o rabo ao seu lado.

— Ei garoto – ela sorriu para o bichinho, se abaixando para fazer carinho – Esse é um lugar novo, hein? Nunca estivemos com anões antes.

Ela se sentou no chão, com os pés balançando para fora das grades do navio. O vento gelado que soprava de dentro da montanha bagunçava seu cabelo e Corina tirou o chapéu, para que não o perdesse. A mulher começou a se perguntar o porquê da rainha Fallon tê-la convidado – ou melhor, por qual razão ela estava interessada em seus poderes.

Depois de cerca de uma hora, Corina e Fortunato estavam dentro da moradia real. Não era nada mais do que uma casa grande, na parte subterrânea de Athelisa, literalmente esculpida contra pedra. Aquela parte da cidade era logicamente muito mais escura e mal iluminada, chegando a ser um pouco assustador.

Corina desceu do navio com seu fiel escudeiro, e prontamente dois guardas anões – cujo topo da cabeça era alto o suficiente para alcançar seu umbigo – prontamente os escoltaram para dentro.

***

A sala de visitas possuía móveis em tamanhos normais para receber representantes de todos os povos, e desta maneira Corina não ficou tão desconfortável quanto estava esperando. Ela pôde enfim esticar suas pernas e reclinar-se em algo do seu tamanho apropriado. À sua frente, a rainha Fallon ocupava uma versão reduzida da cadeira, com um vestido azul e delicado e sua pequena coroa sobre os cabelos ruivos.

— Senhorita Amalie, fico feliz que tenha respondido ao meu pedido de ajuda. Não é nada de grave, eu acredito, mas não consegui pensar em nenhuma outra pessoa que pudesse me ajudar – disse a rainha, com a voz calma, mas o nervosismo era perceptível pelo modo que ela batia o pé no chão repetidamente e inconscientemente – Fez uma boa viagem de Auano para cá?

— Na realidade, senhora, eu não estou mais em Auano, estava viajando pelo povoado de druidas do Ar em Murmus quando recebi sua mensagem – Corina corrigiu, educadamente – Fiquei honrada com o pedido, não é sempre que eu tenho contato com membros da realeza.

— Ah, meu problema é mais de ordem pessoal do que política. Você vê, senhorita, coisas estranhas têm acontecido nos meus aposentos, já faz duas semanas, e eu acredito que sejam da ordem sobrenatural.

— Fantasmas? – perguntou a humana, empolgada.

— Sim, eu acredito que seja isso. Não sei se são fantasmas, no plural, talvez seja um só, mas sinto que...sinto que estão tentando se comunicar comigo, seja lá o que forem, e isso me deixou curiosa. Poderia investigar o caso?

Corina sorriu e se inclinou para segurar a mão da rainha, com carinho. Sabia que lealdade era algo muito importante para seu povo, e agora que o caso estava esclarecido, seria terrível ter que negar. Mas fantasmas? Isso não seria um problema para Corina Amalie Cassandra, necromante, peregrina e curiosa entusiasmada.

— Será um prazer conhecer seus fantasmas, minha senhora.

***

O quarto da rainha não ficava muito longe da sala de visitas. Os corredores não eram baixos demais, porque a casa da rainha era adaptada para atender a todos os visitantes possíveis. Fallon parecia tão implacável quanto pedra – ela era séria, forte e impressionante, mas os outros anões eram sempre recebidos com atenção e simpatia. Ela era a própria montanha.

Enquanto andavam, a rainha não deixou de puxar assunto com Corina: se tinha Fortunato com companheiro fazia muito tempo (sim); o que estava fazendo em Murmus (só conhecendo o lugar e visitando uma amiga – o que não era inteiramente verdade); como estava sua família (muito bem, obrigada – outra verdade parcial).

— Sabe, eu vi seu irmão andando por esta região, recentemente – a rainha Fallon disse, sem dar muita importância ao comentário.

— Meu irmão?

— Sim, ele estava irreconhecível, acompanhado de duas garotas do deserto. Só soube que era ele porque quando o recebi na corte ele revelou sua forma natural. E não estava usando seu nome verdadeiro, o chamavam de Dot.

— Enoch estava aprontando de novo, eu aposto – Corina suspirou – Faz ideia de onde ele foi depois?

— Não, sinto muito. Ele e as duas garotas realmente estavam com problemas, mas tudo se resolveu. Não tenho permissão de contar mais, é um assunto político – Fallon respondeu e em seguida parou em frente a uma porta – Chegamos. Por favor, explore à vontade e pergunte o que quiser.

A rainha abriu o quarto e espero que Corina entrasse primeiro. O cômodo tinha uma forma arredondada e espaçosa, lembrando o formato de uma flor. Uma cama larga ocupava o centro do cômodo, e as paredes eram curvas, com prateleiras cheias de livros e relíquias. Num canto, um pequeno lago era estranhamente iluminado por um buraco no teto.

Fortunato prontamente saiu correndo e foi se lambuzar com o barro e a água do lago, e Corina foi atrás dele, morrendo de vergonha e pedindo desculpas. O cachorro se virou e disparou de volta para a porta, e começou a latir em direção à cama.

— Onde foi que os eventos estranhos aconteceram, rainha? – perguntou a necromante.

