Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 4
O Homem da Máscara


Notas iniciais do capítulo

Conheçam Paul Davis, o 3º e último protagonista dessa saga. E claro, aproveitem para reverem Adam e Claire, nosso amado casal.



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Em um quarto escuro e selado contra luz, ele dormiu. De porte robusto, cavanhaque, tatuagens tribais e vestindo apenas uma calça jeans. Ao alcance do corpo, uma pistola de grosso calibre; sua companheira em momentos de necessidade. Abriu os olhos assustado, ao som da porta sendo arrombada, e estendeu a mão para a arma por puro reflexo. Com sua existência condenada à escuridão, o dia era período de hibernação forçada, de esconder-se do sol em seu lar protegido por soldados humanos. "O que poderia vir atrás de mim pela manhã?", se perguntou.

Mal teve tempo de levantar, algo avançou pela porta recém-aberta. O quarto estava escuro, mas seus olhos de bicho da noite discerniram os objetos sendo arremessados. Latas de coquetel molotov. Fogo!

Ele se jogou contra a parede para escapar das chamas. Gritou por seus homens, sem resposta, provavelmente mortos pelo esperto caçador. Fogo era o fim de qualquer vampiro, tanto quanto o sol, e ele se forçou a manter o controle em meio ao calor e proximidade das chamas, em meio aquela situação desesperadora.

Permanecer acuado seria apenas adiar seu fim, de modo que o vampiro usou o poder do sangue para saltar sobre as chamas o mais rápido que pôde, olhos acessos e presas de fora, totalmente entregue a fera! O calor infernal pareceu enlouquecê-lo, e o toque das chamas sobre sua pele, o fizeram urrar enquanto saltava. Mas nada disso adiantou, pois assim que chegou a porta, o invasor abriu fogo. O corpo do morto-vivo foi transpassado por uma rajada de balas. Balas de prata.

O vampiro caiu, sem forças. Fogo e prata, as armas dos caçadores humanos, as armas dos matadores de vampiros. Balas comuns causavam dor, mas logo o corpo vampírico era capaz de regenerar seus efeitos. Balas de prata não. Por algum motivo qualquer, a prata castigava a carne dos mortos, queimando e dificultando a regeneração, os deixando vulneráveis. Que dirá uma rajada delas!

O invasor trajava roupas pretas que tapavam todo o corpo, mesmo seu rosto. Era rápido e habilidoso, e encarou o vampiro, de joelhos e abalado.

E sob a luz das chamas, o morto-vivo pôde contemplar a máscara sob o capuz: óculos de visão especial sobre um tecido rígido. Escritas nela, palavras em uma língua que ele não compreendeu.

— Quem diabos é você? — perguntou um vampiro experiente, empurrado de costas ao chão.

 Eu sou o Golem — respondeu o invasor, seu pé descendo pesado sobre o monstro. — Sou sua morte.

O golpe atingiu em cheio o rosto dele, seguido de outros, até tudo se tornar escuridão.

***

Curso de Psicologia, Universidade de Bleak Hill.

Às 8h30 da manhã, os alunos se dividiam entre aqueles que prestavam atenção na aula de Antropologia, os que conversavam discretamente e os que dormiam.

— No mundo de hoje, é fácil se manter cético, racional e cientificista quando nos confrontamos com as lendas e mitos dos nossos antepassados. Resumir tudo a simbologia, ignorância ou crendice — disse o magistrado ao lado do projetor. Terno marrom, cabelos e olhos de um castanho escuro, barba por fazer, para além de um meio sorriso no rosto. — Mas alguns de nós, tolos ou sábios, acreditam que alguma verdade se esconde por trás daquelas histórias que gelavam espinhas.

— Diz aí, o que acha do professor? — perguntou a garota de olhos amendoados e voz melodiosa, para a amiga da carteira ao lado.

— Ele não é lá muito ortodoxo, mas carisma tem de sobra. Gosto da aula dele — respondeu uma Claire sonolenta.

— Esses indivíduos percebem que nem tudo no mundo pode ser resumido a números e reações fisiológicas. Que as trevas da noite ainda escondem mistérios e segredos disponíveis apenas para quem tenha estômago de ir atrás deles — continuou o professor, fitando as duas. — Enxergam os monstros, fantasmas e demônios que caminham entre nós.

Evelyn mordeu a caneta, fitando o professor.

