Contos de Aurora escrita por Wi Fi


Capítulo 5
Conto Cinco: O Menino de Ouro.


Notas iniciais do capítulo

Olá! Não sei se ainda há alguém lendo isso. Mas olá pessoa que está lendo!
Esse é o capítulo em que eu enfio esse ship pela garganta de vocês porque eu amo o Eli e o Orion. Mais importante, eu uso esse capítulo para dar ao Eli todo o amor e carinho que ele merece, meu bebê querido. Espero que gostem!



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Eli havia acabado de escrever uma carta endereçada para Narciso, e uma para Nanna. Os pais da menina haviam decidido que ela podia continuar viajando, mesmo após sua pequena aventura com os vampiros. Ela teria seu castigo quando voltasse para Ethea.

Surpreendentemente, essa ideia partiu de Eli, e não de Orion. Ele havia percebido o quão feliz Nanna estava com toda a ideia de ser uma pirata por algum tempo, e mesmo quase tendo desmaiado ao saber do que acontecera nas Ilha Tepes, ele sabia que Nanna estaria correndo perigo em qualquer lugar de Aurora.

— Eu vou colocar no correio amanhã -Orion disse, olhando para as cartas em cima da mesa de jantar – Aposto que Nanna vai ficar aliviada.

— Pode ter certeza que ela vai. Céus, o que essa menina vai aprontar na próxima? – Eli suspirou.

Era uma noite quente de verão e em mesmo a brisa vinda da janela ou a falta de uma camisa para dormir conseguiam aliviar a temperatura. Eli havia dividido o cabelo em pequenas tranças, para que não o atrapalhassem enquanto ele lavava a louça do jantar. Orion estava do lado de fora da casa, cuidando das plantas, e os dois conversavam através da janela da cozinha.

— Nanna se daria bem no Refúgio. Ela é exatamente o tipo de adolescente energético que Yltaris adora motivar – Orion comentou, distraidamente – Elas adorariam se conhecer.

— Acredito que sim. Faz anos que não vejo Yltaris – a entonação na voz de Eli era um tanto melancólica e doída, mas ele tentou disfarçar. Orion notou, mas não tocou no assunto – Quando eu tinha treze anos não eu não era assim. Não esperava que Nanna fosse se deixar levar pela emoção tão facilmente.

— Ah, por favor Eli. Você sabe muito bem que você era um adolescente diferente da maioria. Mas nós, reles mortais, Narciso, eu, Maya, Catriona, todos nós fomos adolescentes metidos a corajosos – Orion respondeu, colocando um pequeno vaso de flores em cima da janela, para poder mexer na terra – Quando tinha mais ou menos a idade da Nanna eu já fazia muitas besteiras.

— Como por exemplo?

— Minha primeira e última tatuagem.

Você fez uma tatuagem com treze anos?

— Eu tinha quatorze, e sim – ele indicou com o polegar o pequeno desenho de um ramo de flores em seu ombro - Fiz quando minha mãe morreu.

Eli deixou as louças de lado um pouco e ficou na ponta dos pés para poder ver mais de perto a tatuagem. Ele a tinha visto milhares de vezes antes, é claro, mas agora ela se tornava mais interessante.

— Eu já perguntei sobre a tatuagem. Tinha me dito que fez isso meses antes de chegar no Refúgio – Eli ergueu uma sobrancelha.

— É, eu menti naquele dia. Não queria que você me achasse problemático mais do que já achava.

— Não se saiu muito bem nisso, querido. Quem tatuaria um garoto de treze anos?

— Narciso, é claro – Orion deu risada do olhar de choque de Eli – Nós escapamos de casa um dia e fomos para um bar de piratas velhos mal-encarados. Nós dois conseguimos afanar uma garrafa de rum e ele sempre quis tatuar alguém. Eu fui um bom irmão e me voluntariei.

Eli cobriu o rosto com as mãos e chacoalhou a cabeça, o que só fez Orion rir ainda mais. Muitas vezes eles esqueciam do passado rebelde dos primeiros anos de adolescência de Orion, e sempre que aquelas histórias surgiam, Eli ficava um tanto inconformado.

— Então, pense que a nossa filha poderia estar fazendo coisa pior aos treze anos. Quem nunca brigou com um bando de vampiros?

Eu nunca briguei com um bando de vampiros.

— Você não sabe se divertir – Orion provocou.

Eli resmungou algum xingamento e voltou a enxaguar os pratos. Seus pensamentos ainda estavam em Nanna e, agora, em Yltaris, a grande feiticeira que tanto abalou sua vida. A expressão em seu rosto era distante e vazia, e mesmo que estivesse fazendo alguma coisa, Eli parecia tenso, como se não estivesse inteiramente presente. Orion já o havia visto assim centenas de vezes antes, mas a cena nunca se tornava menos triste.

— Eli – ele chamou, levemente – Ela está bem agora. Ela vai chegar aqui sã e salva, você mesmo disse isso.

— Eu sei. Só... estou pensando demais.

— Não parece estar nada bem, querido. Devia descansar um pouco.

A resposta veio em forma de um aceno de cabeça afirmativo. Eli largou sua tarefa e puxou uma cadeira para se sentar. Ele fechou os olhos e suspirou fundo algumas vezes. Orion imediatamente o seguiu, sentando-se ao seu lado e colocando um braço ao redor dos ombros do marido. Este se encostou no peito de Orion, escondendo o lado de seu rosto marcado por cicatrizes e um olho cego.

Orion se perguntava se os ferimentos ainda lhe causavam alguma dor, porque muitas vezes quando Eli ficava triste as cicatrizes pareciam estar mais vermelhas que o comum, mas ele nunca teve coragem de falar sobre isso.