— Bem aí, perto da minha cama mesmo, e na região daquela prateleira – Fallon apontou para a sua esquerda – Alguns livros caem no meio da noite sem nada ter causado sua queda. Eu acordo sozinha e ouço uma voz me chamando, e uma fumaça branca perto da prateleira. Parece ser uma pessoa, às vezes, mas nunca consegui distinguir um rosto. Também vejo vultos no meu escritório, durante a noite, sempre chamando meu nome.

— Alguma coisa aconteceu, duas semanas atrás, para dar início a estas aparições?

— Na verdade, sim. Meu conselheiro-chefe morreu, que os deuses o tenham. Ele era um bom homem, que eu conheci durante toda minha vida, grande amigo de meu pai. Eu acredito que talvez seja a aura dele que aparece para mim, mas não imagino o  porquê.

— Parece bem fantasmagórico para mim – Corina suspirou e acariciou a cabeça de Fortunato, distraidamente.

Ela fechou os olhos por alguns instantes, tentando se concentrar. Sentia um formigamento em seus dedos e em seu rosto quando tentava imaginar os eventos relatados pela rainha Fallon. Algo de sobrenatural realmente estava acontecendo, Corina conseguia sentir, mas não era uma presença forte e dominadora, como os fantasmas maldosos costumavam ser. Era alguma aura boa, tentando falar com a rainha urgentemente.

Seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de outra pessoa ao quarto. Corina sobressaltou-se com o som da porta se abrindo e imediatamente entrou em estado de defesa, mas Fallon recebeu o recém-chegado com calma.

— Desculpe, eu havia me esquecido de nossa visita – disse o homem, assim que percebeu a presença de Corina – Não queria ser rude, mas tenho um comunicado para você, rainha.

— O que houve? – perguntou Fallon.

— O ministro Hector quer tratar com a senhora sobre a questão dos mestiços habitando a região interna da cidade. Ele parecia bem incomodado com o assunto.

— E quando é que Hector não está incomodado? – bufou a rainha. Ela ficou de pé e colocou uma mão no ombro do homem – Senhorita Amalie, este é Aidan, meu noivo e amigo. Aidan, se importaria de fazer companhia para ela? É a necromante que aceitou meu pedido de ajuda, acredito que ela tenha algumas perguntas a fazer sobre o local e sua história.

— Farei meu melhor para atender às demandas, senhora- Aidan respondeu, com um aceno de cabeça, enquanto a rainha deixava a sala apressadamente.

Corina encarou o estranho em silêncio, eventualmente trocando um olhar com seu Fortunato, pois ela sempre confiava na intuição do cachorro. Ele parecia ocupado demais mordendo a própria perna para julgar o recém-chegado, então Corina resolveu deixar o assunto de lado e voltou a analisar o lugar.

Ela fechou os olhos novamente. A sensação de formigamento continuou, e por alguns instantes, até mesmo acreditou ter ouvido um sussurro.

— Senhor, eu gostaria de saber sobre alguns aspectos da vida da rainha, se puder me responder – disse Corina, abrindo os olhos.

— Sinta-se à vontade. E me chame de Aidan.

— Certo. Por acaso a rainha perdeu alguém importante recentemente, além do seu conselheiro?

— Bem, “recentemente” é um termo complicado para nós. Vivemos séculos, o que é recente para nós não é recente para vocês – Aidan respondeu, parecendo divertido – O pai da rainha Fallon morreu duzentos anos atrás. Sua mãe e seus irmãos ainda estão vivos. Uma amiga da rainha, uma mestiça, morreu cerca de trinta anos atrás. Elas eram bem próximas, temo que Fallon ainda sinta a perda, mas não entendo porque esta amiga a estaria assombrando.

— Realmente, não parece ter motivo. O mais lógico é que seja o antigo conselheiro – Corina ponderou, coçando a cabeça – Ele e a rainha eram próximos?

— O conselheiro Hobbs era grande amigo do pai de Fallon, rei Erwin. Ele conhecia Fallon desde que ela era pequena e sempre fez tudo para o seu bem.

— E quem vai substitui-lo?

— Não sabemos ainda. A votação será amanhã – Aidan respondeu – Mas a preferência entre os ministros é para Hector, o mesmo que está em reunião com Fallon agora mesmo. Cá entre nós...eu não gosto muito do sujeito.  Está sempre insatisfeito, nunca para de reclamar.

Corina acenou com a cabeça, ficando pensativa. Olhou para Aidan por alguns instantes, avaliando se ele era confiável ou não. Ela podia conferir as informações com Fallon, é claro, mas se o fantasma era alguém querido da rainha tentando se comunicar, certamente tinham um bom motivo. Um alerta, talvez, sobre pessoas de má-índole. Não seria a primeira vez que um noivo teria inveja do poder de sua rainha.

A necromante voltou a caminhar pelo quarto. Ninguém havia morrido ali, disso ela tinha certeza, porque a presença sobrenatural seria muito mais forte. Mas seja lá quem estivesse assombrando o local tinha algum tipo de apego ao quarto e a sua habitante.

***

O quarto que havia sido designado para Corina era um tanto claustrofóbico. Quatro paredes muito sólidas e escuras, sem nenhum adorno e com pouco espaço entre elas. Corina não era muito alta, então coube na cama, e Fortunato tomou seu lugar em cima do tapetinho ao seu lado.

O cachorro logo adormeceu, roncando sonoramente. Corina também fechou os olhos e tentou relaxar, evitando pensar nas toneladas de pedra que a separavam da superfície.