— Tá de brincadeira, né? — questionou ela, olhando para a amiga como se visse uma Alienígena. — Um homem gostoso desses e você vem me falar de aula? Tava pensando em pedir pra ele umas aulas particulares, isso sim!

— Ei, você não tem vergonha não? O cara é casado, vejo a aliança daqui.

— Mas aposto que ele tá com o casamento em crise, tadinho. Ou talvez use só pra atiçar o tipo de mulher que gosta de homem casado — brincou ela, olhando maliciosamente para o sujeito. — Um cara assim, forte e cheio de energia, com certeza tá frustrado ao se ver preso a uma mulherzinha ruim de cama. Acho que ele tá precisando conhecer uma mulher de verdade, cheia de saúde e criatividade, até pra render mais nas aulas.

— Credo! E imagino que essa seria você, não é? — Claire perguntou, encarando a amiga despudorada.

— Eu posso fazer esse sacrifício. — E as duas começaram a rir.

— O que é tão divertido, meninas: vídeos de gatos? — perguntou ele, parado em frente às duas.

Risos e piadas por parte do resto da turma, silêncio por parte delas. Quando Claire começou a esboçar uma resposta, foi cortada pela voz da amiga:

— Estávamos rindo da sorte da Claire em fisgar o dono da casa mal assombrada, e ainda por cima, disposto a dar um presentinho desses pra ela. — A garota puxou de dentro da blusa da amiga o colar dourado, deixando Claire Winnicott em estado de choque. — Não é lindo?

Ele pareceu se interessar pela peça, ignorando a cara de vergonha da dona e as gozações dos colegas de classe.

— Bonita sim. Mas isso não é desculpa para interromperem seu mestre durante uma aula tão inspirada quanto essa. Agora, como eu dizia... — prosseguiu ele, deixando para trás uma loira dando cadernadas na amiga.

— Sua doida, eu pedi pra não falar pra ninguém sobre o colar que ele me deu, agora vão ficar fofocando... — resmungou, se escondendo atrás do caderno.

— Desculpa, miga. Fiquei nervosa com o gostosão tão perto e foi só no que pensei pra falar — respondeu ela, sorriso debochado.

Fim da aula, as duas deixavam a sala enquanto o professor desligava o projetor, quando ouviram a voz dele:

— Winnicott, pode vir aqui um momento?

As duas se olharam e Evelyn sussurrou para a amiga antes de se afastar:

— Por que o safado não me chama? Você já tem um tubarão, vê se deixa o peixe-espada pra mim, hein!

Claire seguiu até o professor, ignorando a garota.

— É verdade que é próxima do dono do casarão da colina? — questionou ele, enquanto os últimos alunos saiam da sala.

— Sim, nos conhecemos recentemente. Somos amigos — disse ela, torcendo para que o sorriso bobo que teimou em se revelar, não revelasse demais ao professor.

— Então quero pedir um grande favor, Winnicott. Consegue um encontro meu com o senhor Turner? O homem é dono de uma propriedade cuja história remete a fundação dessa cidade. Como profissional, seria maravilhoso conversar pessoalmente sobre isso.

— E quantos pontos isso vale, professor Davis?

— Não que você vá precisar pra passar, mas vamos pôr dessa forma: me dê tempo suficiente com ele para perguntar tudo que quero, e o dez é garantido.

Ela sorriu, satisfeita.

— Eu posso fazer isso sim, mando um e-mail avisando se ele topar. Mas troco meu dez por um bônus na nota da Evelyn. Pelo jeito que o barco segue, a irresponsável vai acabar reprovando.

— Feito.

E Claire se afastou, pensando que aquela era uma boa desculpa para ligar para aquele homem enigmático e interessante.

Do lado de fora, Evelyn aguardava, ansiosa.

— E então, o que ele queria?

— Ele queria saber se você já fez meu trabalho de Psicodiagnóstico II.

— Isso é muito injusto, Claire. Muito injusto mesmo! — resmungou ela, esbarrando na amiga. — Você sabe que no fim isso é só desculpinha pra me fazer de secretária.

Claire a encarou, séria.

— Se eu fosse você ficava bem quietinha, se não quiser que seus três meses fazendo meus trabalhos virem seis — ameaçou, com um sorriso sádico na face. — Vamos ver se assim a senhorita aprende a nunca mais esfregar essa bunda no pretendente da amiguinha.

— Ah, Claire! Você sabe que eu tava meio alta aquela noite. Além disso, era meu aniversário, e você sabe o que dizem "o que se faz no niver, fica no niver".

