Contos de Aurora escrita por Wi Fi


Capítulo 7
Conto Sete: Uma Jovem Guerreira


Notas iniciais do capítulo

Olá! Ressurgi das cinzas! Sort of.
Bom, esse capítulo ainda vai ter uma continuação, e aqui introduzimos uma personagem nova, a Deah, e o arco de história dela é separado do arco principal (Nanna e companhia)...por enquanto pelo menos. Espero que gostem!



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Deah não planejava passar seu aniversário de treze anos apanhando de sua melhor amiga, mas ali estava ela.

O treinamento para se tornar Guardiã Parkii era intenso, mas a garota já estava acostumada. Ona, a amiga em questão, também. Seus bastões de madeira eram suas armas do momento, e haviam lutado vigorosamente por cerca de dez minutos, até que Ona acertou Deah nas costelas e a garota caiu no chão de areia da Arena.

— Oh, deuses, você está bem? – Ona perguntou, largando seu bastão no chão e se ajoelhando ao lado da adversária – Deah?

— Ugh, estou – resmungou a outra – Você é boa com os bastões, Ona, vai deixar os Juízes impressionados.

Ona sorriu e ajudou a amiga a se levantar com um puxão. A treinadora delas, Madame Ragga, as observava silenciosamente, de braços cruzados, e Deah sentiu-se um pouco envergonhada. Tinha que impressioná-la, e a cerimônia de Iniciação seria em uma semana.

O sol do meio-dia brilhava sobre suas cabeças. Os outros aprendizes estavam se cansando de suas lutas, mas a treinadora não havia mandando que parassem, então Deah e Ona pegaram novamente em seus longos bastões e voltaram a se atacar.

Primeiro, andaram em círculos, perseguindo uma a outra, mas sem se atacarem. Então, Ona rodopiou para a frente, movendo seu bastão em uma linha diagonal mirando novamente as costelas de Deah. Dessa vez a aniversariante estava esperta e se desviou para o lado, aproveitando o movimento para empurrar sua adversária com a ponta do bastão.

Ona deu alguns passos para trás, aparentemente sem sentir dor por conta do golpe. Deah grunhiu em frustração. Luta com bastões não era sua área de especialidade, mas sempre era colocada para lutar contra Ona, que era a melhor entre os aprendizes, porque tinham mesma altura e peso.

Usando a frustração como incentivo, Deah decidiu que não se deixaria perder a luta. Se aproximou devagar de sua adversária, sem fazer ameaça alguma. Ona a encarava com os olhos negros cheios de concentração, e então ergueu seu bastão para atacar os ombros de Deah. Entretanto, Deah havia previsto esse movimento e seguiu seu plano – fincou o bastão na areia, se apoiou nele para pular e chutou Ona com a sola do pé, fazendo com que ela caísse.

Ona se levantou rapidamente, e Deah a acertou com o bastão novamente, nas pernas, e nos ombros, até que Ona se desviou com uma série de giros para o lado e acertou as costas de Deah.

Deah caiu de joelhos na areia. De novo.

— Muito bem, crianças, chega por hoje! – anunciou Madame Ragga, com sua voz poderosa. Ela marchou pela arena de areia, inspecionando cada um dos aprendizes para garantir que nenhum estava muito seriamente ferido – Dispensados.

— Mas senhora, e os dragões? – Deah perguntou alarmada, ainda no chão – Não iríamos treinar com eles durante a tarde?

— Mudança de planos, princesa. O cuidador deles disse que estão agitados demais hoje, não é seguro para vocês, crianças.

Deah grunhiu baixinho e se levantou, batendo as mãos nas pernas para tirar a areia que ficou grudada em sua saia e nas calças curtas que usava por baixo. Ona se aproximou dela.

— Ei, amanhã vamos ver os dragões, tenho certeza – disse ela, colocando uma mão no ombro de Deah – Além do mais, vai poder aproveitar seu aniversário em casa, não é?

Deah não respondeu. Seu aniversário não era um dia particularmente festivo, em sua opinião. Estava contente por ter treze anos e ser velha o suficiente para fazer parte da Iniciação para se tornar uma Guardiã Parkii, mas além disso, não via nada de grandioso no dia.

Ela recolheu seu material de treino, que estava jogado na arquibancada alta que rodeava a arena, e pôs-se a caminho da padaria onde sua tia trabalhava.

Enquanto andava, não parava de pensar o quão injusto era o fato de terem pouco tempo de treino com seus dragões. Cada aprendiz tinha um, e eles eram o símbolo de Parkii – eram a única ilha do Arquipélago das Bestas onde existiam aquelas criaturas maravilhosas, e Deah tinha ótimas habilidades com sua fêmea de dragão, Papoula. Pretendia se especializar na vigilância alada da ilha, quando fosse mais velha, mas tendo pouco tempo para lidar com os bichos, esse sonho parecia se complicar a cada dia.

As ruas de Parkii estavam cheias de pessoas, devido à hora do almoço. Comerciantes gritavam tentando vender seus produtos, alegando que tinham as frutas mais saborosas do arquipélago, ou os vinhos mais refinados, ou os sucos mais doces.

O caminho até a padaria parecia não acabar. Quando Deah virou a última esquina do trajeto, suspirou de alívio. Sentia seu ombro e a barriga doerem – embora agora não soubesse se era só por causa dos golpes de Ona ou por causa da fome e do peso da bolsa de equipamentos.