Mas como era de se esperar, Corina não teve sonhos comuns. Assim que adormeceu, ela se viu em sua casa em Auano – um píer toras grossas de madeira, com uma casa também feita de madeira em cima. A frente da casa dava para a pequena rua de areia que circulava a região, e o píer ia até uma porta lateral. Abaixo dele, rio verde e lamacento. Atrás da casa havia um pequeno quintal de árvores silvestres e flores coloridas, quebrando o padrão verde-marrom do pântano.

Uma mulher jovem de vestido preto estava sentada no píer, olhando para a água. Ela tinha olhos pequenos e escuros, pele muito pálida e cabelos negros que mal chegavam ao queixo. Ela acenou para Corina assim que a encontrou no sonho.

— Vejo que conseguiu mais um caso paranormal para a gente! – disse a mulher, ficando de pé e limpando a poeira de seu vestido impecável.

— Não é um caso. Casos são para necromantes que exigem pagamento pelo trabalho – Corina repreendeu, com um suspiro.

— E você faz caridade, por acaso?

— Faço. Não peço dinheiro, meu pagamento é cultural e intelectual. Trabalho pela satisfação de entender mais sobre o mundo.

— E para ter um lugar para morar por algum tempo – cantarolou a outra, andando em círculos ao redor de Corina – O que temos até agora?

— Você ouviu o que eu ouvi, Yasu. Pedi para Fallon me avisar assim que algo de estranho acontecesse de novo. E se for algum mau espírito tentando se passar por bonzinho?

— Fantasmas não são tão inteligentes assim, querida, eles são movidos por remorso, amor ou raiva, e ficam bem cegos pelas emoções. É difícil camuflarem suas verdadeiras intenções – Yasu explicou, pacientemente – Eles mal conseguem se controlar, se não têm forma física, como é o nosso fantasma da vez.

— Bem, eu vou tentar dar forma a ele, se conseguirmos presenciar uma dessas aparições – Corina continuou, se aproximando da mulher – Para descobrirmos quem é e o que quer. Fallon está curiosa.

— Eu estaria também. Ela é uma mulher importante, se alguém do além está tentando lhe dizer alguma coisa, é bom que seja útil. Confia em Aidan?

— Eu não vejo nenhum motivo para não confiar nele até agora. E nada para garantir seu caráter também – respondeu Corina – Ele parecia estar escondendo alguma coisa, não acha?

— Acho. Ele foi legal demais com a gente.

— Comigo, no caso. Ele não estava te vendo, você só existe na minha cabeça, Yasu.

— Eu não existo só na sua cabeça, humana! – Yasu corrigiu, um pouco insultada – Sou uma Sombra! Uma mensageira da morte, basicamente uma divindade menor!

— É isso que coloca no seu currículo? – Corina provocou, com um sorriso de diversão.

— Eu tenho milênios de idade.

— E está presa na cabeça de uma mera humana.

— Você não é uma mera humana, é uma necromante, você tem um dom. Todos os necromantes são acompanhados por Sombras, mas nós não gostamos do campo físico.

— Aposto que nosso fantasma também não gosta- suspirou a necromante, cruzando os braços e olhando para o rio abaixo de si – Não consegue falar com esse tipo de coisa no campo espiritual? A aura do fantasma próximo?

— Não, não, fantasmas são diferentes de auras de mortos – Yasu parou ao lado de Corina e balançou a cabeça – São auras tentando escapar do mundo espiritual para o físico.

— Mas eu consigo sentir a presença de fantasmas, tanto quando estou acordada quanto quando estou...aqui.

— É esse o dom do necromante. Alguns se tornam obcecados pelo campo espiritual e ficam loucos, alheios ao mundo físico – Yasu disse, calmamente - Outros estão em negação e querem se concentrar apenas no mundo “real”, ignorando seus sentidos espirituais, e ficam loucos por isso também.

— Eu estou indo bem, então. Não estou louca ainda – Corina murmurou.

— Bem, a primeira coisa que você fez quando descobriu seus poderes foi trazer aquele maldito cachorro de volta à vida, então parece uma carreira promissora como manipuladora da morte.

— Eu tinha sete anos!

As duas deram risada em uníssono. Havia muitas coisas que Corina não entendia sobre sua Sombra e sobre seus poderes no geral. Era uma parte de si que ela havia aprendido a reprimir e ignorar desde o orfanato, mas que suas mães adotivas tentaram trazer de volta, quando Corina se mostrou madura o suficiente.

Poucos necromantes se descobriam enquanto crianças, e destes, um número ainda menor lidava bem com seus poderes mórbidos. Corina decidira usar os seus para ajudar como podia, ao mesmo tempo que ficava curiosa para entender seus limites e habilidades. Fortunato, seu fiel cachorro vivo-morto, era uma lembrança constante de sua primeira experiência com a necromancia – assustadora, confusa e fascinante, na forma de um cãozinho babão.

Um som alto e repetitivo interrompeu o sonho e fez com que Corina se sobressaltasse. Ela tentou procurar a fonte do barulho, mas nada em Auano parecia justificá-lo.

— Isso é no seu quarto – Yasu disse, simplesmente. Em seguida, o barulho repetitivo foi acompanhado dos latidos de Fortunato – Acho que é para você acordar.

Corina assentiu. Ao seu redor, tudo começou a escurecer e se corroer. Aos poucos, sua casa em Auano não passava de meros esqueletos negros de uma paisagem, e no centro de tudo, estava Yasu, com seu vestido preto, botas de couro e o rosto se transformando em uma forma esquelética e opaca.