— Se a gente fosse falar de todas as vezes que eu fiz burrice quando era adolescente, íamos passar a noite toda acordados – Orion disse, tentando aliviar a tensão do momento – Você lembra de como eu era.

— É claro que eu lembro – Eli suspirou – Você era terrível, Orion Golias. Me deixava sem dormir de preocupação. Não que isso seja muito difícil.

— É, não é a primeira vez que eu ouço isso.

— Pelo menos eu consegui te domar.

“Me domar”, fala como se eu fosse um animal. Por acaso eu pareço um animal? – Eli deu um sorriso de zombaria e antes que ele pudesse dizer algo, Orion interrompeu – Não responda isso.

O outro deu risada, e Orion sentiu que sua missão havia sido cumprida. Eli estava alegre de novo.

— Para ser sincero, fiz coisas impulsivas mais idiotas do que uma tatuagem, e não só na adolescência.

— Acho que a coisa mais impulsiva e idiota que eu fiz foi me casar com vinte anos – Eli disse, novamente com um sorriso de provocação – Quem joga a vida fora desse jeito?

— Aposto que era com uma mulher bonita, pelo menos.

— Quem me dera.

Orion revirou os olhos, e Eli riu novamente. O ambiente se tornou instantaneamente mais leve e tranquilo – a risada de Eli era capaz de fazer o sol surgir em meio às nuvens. Isso, é claro, é o que Orion acreditava, e tinha acredito por muitos anos, mas nunca diria tal pensamento em voz alta.

Ao invés disso, ele só bagunçou o cabelo do marido e agiu como se estivesse ofendido, fazendo bico e virando o rosto.

— Oh, eu te ofendi, por acaso? – Eli provocou, cruzando os braços.

— É bom você me compensar por essa, Hyiam. Machucou.

— Ora, pare de frescuras.

Ele deu um beijo leve na bochecha de Orion. Em resposta à falta de reação deste, Eli tentou se acomodar novamente contra o corpo do marido, segurando os ombros dele com os braços.

— Acho que a coisa mais idiota que você fez foi deixar essa barba crescer – Orion resmungou, finalmente voltando-se para olhar Eli, e segurando o queixo dele com uma das mãos – Não gostei dela.

— Eu achei que me deixou mais bonito – Eli respondeu, erguendo uma sobrancelha – Pareço mais velho, até que enfim.

— É, você está lindo. Mas faz cócegas.

— Ei! Eu nunca reclamei da sua barba – dessa vez, Eli que começou a mexer com a barba de Orion – Também faz cócegas.

— Mas eu tenho barba desde sempre. Você já se acostumou.

— Mentiroso, você não tinha barba quando começamos a namorar.

— O que está dizendo? – Orion protestou, sua voz ficando mais alta sem que ele percebesse – Eli, eu tenho barba desde os dezesseis anos, você sempre me conheceu com barba.

— Ninguém tem barba aos dezesseis, Orion.

— Eu não acredito que você está dizendo que eu não lembro como o meu rosto era.

— Eu sei como seu rosto era, tão bem quanto você. Para de ser teimoso!

— Ah, eu sou teimoso?

Os dois estavam dando risada a essa altura, nenhum deles acreditando em quão ridícula a discussão era. Os copos e talheres sujos haviam sido esquecidos, assim como os vasinhos de flores na janela.

— Quer apostar? – Eli propôs, por fim.

— Eu não confio em você e suas apostas, querido, você tem lábia.

— Vamos, não vai te matar. Se eu estiver certo, você arruma o quarto por dois fins de semana. Se eu estiver errado, eu lavo a louça por uma semana. Topa?

— Topo – Orion suspirou e apertou a mão de Eli, que havia sido estendida como uma oferta de acordo – E como vamos resolver nosso dilema, meu amor? — as últimas palavras foram carregadas de ironia.

— Vou perguntar para Maya se ela ainda tem as fotos que tiramos em alguma das festas de Yltaris. Se você estiver sem barba, eu ganho. Fechado?

— Fechado.

Os dois se encararam por um tempo, com ar de desafio. Orion balançou a cabeça, segurando um sorriso e deu um beijo leve nos lábios do marido. Os dois ficaram em silêncio novamente, apenas encostados e de mãos dadas.

— Ei – Eli disse, voltando ao seu estado de seriedade habitual – Obrigado. Estou melhor agora.

— Não foi nada.

Eli se levantou da cadeira, finalmente, e parou para mexer nos cachos de Orion, antes de voltar a lavar a louça. Ele estava com as tranças um pouco desfeitas e mal cuidadas agora, murmurando uma cantiga de sua terra natal, iluminado pela fraca luz da lua.

Seu marido passou alguns longos segundos o admirando, antes de voltar para o jardim, sem dizer uma palavra.

***

Vinte e três anos antes.

Eli detestava festas.

Não era amigo de ninguém ali, apesar de conhecer a maioria das pessoas e conviver com elas por quase cinco anos. Entretanto, Yltaris gostava de organizar festas e gostava de apresentar Eli nelas, como se fosse seu filho.

O garoto de treze anos se sentia extremamente desconfortável. Pessoas que nunca conversavam com ele decidiam trocar algumas palavras e puxar assuntos simples e ordinários. Não passava disso – conversa para preencher o silêncio incômodo e a sensação de que precisavam conversar com o preferido da feiticeira. Eli se irritava com isso. Não gostava de conversar desse jeito, e não gostava de conversar com pessoas que não conhecia.

Sua melhor amiga, Maya, havia voltado para casa para passar as férias com a família. As poucas pessoas com que Eli realmente conversava no dia a dia, durante suas aulas e tempo de lazer, também não estavam presentes. Os alunos mais jovens não costumavam participar daqueles eventos – era uma festa para comemorar o sucesso de uma missão do Refúgio, geralmente feita por estudantes de quinze anos ou mais. Eli mal falava com gente de sua idade, ele não tinha a coragem ou falta de vergonha suficiente para fazer amizade com gente mais velha.