— Quer mesmo fazer meus trabalhos pelo período inteiro, não é? — pergunta puramente retórica.

— Não tá mais aqui quem falou. E já, já, eu entrego, lady Winnicott.

***

Em um cômodo amplo e bem iluminado, com estantes abarrotadas de livros, Paul Davis analisava as informações de que dispunha. Arquivos de computador, pilhas de livros e o curioso mural com fotos e matérias de jornal. Entre elas, uma coisa em comum: Adam Turner .

O que qualquer pessoa mais informada na cidade sabia, era o seguinte: O casarão era de fins do século 17, pertencendo a um estrangeiro chamado Willian Connor. Ele teria adquirido a propriedade de uma família nobre decadente.

Conta-se que após dois ou três anos de convivência com os moradores da região, o povo local se organizou em um ataque a mansão, motivado por acusações de seu proprietário ser um "demônio", "bruxo" ou "vampiro" (nesse ponto haviam divergências). Esse ataque causou a morte dos poucos moradores da propriedade, e também de mais de uma centena de homens que marcharam contra eles. O mais surpreendente, foi que o misterioso dono sobreviveu a tudo aquilo, e acabou sendo deixado em paz.

Aquela noite entrou para a história da região de tal forma, que a pequena cidade foi rebatizada de "Colina Sombria", para nunca se esquecerem de temer ao casarão amaldiçoado. Tudo isso já fazia parte do folclore local.

Claro que as fontes históricas que o professor consultou revelaram detalhes mais interessantes. Em primeiro lugar, que a mansão foi comprada dos Freeman, a família mais tradicional da região, mas que à época, estava falida. Eles usaram a pequena fortuna paga por Connor para se tornarem donos da maior parte dos negócios locais. Houveram inclusive especulações de que os próprios Freemans instigaram o ataque, com a ambição de retomar a propriedade já reformada, com toda a riqueza nela guardada.

Uma fonte mais obscura afirmava que Connor, embora proprietário da mansão, na verdade era representante de um casal — os verdadeiros donos. E que foram eles o alvo da acusação e ataque. Que esse misterioso casal, junto a um punhado de empregados, foram mortos, mas não sem antes vingarem-se dos invasores, com seus "poderes demoníacos".

E entre esses relatos, um nome em especial lhe chamou atenção:

— Adam Turner... — sorriu Davis, analisando a página roubada do acervo local.

Após o ataque, Connor parece ter reforçado a segurança e se isolado, contribuindo financeiramente para comprar a paz com as autoridades locais. O casarão permaneceu praticamente fechado pelos séculos seguintes, com a escritura sendo passada adiante para indivíduos sem ligação de sangue com Connor ou entre si. Figuras reclusas da sociedade.

O que mais chamou a atenção foi o fato da enorme propriedade jamais ter sido utilizada como fonte de lucro. Foi reformada duas vezes, entre os séculos 19 e 20, mas jamais utilizada para turismo ou vendida para aristocratas interessados. Já sob posse da latina Teresa Mendes, foi recusada a parceria com o governo por diversas vezes, mesmo quando o mesmo arcaria com os custos de uma reforma, de olho no potencial do casarão erguido no topo da colina como único ponto turístico da pequena cidade.

Somente nos últimos anos Mendes passou a sediar festas de casamento e outras festividades. Algo insignificante, dado o potencial do lugar. Resumindo: após um misterioso Adam Turner morrer, a mansão ficou fechada por séculos. E só agora, quando um novo dono também chamado Adam Turner apareceu, ela reabriu. Para o professor, coincidências demais.

Circulando com a caneta a face de Adam, resultado de uma foto amadora em uma matéria de jornal, Davis falou para si mesmo:

— Adam. Você me apareceu do nada, na mesma noite em que dois rapazes foram vistos pela última vez justamente na sua casa. Nada sobre você na internet, nenhum registro na polícia, e o mesmo nome de um homem dado como morto há três séculos.

O professor sorriu, examinando o arsenal de armas e munição de prata que utilizava contra seus alvos. Sorriu ainda mais, ao reler o e-mail que sua aluna enviou, confirmando seu encontro com o misterioso homem para a noite seguinte.

— Hora de descobrir quem é você realmente.

***

As 20h00, o carro parou em frente à casa do professor, uma das mais belas residências da cidade. Dele saíram Claire e Adam. Da janela de cima Paul analisava o rapaz: seu rosto sugeria algo entre vinte e vinte e cinco anos, com longos cabelos negros presos, olhos de mesma cor e pele branca. Vestia um terno de grife e andava com elegância. Sua acompanhante tinha roupas menos formais, com uma saia, blusa de manga comprida e o colar que levou a tudo aquilo.