No segundo seguinte, Corina havia acordado e via apenas o teto do quarto, mal iluminado pela vela que trazia na cômoda ao lado da cama.

A necromante escorregou as pernas para o lado da cama e afagou a cabeça de Fortunato, que estava agitado. Ela foi até o armário e pegou um roupão para se cobrir e então finalmente atendeu à porta.

Ali estava Aidan, com sua baixa estatura e rosto determinado. Ele também mal havia coberto suas roupas de dormir e trazia uma lâmpada na mão.

— Senhorita Amalie, desculpe por isso, mas a rainha mandou lhe chamar. Ela diz que o fantasma está em seu quarto.

***

O quarto da rainha realmente parecia ter sido palco de certa ação. A cama estava desfeita, com travesseiros amassados e caídos. Livros estavam tombados no chão, e alguns dos objetos que ficavam nas prateleiras estavam desorganizados ou haviam ido parar na cama também.

A rainha Fallon não parecia estar assustada. Esperava ao lado da porta, de braços cruzados e olhos bem abertos. Dava a impressão de estar ansiosa, esperando para alguma coisa acontecer de novo.

— Eu vi, eu vi de novo! – exclamou a rainha – Vi algo flutuando ao lado da minha cama, quando ainda estava sonolenta. Era uma pessoa, tenho certeza, vi seus pés e suas mãos, vestia um robe longo, mas desapareceu muito rápido.

— Alguém mais viu esse ser? – perguntou Corina, examinando a região ao lado da cama.

— Aidan estava dormindo – Fallon respondeu, acenando negativamente com a cabeça – Eu o derrubei da cama com minha empolgação, mas o fantasma já havia desaparecido quando ele acordou.

Corina segurou a risada ao imaginar a cena, e fechou os olhos para se concentrar novamente. Pensou em Yasu, e esperou que ela sentisse seu pedido de ajuda. O rosto da Sombra surgiu em sua mente por uma fração de segundo e em seguida Corina sentiu todos seus sentidos se aguçarem.

Ela ouvia suspiros e os pelos de sua nuca se arrepiaram. Quando a necromante abriu seus olhos novamente, a área ao seu redor estava brilhando com uma leve luz roxa, mas ninguém mais parecia notar. Um corpo sem forma estava próximo à parede, como uma pintura. Inicialmente, Corina se assustou com a visão.

— Senhores, eu acho que estou vendo o fantasma – sussurrou ela, ainda tremendo de susto e curiosidade – Eu...vou tentar me comunicar. Por favor, eu preferiria fazer isso sozinha.

Ela olhou rapidamente para a rainha e seu noivo. Ambos assentiram, silenciosamente, e então saíram do quarto, fechando a porta atrás de si.

Corina se ajoelhou no chão e voltou a olhar para a forma na parede. Fortunato estava sentado pacientemente em um tapete. Agora ele também tinha um brilho roxo – uma denúncia que ele não era um dos vivos. Yasu logo se materializou ao lado de Corina, de braços cruzados e encostada desleixadamente à prateleira de livros.

— Parece que temos um fantasma tímido – disse a Sombra – Seja cuidadosa, Corina. Qualquer ato mais bruto pode espantá-lo.

— Eu sei – murmurou a necromante, esticando o braço de maneira hesitante, sem tocar na forma – Vamos lá, fale comigo. Seja lá quem você for...eu estou aqui para ajudar a rainha.

Corina fechou os olhos novamente, mentalizando o ambiente ao seu redor, tentando ver o quarto da rainha com a sua mente e não com seus olhos. Ela pensou repetidamente “Estou aqui para ajudar a rainha!”, na esperança de que seja lá o que estivesse ali presente a entendesse. E de fato, a forma na parede começou a se mexer, se aproximar, mas ainda sem se tornar um ser definido. Yasu ergueu as sobrancelhas, impressionada, e tocou no ser, segurando o que parecia ser seus ombros com um braço, servindo como apoio.

De repente, o fantasma se paralisou no local onde estava e tremeu da cabeça aos pés. Ele soltou seu primeiro som -um suspiro assustado, e desapareceu como se nunca houvesse estado ali. Vozes foram ouvidas do lado de fora do quarto -primeiro de um homem, depois de Fallon e então Aidan.

— Não! – gritaram Yasu e Corina ao mesmo tempo.

A necromante abriu os olhos. A forma havia sumido, o quarto não brilhava mais e a Sombra havia ido embora. Tudo estava no plano mortal novamente. Fortunato adormecera. Corina rosnou de raiva e bateu o punho no chão, frustrada. Ela se levantou e foi até a porta, com passos duros e pesados.

Encontrou a rainha discutindo com um homem baixo – até mesmo para os padrões anãos - e Aidan apenas observando os dois. Fallon tinha a voz firme e com uma raiva controlada, enquanto o homem tinha o rosto vermelho.

—... eu tenho o direito de investigar isso, Hector. Eu não posso ignorar o que está acontecendo em relação aos seres que não podemos ver – dizia a rainha.

— Alteza, isso é tudo ilusão e pantomima. O campo espiritual pertence aos deuses e eles não nos permitem interferir nesses assuntos! – exclamou o homem – É profano. Não devemos falar com fantasmas, temos que espantá-los – é uma tentação!

Corina respirou fundo para se recompor antes de interromper.