O hall de entrada do Refúgio e o anfiteatro estavam repletos de pessoas falando alto, comendo e dançando ao som do grupo de músicos elfos que estavam no palco. As três garotas que haviam sido as líderes da missão ocupavam o centro das atenções. Eli sentia pena delas por terem que lidar com tudo aquilo ao mesmo tempo.

O rapaz se sentia desconfortável em suas roupas formais. Elas eram certamente grandes demais para ele, mas como Eli não tinha família alguma para herdar ou comprar roupas para ele, tinha que se contentar com doações feitas ao Refúgio. Tinha certeza que havia amarrado sua gravata do jeito errado e todo mundo estava encarando-o e o julgando por isso. Ele preferiu ficar próximo à parede, quieto, apenas observando tudo ao redor, até que Yltaris surgisse para lhe fazer companhia.

As garotas em vestidos esvoaçantes falavam com os meninos cheios de hormônios. Todos os grupos de jovens pareciam os mesmos, e Eli não conseguia se incluir em nenhum deles.

Dois rapazes, porém, chamaram a atenção do garoto. Eles não estavam conversando com meninas – na realidade, não conversavam com ninguém, mas pareciam estar envolvidos em uma discussão. Eles eram semelhantes fisicamente, Eli presumiu que fossem irmãos. O mais velho devia estar próximo dos vinte anos, e o outro era alguns anos mais novo. Eram altos, de pele escura, da mesma cor que a terra ficava após uma tempestade. As diferenças entre os irmãos eram poucas – o mais velho possuía os cabelos menos crespos que o mais novo, e usava uma camisa branca amassada e solta – já o outro se vestia com uma camisa cinza e um colete preto, todo abotoado.

Camisa Branca e Crespo estavam no vão da escada que levava ao anfiteatro, próximos à mesa de comidas. Camisa Branca tinha os braços cruzados e sobrancelhas franzidas. Crespo gesticulava e falava sem parar, tão irritado quanto seu irmão.

Eli não conseguia ouvir uma palavra do que diziam, mas a julgar pela tensão entre os dois, não devia ser algo bom. Após ser interrompido por Camisa Branca algumas vezes, Crespo se irritou e parou de falar, dando as costas para ele e se misturando aos outros convidados. Ele olhou na direção de Eli, e o garoto imediatamente desviou o olhar.

Os irmãos não eram do Refúgio, se não Eli os conheceria. Recém-chegados, brigando durante uma festa. Isso seria realmente interessante. Camisa Branca entrou no Anfiteatro e sumiu de vista. Eli, discretamente, passou a se movimentar em meio aos grupos de pessoas, tentando acompanhar Crespo, mas sem interagir com ele. Eli não entendia porque estava fazendo aquilo, mas aquele rapaz o deixou curioso. Sempre que chegava perto demais do estranho, seu coração acelerava e Eli se virava de costas, tentando se esconder.

O garoto perdeu a noção do tempo, até que Yltaris veio até ele, surgindo como uma luz em meio à multidão. Seu longo vestido verde, suas feições delicadas e gentis de uma mulher de meia-idade, tão conhecidas por todos, atraiu a atenção. E como Yltaris ia até Eli, a atenção acabou passando para ele.

— Eli, meu querido, está aproveitando a festa? – perguntou ela, pondo a mão no ombro dele – Está comendo direito? Fez alguma amizade?

— Sim, sim e não – Eli respondeu, colocando as mãos no bolso e encarando o chão. Sentia o olhar da feiticeira sobre ele.

— Como me diz que está aproveitando a festa se não fez nenhuma amizade?

— Não gosto de conversar, senhora.

— Eu sei bem disso. Mas vamos resolver esse problema, eu vou te apresentar a algumas pessoas.

— Não é necessário, senhora Yltaris.

— Ah, venha. Não vai se arrepender. Depois disso pode ir para o seu quarto, eu prometo.

Eli não ofereceu mais nenhuma resistência. Yltaris lhe deu a mão e eles subiram as escadas para o primeiro andar, onde grandes janelas davam vista para o anterior do Anfiteatro. Yltaris e Eli ficaram observando a banda élfica tocando seus instrumentos, criando uma melodia doce e agitada. Alguns grupos formaram rodas para dançar, dando pulinhos, girando e trocando seus pares.

— Nada é melhor para a dança que uma música feita por elfos – Yltaris suspirou – É revigorante, não acha, Eli?

— É mesmo, senhora.

O garoto realmente gostava da música e quase sentia vontade de se juntar aos grupos que se divertiam ao som dela. Quase. Eli se considerava um fracasso na dança, só aceitando fazer isso quando ele e Maya estavam sozinhos, zombando um do outro.

Yltaris era uma mulher deslumbrante. Tinha muitos anos de idade, pelo que se dizia, todo grande feiticeiro é também um grande ancião, mas ao contrário da maioria, ela tinha um espírito jovem. E ela demonstrava isso em suas festas, quando sorria e dançava e fazia seus discursos, se enturmando com os alunos mais jovens de seu Refúgio e com as autoridades mais velhas que por vezes visitavam o lugar. Eli tinha grande respeito, admiração e gratidão por Yltaris, e mesmo que ela não fosse sua mãe, o garoto tinha a plena certeza de que ela sempre estaria disposta a cuidar dele como se fosse uma.

— Madame Yltaris? – uma voz rouca chamou, vinda de trás deles.