A padaria era uma construção baixa, de tijolos escuros, com uma porta e várias janelinhas nas laterais. A porta estava aberta, como sempre, e Deah a atravessou correndo para se sentar na primeira mesa que visse.

Não demorou muito para que tia Carissa se juntasse a ela, sentando-se ao seu lado. Tia Carissa tinha uma presença alegre e simpática, que quase animou Deah. Ela trazia um prato cheio e um copo de suco.

— Olá querida! – disse ela, dando um beijinho na testa da sobrinha – Trouxe seu preferido.

— Obrigada, tia – Deah se forçou a sorrir.

— Como foi o treino?

— Foi bom – ela mentiu. Teria sido bom se ela tivesse treinado com os dragões – Onde está Ambrus?

— Ah, seu padrinho estúpido está atrasado – Carissa respondeu, olhando para a porta – Disse para que ele chegasse na hora do almoço para te encontrar, mas ele não me ouviu...

Deah deu de ombros e mordeu o pão que estava no prato. Pão Parkii e carne de ovelha com molho de árvore-melada era a melhor comida do mundo, na opinião de Deah, e tia Carissa sabia bem disso. O suco de abacaxi gelado combinava perfeitamente com o prato. Deah sentiu-se um pouco mais feliz e começou a se questionar se o seu mau-humor havia sido só culpa da fome.

Tinha sido acordada por tia Carissa naquela manhã com café-da-manhã na cama. O lado bom de ter uma tia padeira era que Deah sempre tinha as melhores comidas da ilha ao seu dispor. Ambrus também havia estado lá para lhe desejar felicidades.

***

Família era um aspecto muito importante da vida em Parkii. Uma pessoa devia lealdade máxima àqueles com quem compartilhava sangue. Traição familiar era a maior desonra possível.

Sara e Carissa Soler eram irmãs como quaisquer outras na ilha. A mãe delas era uma Guardiã Parkii aposentada. O pai delas era um político da ilha. Sara, a mais velha, era extrovertida e curiosa. Queria sair de Parkii e conhecer o mundo. Carissa, a mais nova, estava contente com seu lugar no Arquipélago, era tímida e gentil.

Quando nobres da península de Arjan chegaram em Parkii para assinar tratados comerciais, as garotas da ilha ficaram apaixonadas por todo seu exotismo e ar culto da metrópole. Sara não foi exceção. Ela se apaixonou pelo lorde mais importante de Arjan, um homem chamado Lewi.

Se apaixonaram loucamente por um mês. Mas quando Lewi foi embora, o amor foi junto, e Sara estava grávida. Ele nunca voltou para cuidar da filha. Deah nunca o conheceu.

É claro que isso virou notícia em Parkii. A filha de um líder político e de uma Guardiã, mãe solteira? Inaceitável. Sara virou motivo de piada e alvo de troças pela ilha – mas sua família não a abandonou.

Sara morreu de uma doença súbita quando Deah tinha três anos. Uma carta foi enviada a Lewi. Ele não respondeu. Carissa e seus pais se viram obrigados a cuidar de Deah sozinhos.

Entretanto, poucos meses depois da morte de Sara, um homem de Arjan chegou em Parkii. Ele dizia se chamar Ambrus Lorand, e era um dos vassalos de Lewi. Ele havia se rebelado contra seu lorde e sido proibido de voltar a Arjan. Oferecia sua ajuda para cuidar da filha bastarda de Lewi.

Logicamente, ele foi recebido com desconfiança. Além do mais, ele não era parente de Deah de forma alguma, seria pouco ortodoxo que ele interferisse em sua vida. Era um completo desconhecido.

Mas Ambrus não tinha porquê mentir. Ele havia perdido todo seu dinheiro, suas posses e status social quando se rebelou contra Lewi.  

Eventualmente, Ambrus foi aceito na sociedade Parkii como o belo estrangeiro que, apesar dos modos elegantes e aparência refinada, tinha dedos hábeis e braços fortes e passou a trabalhar como ferreiro.

A avó de Deah morreu não muito tempo depois, da mesma doença súbita que Sara. O avô, velho e senil com o luto, se tornava mais distante a cada dia. Ambrus criou para si o título de padrinho da menina bastarda, e não desgrudou dela desde então.

Esse era o mesmo Ambrus que estava atrasado para o almoço.

***

A cada ano que se passava, Deah se lembrava menos de sua mãe. As memórias que tinha eram baseadas em coisas que seu avô e sua tia a contavam. Seus gostos, seus hábitos, Deah tinha que lutar para não esquecer de nada disso.

Sabia que ela e tia Carissa eram parecidas – os cabelos castanhos escuros que enquadravam rostos angulosos, com a pele de um tom marrom-claro reluzindo ao sol. Deah queria se parecer mais com elas, mas sua pele era mais clara do que a da maioria das pessoas de Parkii. Além do mais, ela tinha olhos verdes. Olhos de Arjan. Olhos de seu pai.

Tia Carissa ainda estava tentando fazê-la falar sobre seu dia quando Ambrus chegou. Algumas pessoas se viraram para olhá-lo. Ele sentou na cadeira à frente de Deah e tamborilou os dedos na mesa.