Eles pararam diante do portão da casa, enquanto o cachorro de Paul latia sem parar, correndo pelo vasto quintal. Por um momento os olhos dos dois homens se encontraram, ambos se encarando por um tempo que pareceu infinito. Adam desviando apenas quando Claire fez um comentário que exigiu sua atenção.

— Quieto, vamos, quieto, Cérberus! — ordenou o professor para seu agitado cão, que abanou o rabo e diminuiu o barulho.

E abrindo o portão de ferro, fez sinal para que entrassem.

— Me perdoem, ele não está muito acostumado a visitas. Assim como eu.

— Professor, esse é meu amigo, Adam Turner. Adam, esse é meu professor, Paul Davis — disse Claire, cumprindo as formalidades.

— É um prazer conhecer o dono do nome mais falado nessa nossa pequena cidade — disse Davis, estendendo a mão para o homem. — Bom ver que não é uma lenda urbana.

— Sou bem real, senhor Davis, e o prazer é todo meu — respondeu Adam, apertando com ambas as mãos a dele.

O imóvel contava com uma garagem, ao contrário da maioria das outras casas, cujos carros ficavam estacionados em frente. Também tinha um cômodo separado, construído do lado de trás da propriedade. E foi para lá que ele os guiou.

O lado de dentro era aconchegante, com aquecimento, carpete, uma mesa e outras comodidades, como computador, tv e objetos de diferentes culturas.

— Sentem-se, por favor. E perdoem-me se não os convido para entrar na minha casa, mas está tudo em obras lá dentro.

— Compreendo, mestre Davis, minha casa está em obras, igualmente — Adam devolveu.

Turner pareceu examinar o lugar, se detendo no reflexo de sua imagem no espelho da parede. Paul gostaria de estar sozinho com o misterioso homem, mas não deixaria de aceitar o encontro apenas pela Winnicott estar inclusa no pacote. Segundo ela, um pedido do próprio homem. E foi ele quem iniciou a conversa:

— Claire me disse que o senhor é um mestre na ciência da Antropologia. Seria focado em alguma cultura específica?

— Meu mestrado foi justamente sobre a cultura de Bleak Hill — suas lendas e mitos. Não sei se tem conhecimento sobre isso, mas essa cidadezinha é cheia de histórias, com todo um folclore bastante rico — disse Paul, enquanto preparava chá para os três.

— Lendas e superstições, então — comentou Adam, olhando para uma Claire que sorriu ao ouvir aquilo, já conhecendo seu professor a mais tempo e prevendo a resposta.

— Talvez sim, talvez não... Eu prefiro manter a mente aberta. Claro, a maior parte não passa de ignorância e tolice. Mas não seria a maior parte de tudo na vida o mesmo?

— O senhor é judeu, professor? — perguntou Claire, olhando para o quadro de uma bandeira de Israel, ao lado de uma Estrela de Davi.

— Sim, sim. É que não uso quipá, nem costumo falar sobre isso. O que é engraçado, já que falar é minha profissão.

— Eu admiro muito os judeus, um povo que sofreu tanto, e mesmo assim conquistou tantas coisas — confessou a estudante, após agradecer ao anfitrião pela xícara. — A Psicologia deve muito a eles, Adam. Afinal, Freud, pai da Psicanálise, era judeu.

Adam concordou, provando de sua bebida.

— Esse chá leva alho? — questionou o jovem.

— Não gostam? Esqueci de avisar, uma antiga receita de família — mentiu o professor, notando que Adam continuou bebendo.

Os dois se observaram por algum tempo, como dois predadores estudando um ao outro. Adam com seus olhos que pareciam subjugar a vontade daqueles que os confrontavam. Paul com seu sorriso sarcástico.

— O que quer de mim, mestre Davis? — inquiriu por fim o provável vampiro.

— Senhor Turner, a casa em que tem vivido é um elemento histórico importante para nossa cidade. Sabendo que as reformas que tem feito buscam preservar o design original... está nos seus planos abri-la para o turismo?

Adam sorriu, depositando a xícara de chá de volta ao pires antes de responder:

— A casa é minha, não desejo torná-la em atração circense.

Claire riu, brincando com o cão que se deitou diante de seus pés.

— Soube que o governo está muito interessado... — insistiu.

