Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 5
Falta de Sorte


Notas iniciais do capítulo

Voltamos ao Andy, pra saber se afinal o treinamento com o Jimmy deu certo. Hora de vermos gente nova, e descobrirmos um pouco mais sobre esse forasteiro problemático.



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Depois de uma pequena maratona, Andy chegou para seu primeiro dia de aula. A corrida o animou um pouco; esforço físico sempre foi bom para fazê-lo deixar de pensar nos problemas.

Diferente da sua antiga escola, nessa garotos e garotas estudavam juntos, o que para ele era novidade. Todo suado entrou na sala, tendo como único desejo desviar do olhar da professora, o que obviamente não aconteceu.

— Ei, garoto, venha aqui na frente e se apresente como se deve! — gritou uma senhora magricela, de nariz pontudo e cabelos em coque, já com seus sessenta e tantos anos. Tão feia e rabugenta que o lembrou do dono da hospedaria.

Ele se virou em direção a ela, ciente das dezenas de olhos e risos que o seguiram.

— Andy Valentine, dezesseis anos, Manchester — falou, estudando seus colegas de classe.

— Está ciente de que as aulas começaram a uma semana, correto?

— É, tô sabendo sim, tia.

— Nada de tia! Sou sua professora e exijo ser tratada com o respeito devido. É senhora Margaret Fremman! Não sei se de onde veio é normal chamar a professora como parente, mas nessa escola exigimos linguajar apropriado.

"Fremman ... sério?", perguntou-se o garoto, pensando se todos naquela cidade seriam parentes do velho Fremman.

Patricinhas, esportistas, nerds, tinha de tudo ali, os mesmos tipos de grupos que encontraria em qualquer escola do tipo. Grupos com os quais não conseguiria se enturmar. Mas para sua surpresa, no fim da sala havia um rosto conhecido: Mandy Duncan, a garçonete loba, olhando para o lado e fingindo não vê-lo.

Ele se sentou na última fileira, como de costume. Sua expressão de poucos amigos afastou a vontade dos mais educados de conhecê-lo, e a aula seguiu normalmente. Horas depois, os alunos saíram da sala, não sem antes olhar para o forasteiro, entre risos e caras feias ele percebeu que era o assunto da vez.

— Espero que suas faltas e o atraso de hoje sejam exceções, e não regra, Valentine — alertou a professora.

Ele ignorou o comentário e foi embora, no caminho sendo abordado pela dona da casa em que estava hospedado.

— Diz ai Scooby, como é ser o centro das atenções na turma? — perguntou, de uniforme escolar e pulseiras de bandas de metal.

— Quer dizer que agora a Hello Kitty tá me vendo? Achei que estava cega — respondeu, rabugento e acelerando o passo.

Ela aumentou o ritmo para acompanhá-lo.

— Você tá dormindo lá em casa, não imaginei que também fosse da mesma turma que eu. A cidade é pequena, cara, se a gente for visto junto toda hora, daqui a pouco vão começar a falar bobagem.

— Vai se danar, garota! Tenho mais o que fazer que ficar ouvindo seu mimimi.

Ele desviou o caminho, e ela desistiu de acompanhá-lo.

— Vê se não some, nervosinho. Você já tem dado muito trabalho pra o Jimmy, vê se não faz ele ficar atrás de você também.

Ele realmente vinha dando trabalho ao novo mentor. Só não sabia se seria tudo perda de tempo.

***

Um sótão fedorento em uma noite de lua cheia. Nele, um monstro grande, forma de lobo, com garras afiadas, pelos brancos e olhos vermelhos rosnava para um homem parado à sua frente. Apenas uma coleira de metal feita com correntes muito grossas impedia a criatura de destroçar o sujeito.

— É sério, Andy, a terceira noite de treinamento e você não consegue nem raciocinar que não deve me matar? — questionou Jammes Duncan.

A única resposta do monstro foi morder e puxar a corrente, quebrando um dente e fazendo a gengiva sangrar. Jimmy então se despiu e começou ele mesmo a virar um monstro. Músculos e pelos, garras e rabo, dentes e focinho. Em poucos instantes, o lugar se tornou palco de dois lobisomens imponentes e assustadores. Jimmy, maior que seu alvo, saltou sobre ele, travando as presas do lobo branco com as poderosas mãos e mantendo o olhar da fera no seu próprio.

— Você é Andy Valentine! — rosnou ele, face a face. — Lembre-se de quem você é! Lembre-se de quem você é!