— Olha só, minha aniversariante preferida – ele disse, se esticando para bagunçar os cabelos dela – Como se sente, estando mais velha?

— Com fome – Deah respondeu, dando de ombros.

— Então trate de comer tudo que está no prato – tia Carissa disse. Ela se voltou para Ambrus e continuou, com um ar de reprovação – Pelos deuses, está todo sujo! O que é que esteve a fazer esse tempo todo?

— Consertando a carruagem dos Turim – respondeu Ambrus – Aquela coisa velha está soltando tinta e o eixo principal estava acabado.

Carissa se levantou e foi para o lado dele, limpando o rosto e o pescoço de Ambrus com o pano que trazia no ombro. Ele deu um sorrisinho quando ela começou a puxar seu bigode com o pano.

— Ei, não estou tão sujo assim!

— Seu bigode e sua barba estão azuis, bobo. Diga a ele, Deah.

— É verdade – Deah concordou.

Ela própria tentou segurar um risinho. Carissa e Ambrus eram péssimos em disfarçar seu romance secreto. Deah tinha suspeitado da existência disso semanas antes, mas a comprovação viera havia alguns dias, quando encontrou um casaco de seu padrinho pendurada na cabeceira da cama de Carissa. Não haviam contado nada para ela -nem para ninguém, até onde Deah sabia, mas era incrivelmente óbvio.

— Bem, aniversariante – Ambrus continuou a dizer, depois que estava devidamente limpo – O que é que nós vamos fazer para comemorar seu aniversário?

— Deah tem que estudar a língua antiga durante a tarde – Carissa observou.

— De nada adianta saber montar dragões mas não falar a língua dos Guardiões – concordou Deah, com um suspiro. A imagem dos grossos livros empoeirados lhe fazendo companhia o dia todo não era animadora.

— Ainda assim, temos a noite livre, não temos? – perguntou Ambrus – Eu ouvi dizer que tem um bardo na cidade. Poderíamos ir vê-lo tocar.

— Eu detesto bardos – disse Deah.

— Eu amo bardos! Eles têm canções ótimas! Óóó, minha bela dama do maaaar! Como eu conseguirei te esqueceeeer....

Ambrus cantava com um sotaque forte, mas não era totalmente desafinado. Deah e Carissa puseram-se a rir dele, até que a música se tornou piegas demais e a garota pegou o pano de sua tia e jogou em Ambrus, para que ele se calasse.

— É melhor jogarem panos do que tomates – ele respondeu, pegando o pano e o jogando de volta na afilhada.

— Eu posso arranjar tomates...- Carissa sugeriu.

— Não, muito obrigado...acabo de me lembrar que tenho que acabar urgentemente a carruagem dos Turim...

Ambrus pôs-se de pé, como se fosse embora, mas Carissa o agarrou pelo braço e ele voltou a se sentar. A essa altura, Deah já havia desistido de terminar sua refeição em paz.

— Nós podemos passear pelo campo – ela sugeriu – Nos encontramos ao pôr do sol e vamos para as colinas.

— Eu não posso ir – Carissa disse, com uma careta – Tenho que cuidar das crianças da madame Lora.

— As oito crianças da madame Lora? – repetiu Ambrus – Elas são umas pestes.

— Mas a mãe delas paga muito bem, e nós nunca recusamos dinheiro – rebateu Carissa – Mas vocês dois deveriam ir para as colinas. Com o vovô! Ele adoraria. O que acha, Deah?

A garota assentiu, com animação. Seu avô, por mais senil que estivesse, tinha histórias interessantes para contar quando saia de casa.

Depois de terminar o almoço e comer mais um pouco de bolo junto de Ambrus e Carissa, Deah voltou alegre para casa. Caminhar pelos lindos campos de Parkii durante a noite era uma boa recompensa por suas horas de estudo da língua antiga.

***

Quando o pôr do sol surgiu pelas janelas da cozinha, Deah saiu correndo para trocar de roupas. Colocou um vestido bege de linho e trançou seu cabelo com contas coloridas. Calçou suas melhores sandálias e foi acordar o avô.

Ele estava dormindo em seu quarto, nos fundos da casa da família. A janela que estava aberta era voltada para o mar, e uma brisa leve refrescava o ambiente.

Vovô Azel era um homem gorducho e encolhido, de longas barbas brancas e bigodes enrolados. Ele roncava e suspirava tranquilamente. Deah sentou-se na beirada da cama e empurrou seu ombro com delicadeza.

— Vovô. Vovô, acorde! Já é pôr do sol – ela disse.

O idoso abriu os olhos e se espreguiçou devagar. Piscou algumas vezes para a neta, como se tentasse se lembrar de quem ela era.

— Deah. Sim, é o aniversário de Deah – ele murmurou.

— Sim, eu sou Deah, lembra?

— Ah, sim. Claro. Olá, Deah.

— Olá, vovô. Tia Carissa já está de saída, mas Ambrus vem nos buscar para sairmos para o passeio.

— Tia Carissa? Eu não tenho uma tia chamada Carissa – vovô Azel disse.

— Não, é a minha tia Carissa. Sua filha.

— Oh, oh, claro. Minha Carissa.