— Tornar aquela casa uma fonte de lucro parece ser um sonho antigo de seus políticos. Lamento ser eu a enterrá-lo.

— Perdoe-me se pareço indelicado, é que não achei registro sobre sua família ou mesmo o senhor. Parece um fantasma saído do nada. Acho intrigante que possa ter herdado uma propriedade como essa de uma mulher que sequer é sua parente, sendo que ela mesmo a herdou de alguém que tão pouco era parente dela. Aliás, seus pais seriam... ?

— Nossa, o senhor parece um pouco empolgado com as perguntas, professor — disse a loira —, assim vai assustar nosso forasteiro.

— Infelizmente meus pais se foram há muitos anos — Turner respondeu, sob o olhar de Paul. — Minha mãe quando eu ainda era um garoto, meu pai... quando eu já era um homem feito. Não tenho irmãos, sou o último da minha linhagem.

Claire tocou gentilmente o braço dele após ouvir aquelas palavras, resultando em uma troca de sorrisos entre os dois, após a qual o homem prosseguiu:

— Mendes cuidou bem da casa, mas reconheceu que o direito sobre ela é na verdade meu. Ela trabalha para mim agora, uma mulher eficiente e leal. Nunca me preocupei em ter um diploma, mas gosto de ler sobre tudo, em especial filosofia. Viajei pela Europa Oriental e lugares distantes, e tenho dinheiro investido em todo tipo de negócios, principalmente antiguidades.

— Ainda não me disse os nomes deles, senhor Turner. Assim como o nome de nenhuma empresa, país ou instituição, para ser exato.

Adam desviou o olhar e terminou de beber seu chá de alho.

—... xeque — ela deixou escapar.

— Creio que já falei o suficiente sobre mim, mestre Davis. E sinceramente, não gosto de falar do passado. Há muitas coisas nele que lá devem permanecer.

— Pena, recordar é viver — respondeu Paul, erguendo-se da mesa. — Espero que seja maior de idade Claire, pois vamos beber para alegrar a noite.

— Vinte e um, professor.

Ele retornou de sua adega com uma garrafa de vinho já antiga, e taças para os três.

— Não é sempre que tenho a oportunidade de dividir uma boa bebida — disse ele, servindo o líquido. — Assim como nosso caro Turner, o vinho é cheio de mistérios, tradições e histórias. Festejado por Dionísio, sacralizado pelos cristãos. E agora, bebido por nós.

— Já que insiste em ouvir histórias do passado, mestre Davis, fique com a seguinte. De onde vim, era costume dizer que não foi sem motivo que o primeiro milagre do Cristo, Filho de Deus, foi transformar água em vinho — disse Adam, e ergueu a taça acima da cabeça. — A grande mensagem que ele queria passar era essa: a vida sem vinho é um inferno.

Eles brindaram.

— O verdadeiro néctar dos deuses. Não consigo imaginar no mundo bebida melhor — alfinetou o professor.

— Sabe, eu amo vinhos, mesmo não entendendo muito sobre eles. No máximo que o branco é bom pra peixes e dias mais quentes, e que o tinto é o meu preferido — disse a jovem — Meu pai era diferente, um especialista que conseguia perceber cada variaçãozinha no cheiro e sabor. Mas e vocês, são apreciadores ou especialistas?

— Eu conheço um pouco, sim, mas somente do tipo que gosto. Para mim, quando você encontra aquilo que pode satisfazê-lo por completo, todo resto se torna irrelevante.

Ela desviou o olhar, disfarçando um sorriso e bebendo mais daquele tinto.

— Eu... espero que possamos apreciar muitas outras coisas juntos — brindou ela, com o homem ao seu lado, depois erguendo a taça para Davis.

Paul se divertiu com aquele clima romântico entre os dois. Um lobo e uma ovelha... que grande futuro teria aquilo, pensou.

A conversa seguiu sobre a cidade e sua fundação, assuntos sobre os quais o milionário demonstrou conhecimentos muito acima do esperado de alguém sem formação em história. Adam falava de coisas do passado com muita propriedade, não como um estudioso, mas como alguém que viveu naquele tempo. Por outro lado, não demonstrava o mínimo conhecimento sobre temas atuais, ignorando piadas e referências óbvias, e fugindo desses temas de todas as formas possíveis.