A feiticeira e Eli se viraram ao mesmo tempo. Um homem já de certa idade, de cabelos raspados e bigodes brancos, pele negra e roupas formais, esperava parado. Ele sorriu ao ver o rosto da feiticeira e fez uma reverência, além de beijar a mão da mulher.

— Sargento Golias, é uma honra revê-lo – Yltaris disse, sorrindo. Ela abriu os braços e deu um breve abraço no homem – O que pensa do Refúgio?

— É um lugar sem igual, minha senhora. Não apenas pela bela paisagem, mas seus habitantes, seus alunos, são todos cativantes.

Enquanto Yltaris agradecia e continuava uma conversa cordial e superficial com o Sargento, um rapaz se juntou a eles, subindo as escadas vagarosamente. Eli, que após ser apresentado ao Sargento, mal participava ou prestava atenção na conversa, sentiu um frio no estômago ao ver quem era a quarta pessoa que surgia ali. Era o rapaz de cabelos crespos que ele havia seguido mais cedo. Eli sentiu o sangue sumir de seu rosto e suas pernas e braços se paralisaram. Apenas os olhos se moviam, seguindo os movimentos do rapaz.

— Ah, acredito que este seja meu mais novo aluno! – Yltaris exclamou para o recém-chegado. Ele deu um pequeno sorriso, que pareceu forçado, e parou ao lado do Sargento Golias.

— Madame Yltaris, este é Orion, meu sobrinho – disse o homem, colocando uma mão nas costas do rapaz – Orion, esta é a feiticeira Yltaris, nossa anfitriã.

— É uma honra conhecê-la, minha senhora – disse Orion. Sua voz era mais grave do que Eli esperava, e lhe causou ainda mais frio na barriga – Obrigado por me aceitar aqui no Refúgio.

— Seja bem-vindo, meu jovem. É sempre bom ter novos rostos e novas mentes – Yltaris respondeu. Ela discretamente fez com que Eli andasse alguns passos para frente, se aproximando mais do grupo – Este é Eli Hyiam, meu protegido. É um de meus melhores alunos.

— Prazer em conhecê-lo, Eli – Orion estendeu a mão para o garoto.

Eli retribuiu o aperto de mão, murmurando algumas palavras nervosas e sentindo o sangue voltar subitamente para suas bochechas, o rosto ficando quente e vermelho.

— Por que diz que o menino é seu protegido, senhora? – Sargento Golias perguntou, com curiosidade.

— Ah, Eli e eu temos uma boa história juntos. Eu o encontrei em uma das últimas missões das quais participei pessoalmente. Ele não era maior do que isso – Yltaris indicou com a mão a altura de sua cintura – E vivia praticamente na rua, ou vivendo com uma mulher horrorosa que era dona de um orfanato. Quando vi Eli sozinho, eu senti que ele teria um futuro brilhante se recebesse ajuda. Me senti pessoalmente responsável por ele. E eu estava certa, não é mesmo?

— Sim, senhora – Eli concordou, timidamente – O Refúgio é minha casa, não posso me imaginar em outro lugar.

— Meu menino de ouro – a feiticeira brincou, carinhosamente mexendo nos cabelos curtos e dourados do garoto. Eli sentia que não podia ficar mais corado do que estava – Me perdoe se estiver enganada, Sargento Golias, mas acreditava que o senhor tinha outro sobrinho que se juntaria ao nosso Refúgio.

— Ah, sim, Narciso... – o Sargento pareceu ficar sem palavras, hesitante de como continuar.

— Meu irmão e eu ainda estamos lidando com o luto, minha senhora, e temo que esteja sendo mais difícil para ele – Orion respondeu – Nós dois andamos tendo desavenças e Narciso não está se sentindo muito à vontade hoje. Peço perdão por ele não estar aqui para se apresentar, é muita falta de educação da parte dele.

— Não, não, não considero falta de educação. Os deuses sabem como eu entendo o que é sofrer por luto – Yltaris respondeu, se tornando mais séria. Ela colocou uma mão no ombro de Orion, com um olhar compreensivo – Mas por favor, diga para seu irmão que eu gostaria de conversar com ele, assim que ele se sentir mais disposto.

— Sim, senhora.

— Se estiver perdido aqui no Refúgio, acredito que Eli ficaria feliz de lhe mostrar a região, não é mesmo, Eli?

— S-sim, senhora – o garoto respondeu, desviando o olhar de sua protetora e também evitando olhar o recém-chegado. Ele acabou fazendo contato visual com o Sargento Golias, o que foi constrangedor do mesmo jeito.

Yltaris e o Sargento Golias continuaram a conversar, mas Eli estava se sentindo ridículo. Queria tanto fazer perguntas para Orion – de onde ele vinha? Por que ele e Narciso brigavam? Quem morreu? Eles não tinham mais ninguém além do Sargento? Por que era tão alto?

Todas as questões morreram antes de sair da garganta de Eli. Sentia seu rosto ficando dormente, sua respiração se acelerava e começou a suar, mesmo que fosse inverno. O frio na barriga logo se tornou um nó, e tudo ao seu redor parecia estar girando. Oh não.

Eli estava tendo uma crise.

Por que ele não podia simplesmente conversar com as pessoas, como alguém normal faria? Por que ele tinha que ser sempre diferente do resto? O melhor aluno, mas de que isso importava em uma situação social como aquelas? Eli queria ter um momento de descontração, mas assim que tentava se misturar com o resto dos adolescentes seu corpo travava e seus pensamentos começavam a tomar conta.

Todo mundo devia estar falando sobre como ele é esquisito.

— Eli? Eli? Você está bem? – Yltaris estava chacoalhando seus ombros, preocupada.

— Sim, me distraí apenas. Desculpe.