— Eu estava quase em contato com o fantasma – ela disse, aproveitando que ambos haviam parado de falar – Mas algo o assustou.

— Então você é a espiritualista? – disse o homem baixo, se virando para encarar Corina, mas para isso ele tinha que erguer o pescoço num ângulo desconfortável – Eu sou um ministro da rainha Fallon e não acredito em uma palavra do que diz.

— Bem, não foi o senhor quem me contratou, e sim a rainha – respondeu Corina, impaciente – Então eu não vejo o que sua opinião teria a ver com meu trabalho.

— Ela está certa, Hector. Você tem que deixar seu tradicionalismo de lado se quiser ajudar o seu povo – Aidan se manifestou – Não somos mais nômades isolados em cavernas.

— Deixemos estas discussões para depois, por favor -Fallon respondeu, também se irritando e virou-se para ficar de frente com Corina – Por favor, senhorita Amalie, acha que ainda temos chances de falar com o fantasma?

— Bem... talvez. Mas eu precisarei da senhora, rainha, e de toda sua concentração.

— Como quiser. Por favor, me dê um pouco de tempo para poder me acalmar. Enquanto isso, ministro Hector, o senhor está dispensado. Voltaremos a nos falar pela manhã.

O velho anão franziu o cenho e fez uma reverência relutante, e antes de ir embora ele lançou um olhar de raiva a Corina. Mal surgiu efeito, porque era mais baixo que a cintura dela.

A rainha dos anões fez menção de ir em direção contrária de seu ministro, suspirando um pouco, mas Aidan a segurou pelo braço, impedindo que continuasse.

— Você está bem? – perguntou ele, erguendo uma sobrancelha.

— Estou. Fiquei ansiosa com a possibilidade de resolver o mistério e Hector foi um inconveniente, como sempre - respondeu a rainha, simplesmente – Mas estou faminta. Vou comer um pouco e já estarei de volta, para encontrarmos este fantasma de uma vez por todas.

— Sim, senhora.

Aidan deu um beijo na testa de sua noiva e ela sorriu, depois seguiu sua rota original. Corina sentiu sua confiança em Aidan aumentar. Ele era bom com Fallon, pelo que parecia, e inimigo de Hector – o que também era um bom indício.

— Acha realmente que estamos lidando com um fantasma, senhorita Amalie? – perguntou Aidan, deixando um bocejo escapar.

— Tudo indica que sim – Corina respondeu, dando de ombros – Mas pode ser obra de um espírito brincalhão, um poltergeist. Eles são mais comuns entre os bruxos e humanos, nunca vi um poltergeist em terras anãs. Mas eles se aproveitam de pessoas em momentos de sensibilidade ou fragilidade para fazer bagunça e tormento.

— Frágil é um jeito curioso de descrever Fallon – ele olhou vagamente na direção que sua noiva havia tomado – Ela tem que lidar com muita coisa, as vezes acho que ela se esquece de cuidar de si mesma.

— Sorte dela de ter um bom futuro marido com você – Corina brincou.

— Bom, o casamento é arranjado, mas acredito que estamos indo bem. Uma boa moça que conheci teve o casamento arranjado e acabou tendo um caso com um monge um mês antes do casamento com seu noivo, então podia ser pior.

— Um monge? Puxa vida.

— Pois é. O bastardo deles é um bom rapaz – Aidan deu de ombros – Fallon tem muitas dores escondidas. Ela se recusa a falar delas, mesmo comigo, e eu venho me perguntando se esta história de fantasma não seria coisa da cabeça dela, mas se até a senhorita viu a criatura, não vou mais duvidar.

— E esse tal de Hector? – perguntou Corina – Por que ele é assim tão...

— Desagradável? Bom, ele é de família rica, acredita na pureza das espécies. Não gosta que nos misturemos com os outros povos, até mesmo com certas tribos de anões. Mas é bom de lábia e ter forte influência sobre todos por aqui em Athelisa. Ele me detesta desde que pus pé na cidade pela primeira vez.

Corina assentiu, refletindo sobre o assunto. Hector era um conservador, ela já conhecera muitos assim em sua vida – pessoas que se recusavam a acreditar na capacidade humana de se comunicar com o plano espiritual. Muitos necromantes acabavam internados como loucos por causa disso. Corina sentia-se sortuda por ter escapado dessa sina.

A conversa acabou por ali e a necromante e o anão passaram alguns minutos em um silêncio constrangedor esperando que Fallon voltasse.

***

A rainha arrumou seu quarto com a rapidez de um furacão, guardando livros, ajeitando relíquias e refazendo sua cama como se nada tivesse acontecido. Então, Fallon e Corina se sentaram sobre algumas almofadas no chão, de pernas cruzadas e segurando a mão uma da outra formando um pequeno círculo.

— Eu não sinto mais a presença do fantasma que a acordou, senhora – disse Corina, respirando fundo e fechando os olhos – Mas você já me disse que tem outros entes queridos que poderiam estar tentando comunicação.

— Sim. O conselheiro Hobbs, meu pai e... – a voz da rainha sumiu repentinamente.

— E?

— E Talila, minha...amiga – a expressão de Fallon se tornou uma mistura de saudades e tristeza – Eu sinto muita falta dela. Mesmo que não seja ela o espírito que me atormente, falar com Talila de novo vai ser incrível. O que eu preciso fazer?

