Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 16
Doxa


Notas iniciais do capítulo

Tenham uma boa leitura!



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I

— O céu é… cinza, cinza, cinza, cinza…

— A terra é… cinza, cinza, cinza… marrom… cinza, cinza…

— As árvores são… cinza, cinza….

 II

Aquela luz arroxeada cobria através das finas cortinas toda a extensão da sala de aula em que Bernardo Manibus lecionava. Em verdade, fazia-lo com prudência e, talvez, algo além disso: com seu corpo e voz, atraía o olhar dos alunos e conduzia suas mentes a um novo patamar. Toda vez que pausava para bebericar a água de seu copo, os alunos despertavam de um transe, e se entreolhavam, aos risos, que tinham a tonalidade de um elogio bem direcionado ao professor.

— Retomando — disse, antes de pigarrear — uma das alegorias que Platão descrevera em seu livro… é o Mito da Caverna. Já devem ter ouvido falar sobre. A caverna, metaforicamente falando, é um lugar de…?

— Isolamento — arriscou um dos alunos.

— De fato… mas isolar do quê? Qual seria o propósito de se viver em uma caverna, se é que existe algum?

— Acho que… por medo? — Arrisca um pálido aluno. — A caverna só deve ser uma opção para quem quiser fugir de algo, quem sabe…

— Sim, medo é uma palavra-chave, mas talvez não nesse momento — e os alunos deliravam com a dúvida. Alguns gritavam ironicamente, expressando a angústia que aquele processo de interpretação causava.

— Ah, vamos! — Retomava o professor — vocês já foram melhores. Vocês bem sabem, não gosto de dar essa maldita aula sozinho… preciso da colaboração de vocês… senão, eu vou embora, conhecer a Verdade…

Ao proferir a palavra, lâmpadas se acenderam acima da cabeça dos alunos, que, tumultuosos, começaram a bravejar suas hipóteses, criando uma verdadeira mixórdia de frases desconexas mas que demonstravam, certamente, uma avidez pela Verdade. Eram poucos os que não diziam nada… um deles se sentava na última carteira, fitava a natureza iluminada pelo lilás, e parecia estar ignorando a aula em si. E foi nele que Manibus concentrou sua atenção.

— E então, Vince? — Foi dizer isso, que todas as cabeças se voltaram ao garoto — tem algo a dizer?

III

— Cinza… cinza… cinza… branco… cinza… preto… cinza…

— Cale-se.

— Cinza… cinza… branco… cinza… cinza…

— Já disse pra calar a boca, desgraça!

— Cinza…

 IV 

Então, os cachos de Vicente Filho tremeram junto ao seu corpo, os olhos arregalados… parecia de fato ter acordado de um transe mais tardiamente que os demais. Todos o fitavam, juízes do que ele ainda não dissera.

— Você ao menos estava prestando atenção…?

— Sim… claro… eu não preciso… tec… tecnicamente… estar te olhando para… prestar atenção.

— Ele sempre demora tanto pra falar! Logo a aula acaba e ele não disse nada! — Troveja uma voz do centro da sala, uma garota de olhos acinzentados.

— Seja paciente com ele, Luana — sorriu ao dizer, muito embora a garota tenha desaprovado o conselho — Vince pode ser prolixo… mas não é um sofista. Eu sei que o que ele tem a dizer pode ter muito conteúdo. Então, vamos ouvi-lo.

— Se é que ele realmente vai conseguir dizer algo — disse para si mesma.

Não se sabe se motivado pela provocação de Luana, ou se pela complacência do professor, o olhar de Vicente se torna mais focado, mais sério, e consegue disfarçar melhor a sua ansiedade perante os outros.

— Eu vou dizer — diz depois de uma pequena pausa — só… repita sua última pergunta, professor?

— Hunf. Vou acreditar que não é porque você não estava prestando atenção. Eu perguntei se existe algum propósito de se morar em uma caverna, e se sim, qual seria?

É quando ele sorri, a princípio de forma desajeitada e genuína, e depois, com os devidos consertos, dosa suas reações para que fiquem no mínimo “apresentáveis” ao pessoal dali. Esses trejeitos faziam com que Vince fosse tido como uma pessoa realmente excêntrica, mas poucos duvidavam de seu conhecimento, a se conferir pela sua resposta, que era inédita dentre os alunos daquela sala:

— A resposta é não. Não há motivo.

Novamente, alvoroço na aula. Ele deve ter chutado uma resposta… isso nem faz sentido!... todo mundo respondeu que sim, é tipo… unânime!... ele nem tava prestando atenção mesmo! E demais comentários eram sufocados naquela torrente de muitos outros, até que essa correnteza é interrompida por aquela voz argentina que os alunos já ouviram:

— Deixa ele terminar de falar, oras!

Era a voz de Luana. E, ao invés do silêncio, risos maliciosos responderam-na. Nem mesmo Manibus conseguiu conter-se, admirado que a própria acusadora agora estava defendendo sua presa. De qualquer forma, não tardou que Manibus pedisse silêncio e Vince finalmente respondesse a pergunta.