— Poderia levar Orion até o quarto dele? Ele ainda não conhece o Refúgio. Pode voltar para o seu quarto também, se quiser – a feiticeira prosseguiu – Deve estar cansado já, pelo seu olhar.

— Acho melhor mesmo, senhora. Obrigado e boa noite – Eli disse, e depois parou nas escadas, esperando que Orion o seguisse.

Os dois saíram da área da festa e atravessaram corredores escuros e compridos, que Eli conhecia tão bem, em completo silêncio.

Estando longe de toda a multidão e dos sons altos que ocupavam a área central do Refúgio, o garoto se acalmou um pouco. Ele não se sentia prestes a desmaiar, o que já era um avanço, e evitou falar durante o trajeto. O outro rapaz parecia estar imerso em seus próprios pensamentos também, então talvez tenha sido melhor para os dois.

***

Maya batia o pé no chão, formando um ritmo. Ela estava nervosa. O avental branco que ela usava não fora suficiente para protegê-la e agora seus cabelos vermelhos e sua jaqueta estavam sujos de barro, graças ao vaso grande que ela estava carregando nos braços.

Eli, ao seu lado, teve mais sorte. Seu cabelo era curto demais para ser sujo facilmente, e suas roupas eram velhas, então ele mal se importava que tivessem sofrido algum dano.

As aulas de Estudo da Natureza eram as preferidas dele. Eli adorava mexer com os animais que eram criados no Refúgio, e entender como seus corpos funcionavam, com ou sem magia. Aquela era a aula para alunos de quatorze a dezesseis anos. Eli tinha treze, mas como era apaixonado pela matéria, conseguiu avançar uma etapa, podendo ficar com Maya, sua fiel companheira.

— O professor podia vir logo – ela reclamou, tentando tirar a franja de cima dos olhos, sem largar o vaso – Essa coisa está pesada. Quantos quilos de raiz essa planta tem?

— Eu não faço ideia. Ela se adequa ao espaço onde está, para aproveitar todos os nutrientes – Eli respondeu, girando de leve o seu vaso – Deixe no chão, se está tão pesado e pegue depois.

— Não sei se vou ter a força de vontade de pegar ele de volta.

Eli se agachou e colocou o vaso de barro aos seus pés. Aquela aula estava sendo na estufa, que era tão grande quanto uma casa e continha todos os tipos de plantas que alguém podia imaginar. O ar tinha cheiro de terra e umidade. Algumas mesas haviam sido espalhadas ao redor do local, para que os alunos fizessem anotações. Olhando para as pessoas presentes, Eli notou alguém novo na sala.

Orion Golias. É claro.

— O que foi? – Maya perguntou, franzindo as sobrancelhas ao ver o espanto do amigo.

— Lembra daquele aluno novo que eu contei que conheci? – Eli perguntou. A menina assentiu com a cabeça – Ele está na nossa sala, nessa mesa aqui atrás. Olhe disfarçadamente.

Ignorando totalmente o conselho, Maya esticou o pescoço para o lado e encarou a mesa que estava logo atrás deles. Orion estava de cabeça baixa, mexendo com um caderno de capa gasta, e não notou a atenção que recebia. Ninguém mais estava com ele na mesa.

— Uau – Maya assobiou – Ele é lindo.

Shh! Ele vai olhar.

— Ah, ele nem sabe que a gente existe. Mas uau. De onde acha que ele é?

— Não faço ideia. Mal o ouvi falar, mas não notei nenhum sotaque.

— Ai meus deuses, Eli, você foi até o quarto dele – Maya disse, largando o vaso também e segurando um risinho – Isso é bem íntimo para alguém que você acabou de conhecer.

— Eu não entrei no quarto, só o deixei na porta – Eli respondeu – Ele divide o quarto com o irmão mais velho, eles parecem não se dar muito bem.

— Ah, eu aposto que ele precisa de uns abraços de conforto – ela riu ainda mais, e recebeu um tapa vindo de Eli – Ei, vai me dizer que ele não é lindo de morrer.

— Eu sei lá! – Eli corou – Ele é bonito, eu acho.

Maya mordeu o lábio inferior e deu um sorrisinho de provocação, como se estivesse vendo algo que o amigo não entendia. Eli novamente lhe deu um tapa e ela deu um gritinho de protesto, que acabou fazendo Orion erguer a cabeça e olhar para eles. Eli imediatamente virou de costas e tentou se esconder, enquanto Maya congelou, mas deu um leve aceno de mão – que passou despercebido.

— Você é louca – resmungou Eli.

Poucos minutos depois, o professor entrou na estufa, com uma prancheta em mãos e uma caneta de pena. Ele passou reto pela fila de alunos, e continuou concentrado e seus papéis. Reclamações e suspiros de irritação foram ouvidos, mas o professor de Estudos da Natureza mal se afetou.

— Ele é sempre assim – Maya disse, revirando os olhos e dando um chutinho em seu vaso – E tudo isso por um pé de amoras-dragão.

— São as maiores amoras que existem, e são muito gostosas – Eli respondeu – Aparentemente, o professor vai deixar a gente plantado aqui.

Nenhum dos dois havia notado que as conversas ao seu redor haviam diminuído e que agora o professor havia começado a percorrer os alunos, examinando seus vasos e fazendo anotações. Dessa forma, o trocadilho acidental de Eli, que antes teria sido ignorado, foi ouvido em alto e bom som. Maya e mais algumas pessoas próximas deles na fila deram risada, mas uma única gargalhada se destacava entre as demais. Era alta, grave e não parava.

Orion Golias estava rindo, sentado em sua mesa. Eli se virou para olhá-lo, meio tímido, mas um sorriso se formou em seu rosto também.

— Não acredito que seu trocadilho ruim chamou a atenção desse cara – Maya resmungou, tentando disfarçar sua diversão – Eu não sei porque ainda somos amigos, Eli.