Azel se levantou e buscou um casaco no armário. Era um casaco velho e feio, rasgado em algumas partes, mas ele nunca saia de casa sem ele, então Deah não tentou impedi-lo. Tomou o avô pelo braço e foi até a porta da casa, onde Carissa estava conversando com Ambrus.

— Olá, pai – ela disse, quando Deah e o senhor se aproximaram – Prontos para saírem para se divertir?

— Prontíssimos! – Deah exclamou, finalmente se sentindo animada naquele dia.

— Então, vamos – Ambrus disse, desencostando-se da parede externa da casa – Divirta-se com os oito demoniozinhos da madame Lora. E boa sorte.

— Obrigada – Carissa suspirou e deu de ombros – Ela realmente paga bem.

— É o homenzinho de Arjan! – exclamou vovô Azel – Vamos andar de navio?

— Não senhor, temo que hoje não – respondeu Ambrus – Vamos a pé.

— Para o mar?

— Não, para o campo, pai – Carissa disse – Ambrus e Deah guiarão você, não se preocupe. Comportem-se, vocês três. Deah, não deixe esses homens fazerem tolice.

— Pode deixar – respondeu a menina.

Ambrus e Deah se colocaram um de cada lado de Azel, segurando os braços do velho senhor. Acenaram para Carissa enquanto seguiam pela estradinha de areia que levava para o centro da cidade, e que depois disso seguia para o campo.

***

A noite de Parkii era bem mais fresca que o dia. Enquanto atravessavam a cidade, Ambrus, Deah e vovô Azel sentiram o cheiro de incenso que vinha das casas e restaurantes, e ouviam música em algum lugar distante. Todas as noites eram assim – Parkii era um lugar de tradições, e os costumes de cada família eram religiosamente seguidos o tempo todo.

O trio, porém, recebia olhares feios enquanto caminhavam. Azel, tendo sido um político da cidade, tinha seus próprios inimigos, mesmo que agora estivesse perdendo sua lucidez. Deah carregava a culpa de ser uma bastarda. Ambrus era estrangeiro, e ainda haviam muitos homens que não confiavam nele – sentimento de desconfiança nutrido talvez pelos suspiros que o homem de Arjan costumava arrancar das mulheres da ilha.

Sob a luz da Lua, Ambrus parecia ainda mais estranho em meio aos tons escuros da ilha. Deah imaginava que até mesmo em sua terra natal ele seria considerado exótico. Ambrus havia lhe contado que, na região de onde vinha, todas as pessoas tinham cabelos cinzentos, mesmo as crianças, e seus olhos eram prateados como os dele. Por isso, mesmo não sendo muito mais velho que Tia Carissa, Ambrus tinha os cabelos, barba e bigode grisalhos, em um rosto jovem.

Em certo momento, encontraram o tal bardo que havia chegado na cidade. Foi fácil reconhecê-lo, pois tinha um instrumento de cordas em seu colo e era ele que estava produzindo a música que era ouvida em toda a cidade. Havia uma fogueira à sua frente, mas ninguém estava sentado para ouvi-lo. Ele era jovem e usava roupas maltrapilhas, que pareciam serem mais velhas do que ele. Tinha longos cabelos castanhos que caiam em seus ombros com cachos graciosos.

— Pelo jeito o bardo não está fazendo muito sucesso – disse Deah, enquanto passavam pelo homem.

— Ele tem uma voz boa – observou Ambrus. Ele soltou o braço de Azel por um instante e foi em direção ao bardo. O velho logo o seguiu, e Deah fez o mesmo – Senhor, aprecio muito sua música. Fico feliz de ouvir talentos como você por aqui.

Ambrus tirou uma moeda de seu bolso e a ofereceu para o cantor. O bardo olhou para a moeda, depois para Ambrus, e ergueu uma sobrancelha.

— Não faço música por dinheiro, senhor, mas agradeço o elogio – ele disse, escondendo um sorriso divertido, como soubesse de uma piada que os outros não percebiam.

Vovô Azel começou a rir, e Deah lhe apertou o braço. Logo Ambrus voltou para onde eles estavam e o trio se reuniu novamente, voltando a caminhar em direção aos campos.

— Eu já fui um ótimo cantor um dia, sabiam? – disse Azel.

— Ah é? – perguntou Ambrus. Ele também adorava ouvir as histórias do velho homem, mesmo não tendo certeza de quais eram verdadeiras.

— Sim! Foi como eu conheci a minha esposa! Doce Theia! Sejamos honestos, de doce ela não tinha nada! Mas eu a amava. E cantei para ela na primeira noite que trocamos olhares – ele continuou – Ela não gostou da canção. Disse que eu tinha a voz boa, mas que não acreditava em uma palavra do que eu cantava. Disse-me que um homem que fazia leis não devia tentar fazer romance através das canções.

— E você não desistiu dela, pois não? – Deah perguntou – Se não, eu não estaria aqui!

— É claro que não! Sabia que nunca conheceria uma mulher tão forte e tão bonita na minha vida. Ela era uma Guardiã, ora essa. Cantei para ela nas noites seguintes, até que ela aceitou sair comigo em um dia que não estivesse fazendo patrulha. E depois daquela tarde em que passeamos na praia, ela passou a gostar das minhas canções!

Vovô Azel riu-se sozinho e começou a cantarolar algo incompreensível. Deah apertou sua mão com carinho, e sentiu conforto na memória da avó.