— Ora… minha resposta não é inválida, não. Você, afinal, nos deixou duas opções, não é mesmo…? Eu escolhi uma delas, então!

Ele é prolixo, isso é fato… mas eu tenho quase certeza que, conhecendo-o como o conheço, toda essa demora para chegar no argumento deve ter uma justificativa. Não é só a dificuldade de comunicação, refletia Manibus enquanto Vince falava. A motivação para esses pensamentos era o Diário que Vince sempre deixava aberto em sua mesa, mas nele nada escrevia. Coisas estranhas haviam ali.

— ...mas onde eu quero chegar é… nós, seres civilizados, não temos qualquer razão para vivermos em uma caverna. O que Luana falou, pode ter sido verdade em tempos muito anteriores… mas hoje, nem mesmo o medo nos motivaria a tal atitude.

Isso, é esse o princípio. Mas eu quero mais de você, Vince. — E então? Como que você justifica essa ideia?

— O que quase ninguém disse… é que não escolhemos estar na caverna. Nós nascemos nela — Vince movimentou a cabeça e desviou o olhar para a janela, para onde estava olhando a princípio — suponham que vocês… tenham nascido no fundo de uma caverna, assim como… não sei… morcegos? E, dessa forma… nunca conheceram a luz do sol. Nada além do escuro da caverna. Por acaso, cogitariam sair dela? Ir para o mundo lá fora… se não soubessem que existe um mundo lá fora?

— É… isso até que faz sentido…

— A pergunta não é essa que o professor fez. A pergunta é… que motivo levaria vocês, nascidos na caverna, a abandoná-la? Conseguem… ao menos… pensar em algum?

Um silêncio sepulcral baixou como uma névoa densa naquela sala. Todos começaram a se entreolhar, tentando buscar algo que quebrasse seu argumento, mas nada vinha, nada, nada vinha, era uma frustração geral! Principalmente em Luana. Algo em Vince a irritava exageradamente, e ela nem conseguia contestá-lo.

— Muito bem. É esse mesmo, Vince, o princípio da Caverna de Platão. Por outro lado, a caverna que ele descreve não é de todo escura…

— Há! Refutado!

Manibus pigarreia alto, sanando os risos que vieram junto ao comentário. — Na verdade, supomos que existia uma fogueira que projetava luz na parede no fundo dessa caverna. Claro, ali, existem pessoas… acorrentadas, de forma que só consigam ver as sombras na parede, e nada mais.

— Sombras?!

— Sim. Logo atrás das pessoas acorrentadas, existiriam pessoas que poderiam transitar livremente, e carregariam estátuas que projetariam sombras na parede que vocês visualizariam. Tudo que vocês conheceriam por mundo, seriam essas imagens, e nada mais.

— Mas… professor — pergunta aquele mesmo aluno pálido de antes, os cabelos ruivos bagunçados cheiravam a café  — quem seriam essas pessoas carregando estátuas?

— Muito bem, Jodi...

Antes que a pergunta pudesse ser respondida, alguém bate à porta da sala. Manibus sorri, prevendo que os alunos iriam bradar um enorme lamento por não terem resposta à pergunta de Jodi. Manibus se dirige até a porta, e ao abri-la, se depara com o próprio diretor.

— Preciso falar contigo em particular — diz, numa rispidez que os alunos bem conheciam.

— Eu estou em aula, senhor. Não posso deixá-los na mão agora…

— Você deve ter alguma atividade reservada para eles — aquilo não era uma pergunta — vamos, estarei esperando na sala dos professores.

Anistia dá as costas para Manibus, que cerra os punhos para ele, o que faz os alunos rirem singelamente. Todos ficam, posteriormente, entristecidos pela aula encerrada mais cedo que o esperado.

— O que foi? A aula não acabou, não. Não ouviram o que ele disse? Vou deixar uma atividade com vocês. Apenas terminando a explicação: supondo que vocês passaram a vida inteira nessa caverna… eu quero que vocês façam o papel de alguém que conseguiu escapar das correntes e, finalmente, sair da caverna. Quero que escrevam, e depois, leiam para mi o que vocês viriam fora daquela caverna.

O quê?!?! É só isso?!?! Você não nos deu nenhuma base! Isso tá muito abstrato, ainda! Por que temos que escrever numa aula de ética? Não faz sentido! Eu nem entendi nada! Essas eram as reclamações que Manibus ignorava com um sorriso no rosto, e levando o seu copo consigo, colocando, assim, seu sobretudo sobre seu corpo, prometendo voltar em pouco tempo.

V

A carruagem para. Rotpor aparenta mais irritadiço que o normal, mesmo por trás de sua máscara. Ao interromper o curso da viagem, desce, e se direciona até o compartimento em que Vince está sentado. Sem muito desafio, agarra o garoto pelo manto e o retira dali. Desequilibrado, nos dois sentidos da palavra, o garoto cai no chão, sem deixar de balbuciar as cores que via.

— Marrom… marrom… marrom… cinza… cinza… cinza…

— Cala a boca, seu merda! Ou eu vou…

— Cinza… cinza… cinza…

É quando a barriga de Vince é atingida fortemente pelos pés do cocheiro. Dois chutes foram necessários para arrancar gotas de sangue de dentro do rapaz.