O professor chegou perto da dupla e os dois tiveram que levantar seus vasos novamente. O riso de Orion cessou rapidamente, e ele retornou aos estudos de seu caderno. O professor mexeu nas folhas da planta e fez perguntas sobre as técnicas de cultivo das amoras-dragão para Maya e Eli, as quais foram respondidas corretamente.

Quando os últimos alunos foram avaliados, eles foram orientados a sentarem-se em grupos e fazerem relatórios de suas atividades do dia.

— Podemos sentar com você? – Maya rapidamente foi até a mesa onde Orion estava e puxou duas cadeiras.

— Mas é claro. Não vou deixá-los plantados aí, não é mesmo?

— Obrigado – Eli disse, ainda extremamente envergonhado – Nós já nos conhecemos, eu acredito. Sou Eli Hyiam, Yltaris nos apresentou durante a festa.

— Ah, sim, me lembro de você – Orion sorriu – É o menino de ouro.

— Menino de ouro? – perguntou Maya, erguendo uma sobrancelha, mas não recebeu nenhuma resposta.

— Essa é Maya Legger, minha amiga. Maya, este é Orion Golias.

— Prazer em conhecê-la – o rapaz apertou a mão de Maya com firmeza.

— M-muito prazer.

— Maya, acho que temos relatórios para fazer – Eli lembrou, dando uma cotovelada discreta nela.

Os dois amigos pegaram as folhas que estavam em cima da mesa e começaram a escrever nela com suas canetas, mas a cada cinco minutos, Maya dava uma olhadela para Orion. Eli estava entre os dois, e apenas a presença do estranho já lhe deixava com um frio na barriga novamente. Ele era mais velho do que Maya, certamente. Onde estava seu irmão? Eli não o vira desde a festa, semanas antes.

— Desculpe a pergunta, mas quantos anos você tem, Orion? – Maya perguntou, como se lesse a mente de seu amigo.

— Tenho dezessete – Orion respondeu, sem erguer os olhos do caderno – Minha educação está um pouco atrasada, nunca fui para escolas muito boas, sabe. Por isso vim para esta turma, se é o que você queria saber.

— Ah, eu só queria conhecer melhor nosso recém-chegado. Não é sempre que temos alunos novos por aqui.

— Entendi – Orion respondeu, fechando o caderno- Bem, eu estou um pouco perdido com a matéria ainda. Sinto que vou demorar para me acostumar.

— Eli é inteligente, ele pode te ajudar com os estudos. Não é, Eli?

— Acho que sim -Eli respondeu, pisando no pé de Maya por baixo da mesa – E-eu acho que consigo te explicar Estudos da Natureza, é minha matéria preferida.

— Obrigado pela oferta – Orion agradeceu e se recostou na cadeira. Seu olhar se tornou sombrio por um instante – Mas não quero atrapalhar.

— Você não vai atrapalhar! – Eli exclamou, talvez rápido demais e com a voz mais aguda – Não temos muito o que fazer aqui, na verdade. Bom, eu não tenho, pelo menos. Não que eu só esteja me oferecendo porque não tenho nada melhor, não foi o que quis...

— Eu entendi, eu entendi, calma – Orion deu risada – Relaxe, amigo.

— Boa sorte com isso – Maya comentou – Estou tentando fazer ele relaxar faz anos.

Eli suspirou e voltou a se concentrar no relatório que devia estar fazendo, mas não conseguia deixar de sentir a presença de Orion ao seu lado, lhe incomodando os pensamentos e fazendo-o tremer de nervosismo toda vez que seus braços se encostavam sem querer.

***

Orion e Narciso estavam no Refúgio já fazia alguns meses. Os irmãos eram vistos juntos com frequência, mesmo que muitas vezes estivessem brigando. De maneira geral, estavam se enturmando. Não tinham aulas juntas, e seus grupos de amigos eram distintos. Para a felicidade de Maya, Orion havia se tornado uma companhia constante para ela e Eli, assim como seus outros antigos amigos do Refúgio.

Era primavera e a noite estava fresca. Naquele horário, o pequeno palácio que era o prédio principal do Refúgio estava praticamente vazio, com todos os alunos, habitantes e funcionários se recolhendo para seus quartos.

Eli, como sempre, não fazia parte da maioria. Havia ficado na biblioteca até tarde, entretido com um livro de ficção, e teria passado a noite ali se o bibliotecário não o tivesse expulsado. No caminho de volta para seu quarto – que felizmente ele não dividia com ninguém – ele passou pelo hall de entrada, já que tinha que chegar à outra parte do palácio.

Aquela área em particular continuava iluminada, e alguns professores estavam conversando e tomando café nas escadas. Após cumprimenta-los rapidamente, Eli trombou com uma pessoa e quase foi parar no chão.

— Narciso? – chamou ele – Onde está indo com tanta pressa?

— Para meu quarto, mas o que te interessaria mais é de onde eu vim.

— Está brigando com Orion?

— É claro. Ele é um idiota. Vá falar com ele, e leve isso com você.

Narciso segurava uma garrafa em sua mão e deu para o garoto. Ao tocá-la, Eli sentiu que ela estava muito quente. O irmão Golias mais velho também tirou do bolso do casaco um pote de vidro fechado, e novamente o colocou nas mãos de Eli.

— Tudo bem, então – Eli suspirou, olhando para os itens, confuso – Onde ele está?

— No jardim suspenso, sentado no chão.

Com passos fortes e xingamentos murmurados, Narciso se afastou pelo corredor oposto, se tornando apenas um vulto de cabelos bagunçados e botas sujas.

Eli respirou fundo. Ninguém iria notar se ele demorasse mais para voltar para o quarto, afinal, ele morava lá sozinho.