Uma sucessão de ataques com as garras fizeram o barman soltá-lo, e uma mordida quase arrancou o antebraço do lobo marrom, sangue escorrendo pelas presas do garoto-monstro que não conseguiu voltar a si. Atrás do homem, que afastado e ajoelhado aguentou a dor do ferimento, uma garota de calça larga e casaco. Ela observou a tudo bebendo chocolate quente, dizendo por fim:

— Assustador, né? Acho que ele vai te dar muito trabalho ainda, maninho.

— Quieta, Mandy! — ele ordenou, entre dentes, suportando com dignidade a dor e olhando para o monstro que continuava a se ferir ao tentar quebrar a corrente. — Ele tem raiva de mais dentro dele, e raiva é justamente o que alimenta o monstro dentro de nós. Enquanto o moleque não aprender a dominar a raiva ao invés de se deixar levar por ela, ele vai ser só um animal.

— E se ele não for bom nisso? — perguntou, expressão de desinteresse. — Se não conseguir se controlar?

Jimmy encarou o garoto, cerrou os punhos e ergueu–se novamente.

— Ele vai embora... ou morre. Não quero um cachorro louco na nossa cidade.

E os dois irmãos olharam para o lobo, que uivou dentro daquele sótão com isolamento acústico. 

***

Era domingo pela manhã, e o jovem vestindo um casaco com capuz caminhou pelas ruas, observando o fluxo de pessoas que se dirigiam para a paróquia. A maioria de carro, outros de bicicleta e alguns poucos a pé. Ele nunca entendeu o porquê de alguém ser tão religioso. Se as pessoas gostavam de ir à igreja, pensou ele, é por terem mais medo de demônios que de gente. O que era uma grande ingenuidade.

A maioria das casas daquela região eram grandes, e após rodar por mais de meia-hora ele chegou diante do que considerou um alvo promissor. "Winnicott", era o sobrenome na caixa do correio, e a ausência de uma garagem ou carro na porta, aumentava as chances de estar vazia. Depois de se assegurar de que a rua estava deserta, Andy se esgueirou pelo quintal da casa de dois andares.

Nenhum barulho, se havia algum cachorro não apareceu. Portas e janelas trancadas, como ele imaginou, não seria difícil destrancar, mas invadir a janela de cima já aberta era mais seguro. Um, dois, em três movimentos o garoto chegou na janela, rápido e furtivo, como um ladrão profissional. Lá dentro, viu um quarto típico de garota: cama bagunçada, criado-mudo, guarda roupas de seis portas e mesinha com computador. O único diferencial ficou por conta de uma pilha de livros de Psicologia e uma gata peluda, dormindo em cima da cama.

Abrindo o guarda roupas encontrou: perfumes, maquiagem, mais livros, tranqueiras e... roupas. Já sem esperanças ele abriu a última porta do móvel, lá dentro reluzindo um colar muito bonito, com uma cruz de ouro cravejada com outras pedras, e que ele imaginou render um bom dinheiro. Mas Andy não desejava roubar algo tão valioso, talvez mesmo uma herança de família. Isso chamaria atenção desnecessária, além de deixá-lo com a consciência pesada. No fim, só encontrou vinte libras perdidas em uma bolsinha. Ao fechar o móvel, viu a gata arrepiada, olhando e silvando para ele.

— Eu não gosto de você, você não gosta de mim, cada um fica na sua, valeu? — tentou ele, olhos semicerrados ao encarar a criatura.

Quando pensou em tentar a sorte em outro cômodo, sons de passos vindos de fora do quarto o fizeram mudar de ideia. Em cinco segundos a porta foi aberta, mesmo tempo que o garoto levou para se esconder embaixo da cama. Uma jovem de camisola e sandálias de pantufas caminhou preguiçosamente em direção ao computador, paralela a cama onde uma gata miava freneticamente, parecendo em uma final de concurso de música.

— Surtou, Fiona? — perguntou ela, afagando o pescoço da amiga com pelos. — Desse jeito eu te encho de Rivotril, hein!

Do ponto em que se encontrava, ele só conseguiu discernir as curvas da bela loira, o que quase tornou a situação agradável, principalmente se ela resolvesse despir-se. Por uma ou duas vezes tentou se arrastar para fora, mas o risco era grande demais. Para completar seu azar, o animal desceu da cama e deitou em sua frente, miando com olhos acusadores.

Olhos nos olhos, o som da gata silvando pareceu despertar um resquício da sua natureza animalesca. Ele encarou o felino com olhos de predador, fazendo a gata se arrepiar e sair correndo pela porta entreaberta.