— Vamos começar primeiro por Hobbs – Corina orientou – Eu quero que você pense somente nele, tudo que você sabe sobre a vida dele, memórias boas sobre ele. Eu tentarei me comunicar com o espírito.

Ambas começaram a respirar devagar, em um mesmo ritmo. Nessas horas, Corina sentia inveja de sua irmã mais nova, Alma – ela podia ver as memórias das pessoas se elas permitissem, e essa habilidade seria muito útil para a vida da necromante. Corina se contentava com os conselhos de Yasu, mas ela trocaria a companhia de sua Sombra pelos poderes de clarividência de Alma.

Conforme o tempo se passava, o silêncio completo do quarto começou a fazer um leve formigamento nas palmas das mãos de Corina. Ela sentia a energia vindo das memórias de Fallon, e logo uma imagem se formou em sua mente: um anão, vestido de azul de dourado, com os braços cruzados na altura da barriga, sua longa barba branca cobrindo o rosto.

Um vento vindo de lugar nenhum fez os cabelos de Corina e de Fallon, e as duas saíram do transe ao mesmo tempo. Ao fazerem isso, se depararam com o anão Hobbs parado entre elas, com seu corpo formado por fumaça. O homem abriu os olhos e olhou ao redor várias vezes.

— Por que estou aqui? Eu morri, não morri?  - perguntou ele com ar confuso – Minha senhora, é um prazer vê-la novamente, mesmo que sob circunstâncias estranhas.

— Hobbs! – exclamou a rainha, ficando de pé e abrindo os braços para abraçá-lo – Meus pêsames por sua morte. Foi um choque para todos nós.

— Choque? Eu tenho...bem, tinha oito séculos, minha senhora, não vejo como minha morte podia ter sido inesperada para alguém.

Os dois se inclinaram para se abraçarem, mas o anão não tinha forma física, era apenas uma projeção de sua aura, então Fallon o atravessou como se fosse ar.

— Eu deveria ter avisado que o contato físico não é possível – Corina comentou, ainda de olhos fechados e fazendo muita força mental para não deixar o fantasma ir embora – Mas acho que já descobrimos a resposta para nossa pergunta, senhora.

— Que pergunta? – Hobbs indagou.

— Coisas estranhas estão acontecendo em meu quarto, senhor, coisas se mexendo sozinhas, vultos e vozes me chamando – explicou a rainha – Eu acreditei que pudesse ser alguém tentando se comunicar comigo, e você foi minha primeira suspeita.

— Oh, não senhora. Eu não tenho nada para lhe dizer postumamente, sinto muito. Todos os conselhos que eu tinha eu já lhe dei em vida, e agora creio que seguirá sendo uma sábia governante, com sempre foi.

— Muito obrigado pela confiança, Hobbs.

— Não há de que. Agora, me permite uma única curiosidade? – perguntou Hobbs, brincando com sua barba fantasmagórica.

— Mas é claro.

— Quem é que vai me suceder?

— Ainda não sabemos, mas tudo indica que será Hector – respondeu Fallon, lutando para não transparecer seu aborrecimento com sua fala.

— Hector? Oh, que pena – murmurou Hobbs – Acredito que temos pessoas melhores em nossa corte. Mas se ele é o voto dos outros ministros, o que um defunto pode fazer?

Com essa fala, o espírito do anão se foi, desaparecendo com um som baixo. Corina abriu os olhos e respirou fundo. Fazer a conexão era mais cansativo do que ela se lembrava, e esta aparição se mostrou desnecessária.

O processo foi repetido novamente, dessa vez com o espírito do pai de Fallon, o rei Erwin, mas novamente não obtiveram nenhuma resposta. O homem apenas transmitiu palavras de amor à filha – o que era emocionante, sem dúvida, mas Corina estava ficando tonta pelo esforço mental.

A moradia real era totalmente subterrânea então Corina não fazia ideia de que horas eram, mas pela falta de luminosidade no pequeno jardim da rainha ela acreditava que ainda era madrugada. Isso era bom, pois era nesse período que os espíritos se agitavam mais, mas agora Corina só queria uma soneca. Ela olhou para Fortunato com certa inveja.

Como se ouvisse seus pensamentos, o fantasma resolveu se manifestar. A mesma forma estranha surgiu na parede, fazendo tudo ao redor tremer. Corina deu um pulo e se pôs de pé, correndo até o ser estranho.

— Não tenha medo! – ela exclamou, erguendo os braços para cima – Somos inofensivas! Eu sou Corina Amalie, uma necromante, e aqui comigo está a rainha Fallon de Athelisa! Ela é a habitante deste quarto, e você está tentando se comunicar com ela, não é?

Fallon se recuperou do choque inicial e correu até o fantasma, parando poucos centímetros a sua frente. O fantasma parou onde estava e sua forma tremeu, parecendo hesitante. Ele estendeu o braço – ou pelo menos o que parecia ser um braço – e tentou tocar a rainha, que nem recuou diante do gesto. A forma atravessou Fallon assim como Hobbs havia feito.

— Talila? – chamou a rainha. Sua voz estava trêmula, e Corina ousava dizer que ela estava segurando as lágrimas.

Subitamente, o fantasma adquiriu um brilho roxo e aos poucos seus traços se tornaram mais distinguíveis. Era uma mulher, mais alta que Fallon e mais baixa que Corina, de cabelos curtos e cacheados e olhos grandes. Era difícil dizer a cor de sua roupa e de sua pele devido ao brilho, mas ela tinha orelhas pontudas e um nariz largo. Uma mestiça entre elfo e anão, como Aidan havia mencionado antes.