***

A pequena colina que ficava logo na periferia da cidade foi escolhida como o destino final do trio, já que vovô Azel não aguentava andar muito mais do que aquilo. Deah estava satisfeita de um jeito ou de outro. Estavam fora do centro agitado da ilha, e ali era podia respirar aliviada. Os salgueiros ao seu redor não faziam comentários maldosos por ela ser bastarda. Os arbustos não riam do vovô por ele estar louco e as flores não lançavam olhares interesseiros para Ambrus.

O sol já havia sumido no horizonte, e a noite reinava. A grama parecia azul na escuridão.

— Então, Deah – disse Ambrus, assim que estavam todos devidamente acomodados no gramado – Algum desejo especial para seu décimo terceiro ano?

— Que os Juízes me aceitem como Guardiã – ela respondeu, simplesmente – E que eu aprenda a ganhar da Ona na luta com bastões.

— Consegue falar em alguma coisa que não esteja relacionada aos treinos?

— Consigo. Posso falar da minha fêmea de dragão, Papoula, ela vai ser uma adulta em breve e aí eu vou poder montá-la profissionalmente, e voarei de ilha a ilha, por todo o arquipélago!

Ambrus deu risada e bagunçou os cabelos de Deah. Ela não entendeu o que era tão divertido. Estava dizendo a verdade – tudo o que queria era ser uma Guardiã dos ares, especializada em vigiar Parkii pelo alto, montada em Papoula, sua fiel companheira.

Bom, talvez seu padrinho estivesse certo. Ela não conseguia pensar em nada que não fosse relacionado aos treinos. Sua vida naqueles últimos meses se resumia a estudar, lutar e suar. Às vezes Deah tinha saudades de ir para a escola normal, com as outras crianças de sua idade, mas logo lembrava o quão entediada se sentiria tendo aulas de pesca e de religião. Talvez fosse melhor ouvir as broncas de Madame Ragga e levar os golpes duros de Ona.

Vovô Azel pareceu se entreter arrancando folhas de grama e as cortando em pedacinhos pequenos. Ambrus olhava para o mar, com um ar pensativo. Deah se perguntou se ele estava sentindo saudades de casa. Eles quase nunca falavam sobre Arjan, tanto por causa de ressentimento quanto por tristeza, mas subitamente Deah sentiu-se muito egoísta por não se importar com os sentimentos de seu padrinho.

— Ambrus, você ainda tem algum contato com Arjan? – ela perguntou, não sabendo bem como abordar o assunto.

— Muito pouco. Falo com meus sobrinhos de vez em quando, por cartas – respondeu ele, calmamente – Mas a maioria do reino me chama de “escória traidora”. Eles não sabem da metade do que se passa com o governo das províncias.

Deah assentiu e pensou que aquilo era culpa sua, de alguma forma. Se ela não tivesse nascido, Ambrus teria permanecido com sua família. Mas ele também não teria descoberto sobre a realidade traiçoeira de sua terra, sobre a corrupção moral que cercava aquelas pessoas que ele considerava seus amigos. Ele seria mais feliz, mas não saberia da verdade.

— O meu pai é um homem mau? – Deah perguntou novamente, com mais timidez. Ambrus pensou um pouco antes de responder.

— Eu não diria isso. O Lewi que eu conheci, que cresceu comigo, era uma boa pessoa. Ele era inteligente, e honrado. Mas quando se tornou Lorde, algo mudou. Algo se quebrou, sem que eu percebesse, e subitamente ele estava largando bastardos por aí, gastando mais dinheiro do que devia, agindo sem pensar, sem se preocupar com sua responsabilidade.

— E isso não é suficiente para você dizer que ele é mau?

— Bom, para quem nunca o conheceu certamente parece suficiente – Ambrus disse, em um tom surpreendentemente severo – Mas eu me recuso a acreditar que o meu amigo está perdido. Talvez...

Ele se silenciou e voltou a olhar para o oceano. Deah compreendeu o que ele pensava. Talvez Lewi, corrompido pela sua posição de poder, poderia voltar a ser o mesmo de antes, de alguma forma. Talvez, se Ambrus conseguisse falar com ele pacificamente, conseguiria fazê-lo perceber como havia mudado. Talvez, se ele conhecesse sua filha...

Não. Deah não iria conhecer Lewi. Ela não conseguiria olhá-lo nos olhos e não cuspir no seu rosto. Mas também não queria pensar que Ambrus era um homem iludido. Deah suspirou profundamente, sentindo a animação de seu aniversário passar.

— Você me lembra um pouco ele, às vezes. No jeito de falar. Vocês dois são decididos, resistentes. Teimosos, até. Foi algo que eu sempre admirei nele – o padrinho de Deah murmurou – Embora... isso também pode ter vindo da família de sua mãe. Sua tia é uma pessoa forte e determinada. Pelo que eu sei, sua mãe e sua avó também eram.

Os dois olharam ao mesmo tempo para vovô Azel, que agora havia encontrado uma árvore com pequenos frutinhos rosados. Ele parecia bem determinado em coletar o maior número possível deles.

— Como foi a primeira vez em que você encontrou a minha tia? – Deah perguntou, tentando mudar o assunto para algo mais feliz. Ambrus deu risada.