— Que foi isso, menina!? — gritou a jovem, rindo e correndo atrás do animal.

Andy notou que era sua chance, saindo furtivamente de seu esconderijo. E em poucos segundos já estava fora do quintal Winnicott, para nunca mais voltar lá. Sua primeira tentativa de roubo desde que mudou de cidade, e quase foi pego. Tudo isso por uma mixaria que não resolvia seus problemas. Se ao menos tivesse pego a joia... A verdade é que o garoto estava em um barco que afundava cada vez mais, e não tinha ideia de como escapar daquele naufrágio que era sua vida.

Som de sirene de polícia, um som que o garoto conhecia bem. Quando olhou adiante, viu uma viatura andando devagar, com uma oficial ruiva ao volante e um barbudo ao lado.

— Parado ai, rapazinho — ela ordenou, parando igualmente a viatura.

Não faltava mais nada acontecer, pensou ele.

— Algum problema?

— Documento, por favor — pediu a policial, de dentro do veículo.

Andy abriu a carteira e entregou a identidade, ainda que muito a contragosto. A policial mostrou o documento ao seu parceiro, depois o devolvendo ao dono.

— Você é de onde, "Valentine"? Nunca te vi por essas bandas antes.

— De longe — respondeu, seco.

A dupla se olhou, sorrindo.

— E o que o rapazinho fazia no quintal dos Winnicott, posso saber? —  a mulher perguntou.

Andy sentiu um frio lhe subir a espinha quando percebeu que foi visto saindo de lá, mas fez o máximo para não demonstrar nervosismo.

— Eu estava procurando a casa de um tal de Duncan, mas pelo jeito confundi o sobrenome.

O policial ao seu lado começou a rir, a ruiva fazendo sinal para que ele se controlasse, e Andy sem entender nada.

— Acho que podemos fazer uma boa ação e deixar o rapazinho lá, o que acha? — a policial perguntou para o parceiro, que deu de ombros. — Entra ai forasteiro, aproveite a carona.

Andy apenas sorriu, o sorriso amarelo de quem não sabia como em tão pouco tempo já estava dentro de uma viatura policial. E tudo aquilo por nada mais que vinte libras, lembrou.

— Valeu pela carona — disse ele ao chegarem ao destino, pronto para sair do carro.

— Não tão rápido, meu trabalho não acabou ainda — e dito isso, a policial ligou a sirene em frente à casa dos irmãos.

Em um minuto Mandy saiu pela porta, sorrindo ao ver a policial lado a lado com o Andy, diante da viatura. Os adolescentes se encararam, o sorriso dela aumentando na mesma medida que a cara dele fechava.

— Encontramos esse rapazinho aqui procurando pelo Jimmy bem no quintal da Winnicott, acredita? — Batidinhas nas costas dadas pela policial. — Conhece ele, Mandy? Se não, teremos que ver com o Jimmy.

Andy começava a criar uma desculpa, quando foi interrompido pela garota.

— Pior que sim, Emma. O mané é da minha turma. Sem falar que meu irmão prometeu doar umas coisas pra ele, já que o coitado é sem teto e tá passando fome.

Andy a fulminou com o olhar, enquanto ela pareceu se divertir muito com tudo aquilo. Ao que os policias não se preocuparam em disfarçar a risada.

— Então tá entregue, só cuidado pra não se perder de novo, viu, rapazinho?

Andy ignorou o comentário e entrou, batendo a porta com força. Parecia que sua sorte não poderia piorar. Obviamente, ele estava enganado.

***

Noite atual.

Em troca da estadia e treinamento, Andy ajudava na limpeza do bar. E era o que fazia naquele momento, passando pano nas mesas e recolhendo os restos de comida. Jimmy resmungou ao ouvir o noticiário esportivo, até outra coisa lhes chamar a atenção. O garoto não pôde deixar de notar como a expressão do balconista mudou drasticamente quando o grupo entrou no pub.

Eram dois homens e uma mulher: o primeiro, um sujeito alto e musculoso, de cabelos longos, encaracolados e escuros, com um camisão aberto e de mangas dobradas, sobre outra blusa. No braço esquerdo, exibia uma grande tatuagem, com símbolos de jogos de azar, dados e cartas. Agarrada a ele, uma jovem de pele negra, longos cabelos cacheados e belas curvas em uma calça de couro, botas e blusa com decote. Os dois rindo bastante.