 — Cinza… vermelho… vermelho… vermelho…

— Por que você não para?! Demente! Eu nem sei porque Bamphlech tem interesse em você… você nem consegue responder…

— Cinza… cinza… cinza…

— Se quer saber… eu vou resolver isso de uma vez.

 Rotpor retorna ao seu assento, e puxa de debaixo dele uma tábua solta. Um fundo falso. Não é à toa que o coche, em si, parecia caindo aos pedaços, e ainda assim, continuava firme em seu trajeto. Enfim, de dentro desse fundo falso o cocheiro retira um facão enferrujado.

 — Quanto tempo não toco você, Maria… não fosse essa máscara, eu beijaria sua linda lâmina. Vamos, você tem trabalho a fazer.

Ajoelhando-se ao lado do garoto, voltou seu corpo ao céu com suas mãos... aquele céu permanentemente nublado, com profundas cicatrizes nas nuvens criadas pelas naves dos var’croz. Vince via naquilo enormes feridas abertas… se chovesse, seria sangue? Vermelho, vermelho, vermelho… ou seria fogo, como enormes e algozes meteoros. Nem um, nem outro. O que o mago viu, enquanto balbuciava as cores, era uma enorme lâmina enferrujada.

A outra mão de Rotpor segurava o maxilar de sua vítima, fazendo-o abrir a boca, tarefa realizada de forma desajeitada, sem muito êxito.

— Vueumeio… vueumeio… ci’a… ci’a…

— Argh! Você não para, mesmo assim! Tanto faz… vou só meter esse facão na sua goela, seja o que Deus quiser…

— Cu’ao… co’o dia’o…

— O quê?! — Francamente curioso, o cocheiro solta a boca de Vince que, pela primeira vez desde que a viagem começou, caiu em insípido silêncio — que cores são essas, porra?!

— Cuidado… com o diário…

Rotpor balançou a cabeça, comovido. Endoidou oficialmente, pensou. Agora não adianta mais. O chefe vai entender se eu sacrificá-lo… quem quereria um refém louco?

— Me… mata… por… favor…

— Pode ter certeza — então, Rotpor desceu a lâmina com toda a força que tinha. E algo inesperado ocorreu, antes que pudesse atingi-lo.

Primeiro, o homem ouve o som de uma águia, depois, seus cavalos correm, em debandada… teriam arrastado o coche, ele não tivesse sido destruído por dentro. Lâminas de fogo rompem de lá de dentro, pouco a pouco formando um imponente pássaro de fogo, que pousa logo atrás de um Rotpor desolado e caído no chão. Vince se levanta, limpando a sujeira de seu manto, e se colocando frente ao seu próprio algoz, encarando-o com imponência. E então, suspira, aliviado.

— Essa foi por pouco ! Eu… eu achei que não saberia mais fazer isso. Achei que alguma runa ficaria um pouco defeituosa… afinal, estou um pouco enferrujado…

— D-do que está falando…?!

Foi dizer isso, o pássaro berrou novamente, e suas asas se abriram, emanando uma incômoda onda de calor contra o cocheiro.

— Peço que não me interrompa, por gentileza — pigarreou — estava dizendo que… estou um pouco enferrujado… graças ao seu chefe.

— Eu… eu não tenho chefe, não. Eu sou um… trabalhador independente…

— Com quem você aprendeu esse vocabulário? Mas é… faz sentido. Você é tão independente que estava prestes a matar sua mercadoria… não é mesmo?!

Rotpor engoliu seco. Mesmo por trás de sua máscara, seu medo era nítido. O que aquele jovem era…? Que tipo de poder era aquele…? Seu corpo se encolhe ao ver a mão de Vince levantada… mas ela ali ficou, parada em pleno ar. Percebe que o pássaro carrega uma coisa em seu bico. É o Diário.

— Não pensei que Anistia fosse me deixar trazer isso comigo — diz, ao recebê-lo em suas mãos — ele não é tão esperto assim, afinal de contas. Ou subestimou que eu pudesse usar magia, agora.

— Olha… seu Vicente… eu só iria te matar porque você pediu por isso… se você se lembra…

O olhar do jovem é dilacerante. Contudo, é desviado rapidamente, mudando sua postura.

— É… tem razão. Isso faz sentido. Estou sendo injusto contigo.

— Sim…?

— Enfim, a partir de agora você é… como é mesmo a palavra? Ah, sim, você é meu refém — assim, o enorme pássaro de fogo se prepara para agarrar-lhe as costas — eu estou recuperando minhas memórias pouco a pouco, sabe? Mas tem uma que já está bem fresca em minha mente.

O cocheiro engole seco novamente, enquanto é levado pelo pássaro. O calor agora é suportável, mas ainda fortíssimo. Era possível que o garoto poderia controlar até mesmo aquilo?!

— E… e q-qual seria essa memória?

Ele sorri, pela primeira vez depois de muito tempo.

— A de que eu sou completamente capaz de matar.


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Notas finais do capítulo

Arrivederci!



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