Quando a figura da mestiça se tornou completamente identificável, Fallon soltou um soluço e segurou a própria cabeça com as mãos, não conseguindo acreditar no que estava vendo. Talila, sem dizer nada, tentou abraçar a rainha, mas sem sucesso. Ela olhou para Corina e perguntou:

— Quem é você?

— Sou uma necromante, a rainha me pediu para ajudá-la a entrar em contato com seja lá o que estivesse causando os eventos estranhos aqui – Corina respondeu, calmamente. Talila irradiava calor e paixão de sua aura, como se fosse um pedaço de luz do sol entrando pela montanha – Coisas caem de seus lugares, vultos e vozes chamando pela rainha. Isso era você?

— Sim, eu estava tentando me comunicar com ela, já faz anos que tenho tentado – respondeu Talila, deixando sua mão pairando acima do ombro da rainha, num gesto fantasmagórico de carinho – Mas agora eu preciso falar o porquê. Fallon, você não pode deixar que Hector seja seu ministro.

— Não sou eu quem manda nisso – murmurou a rainha, sem desviar o olhar de Talila por um segundo – Os outros ministros votam, eu tenho que aceitar.

— Você é a rainha, tem todo o poder necessário para recusá-lo ou expulsá-lo! Fallon, eu fui assassinada sob ordens de Hector.

Fallon parecia que iria entrar em colapso. Ela recuou devagar até sua cama, onde se sentou, e Talila continuou ao seu lado, hesitante.

— Senhorita Amalie, por favor, chame meu noivo – disse a rainha, respirando fundo e tentando se controlar.

***

Aidan e Corina estavam de pé, um ao lado do outro, enquanto Fallon e Talila conversavam. A fantasma começou a explicar para a necromante sua história com a rainha, pois ela era a única no cômodo que não sabia.

— Eu nasci aqui em Athelisa, na parte superior da cidade. Minha mãe é uma elfa, e meu pai um anão, e isso não é comum, muito menos bem-visto. Eu cresci na periferia da cidade com meus pais, até que me tornei empregada aqui na casa da família real, e depois, dama de companhia da rainha Fallon – disse Talila, sorrindo vagamente para a mulher ao seu lado – Fallon sempre foi gentil comigo, e nós nos tornamos inseparáveis. Os irmãos e a mãe dela aprovavam nossa proximidade, e não se opuseram quando começamos a namorar em segredo.

— Por que em segredo? – perguntou Corina.

— Ninguém aprovaria uma mestiça ao lado da rainha – Fallon resmungou com tristeza – Não de início, é claro, mas eu introduziria Talila ao nosso mundo aos poucos, até que ela fosse totalmente aceita e nós pudéssemos nos casar.

— Você realmente pensava em nosso casamento? – Talila perguntou, emocionada.

— Mas é claro. Eu não te deixaria escapar por nada, sabe disso.

Aidan se mexeu um pouco, apoiando seu peso numa perna só e parecendo inquieto com o relato. Corina podia imaginar o porquê – ele era o atual noivo da rainha, e a presença de Talila deixou claro que as duas tiveram algo mais profundo do que ele imaginava. Ainda sim, ele permaneceu em silêncio, ouvindo atentamente.

— Poucas pessoas sabiam de nosso namoro – entre elas, nossas famílias, alguns amigos e os ministros da rainha. Hobbs, o conselheiro-chefe, nunca se opôs, e acreditava que seria uma boa maneira de incentivar amizade entre os povos – Talila continuou – Mas Hector não suportava a ideia de ter uma mestiça na moradia real, muito menos uma que fosse esposa da rainha, sem gerar herdeiros biológicos. Eu sempre tive a saúde muito delicada, por causa da mistura entre sangue elfo e sangue anão, então meus remédios tinham que ser tomados com precisão todos os dias, mesmo que parecessem me deixar mais doente.

— Você foi envenenada – Corina disse, em voz baixa – Seria o meio mais rápido e menos suspeito. Eles alegaram que você teve uma reação ruim e só. Era inevitável e imprevisível.

— Foi exatamente o que aconteceu -Aidan respondeu – Como sabia?

— Eu adivinhei. Anos lidando com mortes e com pessoas ruins. Além do mais, tenho uma mãe curandeira, eu cresci com essas coisas.

— Como sabe que foi Hector que te envenenou? – Fallon perguntou, agora sentindo raiva e não tristeza – Eu acredito que ele faria isso, mas como você soube?

— Meus frascos estavam sempre guardados na última prateleira do armário da cozinha, a mais alta, e numa mesma ordem – ela respondeu – E no dia em que eu fui envenenada, eles estavam desorganizados e eu via marcas de uma escada em frente ao armário. Outros anões, como vocês dois, conseguiriam alcançar a prateleira sem dificuldade, a única pessoa que precisaria de uma escada seria ele. Além do mais, encontrei um anel dele perto do armário.

— E ele não queria que Corina entrasse em contato com o fantasma, no caso, você. Parece prova o suficiente para mim – Aidan disse e se virou para Fallon – Direi aos ministros que a votação para escolher o conselheiro chefe deve ser suspensa por ora. Vou interrogar Hector e tentar extrair uma confissão e mandá-lo para a cadeia.