As horas passaram rapidamente durante aquele jogo de palavras. Taças foram entornadas, sorrisos trocados... até que o celular da garota tocou:

— Desculpe, gente, mas tenho de ir agora. Sei que devia elaborar uma desculpa mais elegante, mas a verdade é que minha amiga bebeu demais e precisa de uma mãozinha pra não morrer afogada no próprio vômito.

— Eu chutaria: Evelyn Foster! — disse o magistrado, ao que Adam sorriu em concordância.

— E faria um belo gol — respondeu ela, erguendo-se. — Obrigada por tudo, professor.

— Se quer me agradecer, convença sua amiga a usar roupa de baixo da próxima vez que se sentar na primeira fila, principalmente se estiver de mini-saia — E assim Paul deixou Claire com a face vermelha como um tomate.

— Fico grato pela hospitalidade, mestre Davis. Boa conversa e boa bebida, são parte do que faz valer a pena todo resto. — E como se antevisse o pedido, acrescentou. — E já que nos recebeu em sua casa, os convido para em breve conhecerem a minha... caso não tenham medo do que se fala sobre ela.

Claire pareceu surpresa ao ouvir o convite, sorrindo para os dois.

— Meu lado profissional agradece por ser convidado, e não ter que me auto-convidar — disse Paul, sorridente. — Como posso entrar em contato, senhor Turner?

— Se precisar falar comigo, pode usar seu aparelho para falar com o meu. — Pausa para colocar a mão no bolso e retirar de lá um celular.

Paul se esforçou para segurar o riso.

—... certo, mas qual seu número?

— "Número"? — perguntou Adam, com ar inocente.

— Do smartphone.

—... claro, do aparelho. — repetiu ele, parecendo sem graça. — É um celular novo, me deixe verificar aqui.

Claire não conseguia parar de rir ao ver o sujeito tentando usar o touch screm sem sucesso. Paul observava a tudo com um sorriso cada vez maior, mas não pelo mesmo motivo que ela. Por fim, a própria Claire disse o número dele.

— Liga não professor, o Adam adora fazer essas piadas com a gente, já estou acostumada — disse ela, sem qualquer noção sobre as suspeitas do professor se confirmando diante daquilo.

— Até breve, Winnicott, senhor Turner — Paul respondeu, gravando o número do celular e observando ao casal partindo.

O professor continuou sentado lá dentro, apenas ele e o cão, juntando mentalmente as peças que coletou naquela noite. Adam alegava ter herdado o casarão e riqueza de sua antiga linhagem, ainda que se esquivasse de dar qualquer informação sobre ela. Falava com muita propriedade sobre fatos históricos que remetiam há trezentos anos atrás ou mais, mas escorregava sobre tudo que vinha após isso. Sua fala era muito formal e até mesmo antiquada, com um sutil sotaque que apenas estudiosos como Paul desconfiariam ser pertencente há séculos atrás. E o mais importante: possuía o mesmo nome do fundador original da propriedade em que hoje vivia.

Não pareceu ter sido afetado pelo alho no chá e sua imagem refletiu normalmente nos espelhos (o que podia significar simplesmente que a coisa do alho e falta de reflexo fossem só lendas, como ele já imaginava). Quanto a prata, que por experiência o professor sabia afetar vampiros, o sujeito deu um jeito de apertar a mão desviando do anel de prata, o que era um forte indício de sua real natureza. A não permissão para entrar na casa não podia ser testada, mas ele achou melhor prevenir.

— Ele não esconde esses traços extravagantes dos outros, seja por escolha ou simples incapacidade. Talvez um desejo de alimentar a fantasia... ou revelar a verdade — Paul falou consigo mesmo, bebendo mais um gole do vinho. — Pode ser um vampiro muito antigo.

O professor sorriu por um momento, lembrando-se da forma como Adam e Claire se olhavam.

— No fim somos todos movidos por desejos irracionais, senhor Turner: quais seriam os seus? — Ele partiu a taça contra a mesa, transformando o objeto em arma. — Fique em guarda, vampiro! Cedo ou tarde ficaremos frente a frente, então saberemos qual o pior dos monstros: você... ou o Golem.


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Notas finais do capítulo

Vou pedir que deixe um comentário dizendo o que gostou ou não nesse capítulo, ou mesmo na história até aqui. Não precisa ser nada muito grande ou elaborado, um: "Estou gostando, continua" já me deixaria feliz ^^. Também não esqueça de favoritar e marcar nos acompanhamentos, viu?

No próximo capítulo, hora de revermos Andy, e conhecermos mais um pouco do que se esconde nessa cidade.



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