— Ah, foi assustador. Ela me ameaçou com um rolo de abrir massa de pão. Você estava lá, aliás. Sentadinha no chão, brincando com uma bonequinha de pano caolha.

— Era a Senhorita Gadel! – exclamou Deah, surpresa – Eu amo aquela boneca... – senhorita Gadel agora era um brinquedo colocado como decoração em uma prateleira de seu quarto, mas ainda era boa companhia.

— Essa mesma – Ambrus sorriu – Eu não culpo Carissa por ter ficado irritada comigo. No lugar dela, eu também não confiaria em mais ninguém de fora da ilha.

Deah imaginou sua tia com um rolo na mão e olhar raivoso. Era uma imagem incrivelmente assustadora. Ela imaginou que Ambrus teria ficado no mínimo receoso em continuar uma conversa com aquela mulher.

Vovô Azel começou a bater palmas e a apontar para o céu, balbuciando palavras incompreensíveis.

— O que diz, vovô? – Deah perguntou, ficando de pé e indo até ele.

Ela se apoiou em seu ombro e olhou para onde ele apontava. Ambrus se aproximou também e logo os dois perceberam o que o velho homem queria mostrar.

No céu, vários pontos brilhantes se moviam rapidamente, deixando um pequeno rastro luminoso por onde passavam.

— Estrelas cadentes! – Deah exclamou – Olha, Ambrus, uma chuva de estrelas cadentes!

— Boom! Caiu! – vovô Azel disse, rindo como se aquilo fosse a coisa mais divertida do mundo.

— Façam um pedido – disse Ambrus.

Deah fechou bem os olhos. Pediu que fosse bem na cerimônia de Iniciação.

Quando abriu, viu que uma estrela cadente havia deixado seu rastro no céu em uma linha reta bem acima deles.

— Olha, essa está bem acima de nós – Deah disse – Se seguirmos o rastro, vamos encontrar a estrela! Deve ter caído aqui pela ilha!

— E o que estamos esperando? – Ambrus perguntou – Vamos encontrar essa maldita estrela!

***

Demoraram um pouco mais para descer a colina e seguir em direção ao outro lado do campo, por causa de vovô Azel, que sentia dores nas pernas ao se esforçar demais. Entretanto, Deah havia memorizado o caminho que a estrela cadente havia deixado e foi fácil segui-lo, mesmo que o rastro houvesse sumido do céu.

As árvores eram baixas e espaçadas, assim não era difícil caminhar em meio ao mato. Caminharam por meia hora até chegarem em uma depressão no solo, preenchida por florezinhas que brilhavam com a luz da lua em um tom lilás.

— São flores-fada – vovô Azel disse – Elas também dão sorte! Mas deve pegar uma só!

Ele se aproximou das flores e delicadamente pegou uma, e a colocou em seu bolso. Depois pegou mais uma.

— É para sua avó – ele explicou, como se fosse óbvio – Ela adora essas flores.

— Tenho certeza que ela ficará muito feliz, senhor – Ambrus disse, colocando uma mão no ombro do homem. Ao contrário de tia Carissa, Ambrus não tinha a coragem de tirar Azel de seus delírios.

O estrangeiro abaixou-se e pegou também duas flores, e fez o mesmo que vovô Azel. Deah pegou só uma, mas assim que seus dois acompanhantes se viraram de costas, ela pegou mais duas. Ter sorte demais nunca era coisa ruim.

— Olha, já está tarde da noite – Ambrus disse, enquanto Deah e Azel olhavam ao redor à procura da estrela – A estrela deve ter caído mais longe do que pensávamos. Devíamos voltar para a cidade logo. Carissa vai ficar preocupada.

— Oh, não, não, ela está na padaria! – vovô Azel disse – Está tudo bem. Ela sempre está na padaria.

— Acha que ela já voltou da casa da madame Lora? – Deah perguntou.

— Sim. Vamos, podemos procurar a estrela de novo amanhã, quando estiver mais claro e conseguirmos ver melhor – Ambrus continuou – Mas eu acho que ver uma chuva de estrelas cadentes e um jardim de flores-fada já é um ótimo presente de aniversário, hein?

***

Eles não encontraram a estrela cadente no dia seguinte, mas Deah não se importou. As três flores que havia pegado já a deixaram confiante o suficiente para ir para o treino. Ela as deixou guardadas embaixo de seu travesseiro, para que sua sorte agisse sobre ela enquanto dormia. Tia Carissa agora também tinha uma flor-fada, que havia cuidadosamente prendido em seu avental de padeira, com um grampo.

Naquele dia de treino, Deah finalmente montou em seu dragão. Papoula era de uma das menores raças que existiam em Parkii, não sendo muito maior do que uma cama comum. Era uma filhote de Ventoforte Pacífico, mas Deah acreditava que era tão capaz de impor respeito quanto os outros dragões. Ela havia escolhido o nome Papoula porque seus olhos eram vermelhos como a flor, e sua pele era rosa.

De cima das costas de Papoula, Deah sentia-se uma heroína como as das lendas de Parkii. Voaram alto, mas ainda dentro dos limites da arena. A garota tinha seu arco e suas flechas consigo, e conseguiu acertar os alvos com muita precisão, voando em círculos com o dragão. Madame Ragga assentiu com a cabeça e deu um leve sorriso de aprovação. Deah encheu-se de confiança.