Continuou pelo segundo andar do hall, passando pelas luzes apagadas do anfiteatro, e seguiu contornando o palácio, até que chegou no lado sul, que ficava virado para as colinas e o pequeno rio que atravessava a região.

Era a área mais bonita do palácio, sem dúvidas. A cidade ficava no lado oposto, e a maior construção daquele lado do Refúgio era a estufa. Uma grande janela ocupava toda a altura da parede, levando a uma varanda suspensa, coberta por um piso de grama e arbustos, com trilhas de pedras conectando pequenas mesas e cadeiras de palha. Os postes que sustentavam lanternas à óleo iluminavam o jardim parcialmente, criando padrões de luz e sombra na grama.

Orion estava deitado, com os pés encostados na amurada de pedra. Uma garrafa de vidro estava ao seu lado e ele olhava fixamente para o céu.

— Eli? – chamou, sem se mexer – Meu irmão te mandou?

— É, mandou.

— Mande ele ir para o inferno, por favor.

— Hm, talvez depois.

Eli sentou ao lado de Orion. O garoto mais velho o olhou de esguelha e deu de ombros. Ficaram em silêncio por alguns segundos antes de Eli se lembrar dos objetos em suas mãos.

— Narciso pediu para eu trazer isso comigo – Eli disse, colocando a garrafa e o pote no chão – Acho que é chá, mas o pote...

— É pomada. Uau, estou quase emocionado, foi gentil da parte dele – Orion resmungou, pegando o pequeno pote de vidro e o jogando para o ar algumas vezes – Pode me ajudar?

— Ajudar com o quê? – antes que Eli processasse o que estava acontecendo, Orion estava sentado, desabotoando sua camisa – Ei! O que está fazendo?

— Abre o pote, por favor.

Eli obedeceu, e segurou o vidro com a pomada. Orion passou os dedos no remédio e começou a espalhar pelo peito, fazendo rápidas expressões de dor em alguns momentos. Depois, levantou suas mangas e começou a passar pomada pelos braços.

— Você está machucado? – Eli perguntou, preocupado.

— Nah. Só alguns hematomas, mas não é nada demais.

— Como você fez isso?

— Me jogando contra a parede. Praticando luta com caras maiores do que eu. Ai! – Orion fechou o punho e comprimiu os lábios quando seus dedos tocaram uma parte machucada em seu tórax – Deuses, eu nem sei de onde veio esse.

— Por que está fazendo essas coisas se sabe que vai se machucar?

— Nunca esteve numa luta, Eli?

— Hm, não – o garoto respondeu como se isso fosse óbvio – Olha para mim, Orion. Eu iria morrer se lutasse com alguém.

— Ah, mas a adrenalina! A emoção! – Orion exclamou, com um sorriso satisfeito – Nunca se sabe se vai ganhar ou perder, de onde vai vir a próxima pancada, é o suficiente para te manter vivo.

— Você me subestima. Está se machucando de propósito.

— De certa forma. Me mantém distraído.

Orion terminou de cuidar de seus machucados e fechou sua camisa novamente. Eli deixou o pote de vidro de lado e então abriu a garrafa. O cheiro era doce e agradável, com certeza era chá.

— Eu acho que você deveria tomar isso – Eli disse, e depois indicou a garrafa ao lado de Orion – O que é aquilo ali?

— Rum. Do melhor tipo, de casa – os olhos de Eli se arregalaram e Orion deu risada – É, eu sei, não devíamos ter bebidas alcóolicas aqui, mas Narciso e eu trouxemos de qualquer jeito. Não conte para a Yltaris, está bem?

— Claro – Eli mentiu, agora realmente preocupado – Você deveria tomar o chá.

— Se Narciso se deu ao trabalho de fazer chá para mim, eu não vou desperdiçar.

Depois de um rápido gole, Orion começou a xingar sem parar, pois tinha queimado a língua. Eli reprimiu um risinho e pegou a garrafa das mãos dele.

— Tenho certeza que ele fez isso de propósito – Eli brincou, depois que Orion parou de resmungar – Por que Narciso está bravo com você?

— E por acaso Narciso precisa de motivos para se irritar comigo? Ele é meu irmão, essa é a função dele – Orion suspirou, dando de ombros – Ah, são muitas coisas ao mesmo tempo, Eli. Não quero que você fique contra ele, porque eu entendo o lado do Narciso.

— Eu sou todo ouvidos.

O rapaz mais velho suspirou mais uma vez, mais profundamente, como se estivesse tentando organizar os pensamentos.

— Tudo tem a ver com meu pai, eu acho, e com a minha mãe. Ele era um bom homem, sempre trabalhou demais para cuidar de nós dois. Mas ele e a mãe de Narciso nunca foram casados. Ciço se encontrava com a mãe todos os meses, no mar, até ela morrer – Orion começou a explicar- Mas não é como se minha mãe não amasse o Narciso. Ela cuidou dele como um filho desde sempre. Nós dois crescemos juntos, sem remorsos, sem diferenças. Mas a minha mãe também morreu, três anos atrás. E nós ficamos só com meu pai.

Assim que Orion mencionou a mãe, Eli viu que algo nele se fragilizou. Talvez fosse seu olhar ou uma mudança no tom de voz, mas ele sabia que aquele era um assunto delicado. Orion estava vulnerável.