O terceiro usava um casaco largo, era magro e de cabeça raspada. Sua face exibia uma coleção de piercings entre nariz, língua, boca, orelha e sobrancelhas, tudo combinado a uma cara de poucos amigos.

Andy percebeu que as duas garçonetes arrumaram algo para fazer na cozinha assim que eles chegaram, e foi o próprio Jimmy quem se apresentou diante deles. Outros dois clientes deixaram as cervejas pela metade com o pagamento na mesa, saindo como quem não queria nada.

Os três conversaram, com o dono anotando o pedido, fingindo bom humor para o maior deles. O careca examinava tudo em volta, detendo o olhar em Andy, que para evitar confusão se concentrou no serviço. Afinal, já havia tido problemas demais por uma semana.

O casal se beijou de forma intensa, ela no colo dele, trocando carícias de modo lascivo. O outro começou a resmungar algo enquanto Jimmy voltava com as bebidas.

— Porra, meu chapa, tem algum motivo pra aquelas quengas que trabalham pra você ficarem se escondendo na cozinha? E a Mandy, tua irmãzinha, tá escondendo ela da gente? — questionou o cabeludo. — Que eu saiba, meus manos e eu sempre fomos clientes vips desse teu pub cheirando a bosta!

— Então já esqueceu da merda que vocês fizeram aqui da última vez, hein, Malcon? Do soco que o Jeff ai deu em uma das meninas? Elas ficaram assustadas, sem falar nos problemas de vocês com a polícia.

— Um bando de putinhas assustadas — zombou a garota. — Mas eu tô limpinha, Jimmy. Inclusive, meu trabalho é fazer esses bad–boys se comportarem.

E o tal Malcon caiu na gargalhada, dizendo:

— Que se fodam tuas vadias, esquece nossa irmãzinha também. Eu quero saber é da comida mesmo. Me traz uma porção ai no capricho, e a gente esquece isso, parceiro.

Percebendo o sinal do barman o chamando disfarçadamente, o garoto foi até o balcão.

— Acho melhor você meter o pé daqui, garoto. — sussurrou Jimmy, claramente tenso.

Andy apenas suspirou, e quando já estava a poucos passos da saída, sentiu uma mão segurar seu braço. Ele se virou e deu de cara com o tal Malcon.

— Você tá maluco? — perguntou o garoto, puxando o braço e percebendo que quem o segurava era mais forte que ele.

— Não, mas pelo visto vocês estãoOu acharam mesmo que eu não ia perceber quem é você, garoto? — Malcon torceu o braço do Andy, sussurrando. — Que não ia sentir seu cheiro de cachorro encardido?

Andy enfim conseguiu desprender o braço, encarando o sujeito:

— Não sei do que você tá falando, cara, mas uma coisa que eu não tolero é gente me segurando ou dando ordem!

Jimmy se aproximou da mesa, tentando acalmar o grupo:

— O que houve ai, Malcon? O garoto não quer confusão, ninguém aqui quer. Deixe o moleque ir embora e eu deixo vocês levarem o dobro de bebidas, o que acha?

— Esquece a história de bebida extra, parceiro — Malcon disse, se levantando. Os outros repetindo o gesto. — Aliás, esquece a comida também. Jeff, carrega ai a bebida que a gente tem direito e vamos nessa.

Nesse instante, o garoto sentiu a jovem o abraçando por traz, um cano de arma pressionando sua costela.

— Desculpa, gatinho, mas quando o macho alfa rosna, os lobinhos obedecem — Ela sussurrou no ouvido dele, com uma pistola dando ênfase a frase.

Andy não se abalou, permanecendo com ares de desafio para o grupo, que apenas riu dele. Quando saíram do pub, sob o olhar impotente do dono, o garoto viu Malcon se dirigindo até uma caminhonete:

— Seguinte, parceirinho. Você vem com a gente quietinho, ou vamos ter que fazer do jeito difícil? 

Andy sorriu para ele, e então respondeu:

— Vão todos pra o inferno.

Malcon fez um gesto para alguém atrás do garoto, e o jovem sentiu uma forte dor na nuca. E então ficou tudo escuro, quieto e distante.


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Notas finais do capítulo

E ai gente, gostaram do capítulo? Espero que não estejam ficando confusos com essa troca de foco entre um personagem e outro a cada capítulo, pois é necessária para o andamento da trama. No próximo o foco será todo no nosso casal preferido: Adam Turner e Claire Winnicott.

*Não deixe de comentar sobre o que curtiu ou não no capítulo. Também favoritar e marcar nos acompanhamentos.Abraço.



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