O homem saiu do quarto com passos firmes, quase uma marcha, deixando as duas amantes separadas e a necromante para trás. Corina sentia-se mais descansada agora, pois Talila não precisou ser invocada, ao contrário dos outros fantasmas. Isso fez com que Corina se lembrasse de algo que ainda não havia sido explicado.

— Por que você fugiu quando eu tentei falar com você na primeira vez? – perguntou – Eu lhe disse que era amiga de Fallon, mas algo te assustou.

— Foi Hector. Eu ouvi a voz dele e me senti apavorada. Só descobri que foi ele quem me matou um pouco antes de realmente morrer, e não consegui contar para ninguém. Eu passei anos em silêncio porque não me sentia forte o suficiente para me manifestar aqui – explicou Talila, na defensiva, como se temesse que as duas não acreditassem em sua história – Quando ouvi a voz dele, me assustei. Achei que ele poderia me machucar de alguma maneira, e fugi de novo. A verdade é que eu tinha muito medo da morte, e esse medo me impossibilitou de falar com você, Fallon. Sinto muito, eu te decepcionei.

— Não, não decepcionou, querida – respondeu a rainha com doçura – Eu não te culpo por ter medo.

— Quando Hobbs se juntou aos espíritos, eu soube imediatamente que Hector seria seu próximo conselheiro, e isso me inspirou a tentar voltar aqui de novo, mas meu medo de aparecer no mundo dos vivos e encarar a verdade – eu morri— era grande demais e...

A fantasma começou a chorar, silenciosamente. Fallon novamente tentou tocá-la mas sua mão atravessou o rosto da amada. A frustração e agonia era visível no olhar que a rainha lançou a Corina.

— Necromantes podem trazer os mortos de volta à vida, não podem? – murmurou Fallon – Por favor, senhorita Amalie.

— Eu...

— Não, isso não é necessário. A senhorita Amalie já fez demais por mim – Talila interrompeu – É um processo desgastante, não tenho a coragem de pedir isso para senhorita. Eu posso continuar como fantasma aqui. Agora que te encontrei de novo eu sei que conseguirei permanecer por mais tempo no mundo dos vivos.

Corina sentiu-se um pouco sem graça. Ela podia muito bem trazer Talila de volta à vida – ela sabia os procedimentos, fizera o mesmo com seu cachorrinho Fortunato quando ela tinha só doze anos, mas trazer humanos de volta era diferente. Era doloroso. Era triste. Era exaustivo fisicamente e psicologicamente e por mais que ela quisesse reunir aquelas duas, Corina não sabia se seria capaz de terminar o ritual.

Mas tinha uma coisa que ela podia fazer.

— Por favor, me deem um minuto – ela pediu, e se encaminhou para o lado oposto do quarto.

Corina se sentou perto do laguinho e fechou os olhos. Quando os abriu novamente, Talila e Fallon estavam apagadas, o quarto todo se tornou roxo e duplicado, como se fosse duas fotos sobrepostas. Yasu apareceu ao seu lado.

— Elas são um casal lindo – murmurou a Sombra, olhando para as duas mulheres – Corina, sei o que você está pensando. É uma solução temporária, mas acho que elas não se importariam com isso.

Corina apenas assentiu e olhou para sua Sombra. Se Talila olhasse em sua direção não veria Yasu pois agora estava no mundo dos vivos, assim como Fortunato. A necromante gostava de poder se isolar do mundo quando entrava no plano espiritual por alguns instantes, quando as pessoas no geral estavam cansando-a.

— Tenho que acabar com a dor delas – respondeu Corina, por fim – E depois, ir para a cama e dormir por dois dias.

Yasu deu um riso fraco e estendeu a mão, com a palma aberta. Dela, saiu um colar prateado com uma pequena pedra preta pendurada. Corina pegou o colar e o sentiu se materializando no mundo real.

— Obrigada, Yasu – ela disse – A rainha agradece também.

— Sei, sei. Até mais, humana.

Corina piscou algumas vezes e tudo voltou ao normal. Ela voltou para perto das duas amantes e disse:

— Este colar é uma joia morta. Ela veio do mundo espiritual, e só pessoas daquele mundo podem usá-la. Não vai te trazer de volta à vida, Talila, você ainda terá que passar uma grande parte do dia lá. Mas enquanto a usar no mundo dos vivos, você se parecerá com um deles.

— Isso é sério? Quer dizer que eu ficarei sólida? – perguntou Talila, com um sorriso se estendendo de um canto ao outro de seu rosto.

— Por que não vemos isso na prática?

Corina deu o colar para Fallon. As duas mulheres de levantaram, e Fallon ficou na ponta dos pés para alcançar a cabeça de sua amada e colocar a joia ao redor de seu pescoço. Mesmo que as mãos de Fallon não encostassem no corpo de Talila, o colar não atravessou o corpo da fantasma.

Um clarão foi emitido da pedra negra e se espalhou ao redor de Talila, até que ela deixou de ter uma aparência translúcida e se tornou uma figura que parecia tão viva quando qualquer um ali.

Um suspiro foi tudo que escapou da boca de Fallon antes que Talila lhe silenciasse com um beijo.


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Notas finais do capítulo

(Se eu me inspirei nos shinigamis para criar os Sombras? Talvez)
Eeeee aí? Gostaram da Corina? Ela é o amorzinho da minha vida. E as namoradinhas desse capítulo? Alguma piedade pelo Aidan?
(Não se preocupem, poliamor existe em Aurora)



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