— Meu pai ficou louco com o luto. Nos mudamos para terras estranhas, ele passou a trabalhar longe de casa, como se quisesse ficar longe de nós. Narciso não levou isso muito bem – Orion continuou com amargura – E então, um ano atrás, nosso pai também morreu. Ele se afogou depois de um naufrágio do navio onde ele estava trabalhando. Moramos por algum tempo com um tio da minha mãe, mas nós dois sabíamos que só tínhamos um ao outro. A família da minha mãe nunca gostou muito do meu irmão. Parece até... parece até que somos amaldiçoados, sabe. Perdemos toda nossa família aos poucos. Eu tenho medo de perder Narciso também, e eu sei que ele também se preocupa com isso.

— Mas vocês não estão em perigo – Eli observou – Estão no Refúgio. Aqui é o lugar mais seguro de Aurora. Vocês não têm família, mas nós vamos servir como família.

— É um pensamento bonito. E eu sei que você ama esse lugar, Eli, e que a Yltaris é como uma mãe para você, eu realmente não quero te ofender com o que vou dizer, mas...isso não vai funcionar conosco. Narciso e eu estamos muito acostumados com a inconstância. Nos mudamos de cidade o tempo todo, nunca ficamos parados no mesmo lugar por muito tempo.

— Então vocês dois querem fugir? – Eli perguntou.

— É exatamente por isso que estávamos brigando – Orion disse – Narciso quer ir embora, custe o que custar.

— E você?

— Não sei bem. Quero ficar aqui, mas não quero ficar confinado à livros e estudos, entende? Eu quero mudar o mundo, fazer parte dele, e não só ler sobre o que acontece – e de novo, não quero te ofender, Eli. Só estou dizendo que não consigo ser como você – Orion disse, encarando o céu como se estivesse a fazer um monólogo – Meu avô era druida, vê. Eu sei que eles estão sofrendo com invasões e ataques humanos agora, que suas crianças estão se perdendo e morrendo. Eu queria poder lutar e ajudar com isso. E acho que talvez o Refúgio possa me ajudar nesse sentido.

— Mas Narciso não concorda.

— Ele acha que sou um idiota cheio de ideologias metido a herói. Diz que sou muito novo, mas que já devia ter aprendido a não me iludir com a ideia de um mundo melhor – o olhar de Orion relampejou brevemente com raiva e remorso – Às vezes acho que ele está certo. Mas hoje disse para ele ir encontrar outra pessoa para chatear com sua baboseira depressiva, e aqui estamos.

Novamente, silêncio. O chá estava morno agora e Orion bebia com mais frequência. A mistura do gosto delicado do chá com o álcool do rum era curiosa, e um tanto desagradável, mas ele sentia que estava se acalmando. Eli observava seu colega mais velho atentamente. As sombras brincavam com o rosto de Orion. O cabelo dele estava uma bagunça de cachos, contornando sua cabeça como uma auréola escura.

— Orion, só porque você não está socando ninguém não quer dizer que não está sendo útil. Não está desperdiçando seu tempo aqui. Se saísse para enfrentar as injustiças como bem entendesse acabaria se matando – Eli disse com paciência – E acredito que você e seu irmão nunca vão parar de brigar se não falarem o que sentem um para o outro. Claramente existe uma grande massa emocional entre vocês dois, mas ninguém quer falar sobre isso, o que só torna a raiva e o amargor do luto mais difícil de digerir, e faz com que fiquem a culpar um ao outro.

Sem dizer uma palavra, Orion deitou na grama novamente. As estrelas, acima de si, eram uma visão agradável. Brilhantes, espalhadas pelo tecido negro do céu. Ele sempre se interessou pelas estrelas. Quando era pequeno, Orion gostava de puxar Narciso pela manga da roupa e subir até o telhado da casa deles, só para estar mais perto das misteriosas fontes de brilho no céu.

— Elas não são incríveis? – Orion murmurou, sem esperar alguma resposta – As estrelas, eu digo.

— Sim, elas são...- Eli ergueu o pescoço numa posição desconfortável para olhar para o céu, não se deixando enganar pela mudança repentina de assunto. Orion puxou o garoto pelo pulso, e ele estava agora também deitado ao seu lado – Ei!

— Sabe, Eli, para alguém da sua idade, você é bem inteligente. Esperava menos de garotos de treze anos.

— Na verdade, eu fiz quatorze anos na semana passada.

— Uau, realmente, muito mais maduro – Orion provocou, dando uma risada irônica – Ainda sim, estou surpreso com a sua mentalidade.

— Bem, acho que é isso que eu ganho passando os últimos seis anos enfiado em bibliotecas e salas de aula, além de ter as mesmas habilidades sociais de uma ostra.

— Isso não é inteiramente verdade.

— O que?

— Suas habilidades sociais. Você está falando comigo agora mesmo. Você tem amigos.

— É, mas... isso é diferente. Se não fosse por Maya, eu provavelmente só teria te encarado de longe, com vergonha demais para começar a conversar – Eli suspirou, se sentindo estranhamente à vontade, mesmo com a grama pinicando suas costas e seu mais novo amigo deitado bem ao seu lado – Eu tenho medo demais para fazer qualquer coisa heroica. Por isso não vejo problema em ficar aqui no Refúgio, enquanto outras pessoas mudam o mundo por mim. É frustrante, às vezes. Eu queria ser diferente.

— Ei, ei, está se contradizendo, jovenzinho. Acabou de me dizer que ficar parado aqui não é algo ruim, mas agora diz que você fica irritado por fazer isso. Não está ouvindo seus próprios conselhos, Eli.

— Argh, eu não sei – resmungou o rapaz – Só queria não ser tão frágil. Não me ver sendo alguém excepcional.

— Não precisa mudar o seu jeito de ser para ser excepcional – Orion observou e acrescentou, com um sorriso – Aposto que você vai ser incrível algum dia.

— Eu realmente espero que você esteja certo.


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Notas finais do capítulo

Comentários são bem vindos! O conto seis é um dos meus preferidos. Posto ele logo, espero que gostem também.



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