A treinadora então lhes deu instruções para circularem o alto da arena, passando com seus dragões pelos aros que lá ficavam posicionados. Ona tinha medo de altura, e permaneceu o tempo todo agarrada em seu animal. Quando chegou ao chão, estava tão verde quanto o dragão.

Deah deu um tapinha carinhoso nas costas de Papoula antes de subir em suas costas escamosas. O dragão soltou um bufo de ar pelas narinas, e balançou o rabo animadamente.

— Vamos lá, garota, nós vamos ser as melhores Guardiãs que Parkii já viu – Deah murmurou perto do rosto de Papoula, como se lhe contasse um segredo.

Princesa!— madame Ragga chamou – Sua vez.

As asas de Papoula se dobraram. Elas eram compridas, mas não muito graciosas. Eram fortes o suficiente para erguer seu corpo rechonchudo no ar. Deah se apoiou em uma das patas de Papoula para pular para a sela de couro presa em suas costas, e se amarrou nela com as tiras de couro necessárias.

Papoula caminhou um pouco, antes de dar um pulinho desajeitado e começar seu voo. Pegaram altura rapidamente e começaram a voar em círculos pelo alto da arena. O sol da tarde atrapalhava a visão de Deah, mas ela fizera aquele percurso muitas vezes antes e conhecia os obstáculos muito bem.

O primeiro aro era largo, não foi difícil passar por ele. Alguns metros depois, o segundo aro apareceu, um pouco mais alto. Papoula se ergueu rapidamente e o atravessaram. Deah mal precisava direcionar o dragão para se mover nas direções desejadas, de tão conectadas que estavam as mentes da garota e da criatura.

O terceiro e último aro era, na verdade, três aros um em cima do outro, cada um levemente menor que o anterior. Os dragões mais compridos e flexíveis os atravessavam com facilidade, mas para Papoula a fluidez do movimento era dificultada por seus membros gorduchos e atarracados.

Entretanto, nem Deah nem Papoula se desanimaram. Atravessaram o primeiro aro e logo a garota guiou o dragão para cima, com um chutinho em seu tronco. Papoula atravessou o segundo arco e entendeu o procedimento, repetindo o movimento com o terceiro arco. Neste último, além de atravessá-lo, Papoula deu também um giro, deixando Deah momentaneamente de ponta cabeça.

Diminuíram a altitude lentamente, e pousaram no chão com tranquilidade. Deah e Papoula foram recebidas com aplausos entusiasmados.

— Muito bem, senhorita Soler – Madame Ragga disse, com os braços cruzados – Mantenha essa calma na Iniciação e posso vê-la como Guardiã dos ares.

Deah abriu o maior sorriso que conseguiu, e agradeceu Madame Ragga com um gesto – bateu duas vezes no peito com a mão direita, de palma aberta, e então, cobriu a mão direita com a esquerda e abaixou a cabeça. Era um sinal de respeito antigo, que seu avô a havia ensinado. Madame Ragga pareceu gostar disso.

***

Alguns dias mais tarde, Deah estava treinando novamente a luta de bastões, dessa vez com um rapaz baixinho chamado Ozma.  Ele não era tão rápido quanto Ona então Deah tinha certa vantagem.

Porém, quando seus bastões se encontraram, e os dois aprendizes empurravam o adversário com todas suas forças, o bastão de Deah se partiu ao meio e ela caiu para frente, empurrando Ozma com ela.

A garota ficou chocada. Usava aquele bastão havia meses, ele ainda estava novo e forte. A luta parou e ela foi correndo para a arquibancada, analisar a situação de sua arma.

O bastão, que antes era longo e firme, tinha sofrido uma rachadura bem no meio. As letras antigas que haviam sido entalhadas ao redor do bastão todo estavam agora partidas naquele ponto. Olhando mais de perto, Deah percebeu que o interior do objeto estava cheio de pequenas cavidades, com insetinhos escondidos neles. Cupins.

Ela grunhiu de frustração e quis chorar. Não podia acreditar naquilo. De acordo com a tradição, um guerreiro nunca deveria trocar de bastão, porque ele retém todas as lutas e aprendizagem que ele teve com suas vitórias e derrotas. Ir para a Iniciação com um bastão novo não era boa ideia.

Mas seu bastão estava quebrado, e seria impossível consertá-lo. A madeira não poderia ser grudada de novo.

***

Ambrus olhou para os dois pedaços de madeira, e girou-os em suas mãos. Seu olhar não era muito esperançoso.

— Eu sinto muito, querida, mas não sei se posso fazer algo. Os cupins roeram a madeira sem você perceber e deixaram o interior fraco – Ambrus respondeu – O esforço eventualmente fez com que quebrasse, e eu não consigo juntar a madeira de novo.

— Mas eu...não posso usar um bastão novo! – Deah choramingou. Ambrus não parecia entender a gravidade da situação – Esse era único, especial. Vou ter que começar do zero!

— Posso entalhar as mesmas letras que esse tinha – ele sugeriu – Se eu começar amanhã, estará pronto no dia seguinte.

A Iniciação era em três dias. Não haveria tempo suficiente para treinar com o bastão novo.

Mas não havia outra solução. Não tinha outros bastões em casa – eles eram enterrados junto de seus guerreiros quando estes morriam, logo o bastão de sua avó não poderia ser utilizado. Já Carissa e a mãe de Deah nem sequer haviam treinado.

Deah sentiu os olhos pesados de Madame Ragga sobre si, cheios de julgamento. Que tipo de Guardiã se descuida e deixa cupins comerem seu bastão?

A garota sentou-se no chão e começou a chorar silenciosamente. Já não havia mais ninguém na forja de Ambrus, então ela não se sentiu tão envergonhada. Suas lágrimas escorriam e pingavam no chão de areia. Ambrus deixou seus materiais de lado e sentou-se no chão ao lado da afilhada.

— Ei, ei, calma, Deah – ele murmurou, colocando um braço ao redor dos ombros dela – Você é habilidosa com qualquer bastão que tiver, está bem? Tenho certeza que nenhum dos juízes vai notar se está com um bastão novo ou antigo.

— Mas não é a norma de como um Guardião deve se comportar! – ela exclamou, exasperada – Eu estaria quebrando uma tradição!

— Às vezes as tradições e normas são difíceis de serem seguidas. Temos que nos adaptar.

Deah abraçou Ambrus e chorou em seu ombro. Não sabia dizer se isso era só por causa do bastão partido ou por causa de todo o estresse que vinha sentindo com tudo isso. Era o momento mais importante de sua vida, e ela estava apavorada.

Parkii inteira não via os Soler com bons olhos. Desde os inimigos de Azel até a tragédia de Sara, muita gente na ilha tinha algo a dizer sobre aquela linhagem de atrapalhados. Deah não queria continuar a tradição, e entrar para a história como a quase-Guardiã que usou um bastão inútil em sua Iniciação. Não queria dar mais um motivo de piada para a ilha.

Seu padrinho a segurou e sussurrou palavras encorajadoras até que Deah eventualmente parou de chorar. O sol já havia sumido no horizonte e estava mais frio. Os dois foram juntos até a casa de Carissa, em silêncio.

Tia Carissa notou que havia algo de errado com a sobrinha, e lhe fez milhões de perguntas, mas Deah respondeu com monossílabos e meias palavras. Chorou mais um pouco, escondida em seu quarto. Carissa ficou preocupada, mas ao invés de lhe fazer mais pressão, apenas trouxe um copo de chá e um pedaço de bolo. As duas comeram em silêncio também.

Como todas as famílias de Parkii tinham suas tradições, o silêncio também parecia ser uma tradição da família Soler. Eles entendiam a dor um do outro, com compaixão silenciosa. E bolinhos.

***

Na manhã seguinte, Deah acordou com seu avô batendo na sua porta.

— Deeeee-aaah! – ele chamou – O rapazinho de Arjan está aqui de novo!

Ela bocejou e trocou rapidamente de roupa, não se preocupando em pentear os cabelos. Desceu as escadas e encontrou Ambrus e tia Carissa sentados juntos no sofá da pequena sala. Ele tinha um bastão de madeira em seu colo.

O bastão de madeira. O que Deah havia quebrado no dia anterior.

A garota correu para pegar sua arma, e o girou nas mãos algumas vezes. Era mesmo o seu bastão! Estava quase novinho em folha – tinha um novo anel de madeira, rodeando a área em que havia se partido.

— Como...? – ela perguntou, olhando para seu padrinho.

— Vi que tinha ficado chateada, e fiz o que podia. Não é uma solução permanente, eventualmente vai precisar de um novo – Ambrus explicou, muito solene. Pelas olheiras embaixo de seus olhos, ele havia passado a noite em claro trabalhando no bastão – Mas vai dar para usar na iniciação. Eu preenchi os buracos com metal derretido, para que ficasse firme de novo, mas não muito pesado, e os moldei para que se encaixassem. Fiz o anel para cobrir a rachadura, e tentei copiar os símbolos que estavam aí antes.

Deah deixou o bastão no chão e fez o gesto de respeito que havia aprendido com sua avó. Depois, abraçou Ambrus com todas as suas forças. Ela ouviu tia Carissa suspirar, e naquele momento, Deah sentiu no fundo do seu coração a sua esperança e sua coragem voltarem. Ainda não chegara o dia em que ela quebraria uma tradição da ilha.

— Olha, agora é bom que você deixe de nervosismo e impressione aqueles Juízes – Carissa disse – Tenho toda a certeza que vai ser incrível.

— Eu espero que esteja certa – Deah respondeu, simplesmente, contemplando de novo o seu novo-antigo bastão.

— Carissa está sempre certa! – apoiou Ambrus, com um sorriso.

Ela corou um pouco, e Deah novamente notou a sutileza do romance secreto que havia entre os dois. Gostaria que eles deixassem de fingimento logo. Se Ambrus e Carissa se casassem, ele seria tio de Deah, e finalmente seria parte oficial da família. Era o mínimo que ele merecia, depois de tanto tempo cuidando dela.


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Notas finais do capítulo

Posto o próximo capítulo ainda hoje! Espero que tenham gostado da Deah, do Ambrus e da Carissa. Eles são personagens bem interessantes, e eu quero escrever mais sobre eles no futuro. Quem sabe até juntar essa história com a Nanna e os outros personagens.



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