Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 15
Ironia


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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I

Conforme voava, o seu corpo produzia um zumbido que se tornava uma espécie de rastro inaudível, tendo em vista que as asas frágeis e diminutas mal conseguiam competir com a vegetação.

A vegetação, por sua vez, se assemelhava a grandes explosões esverdeadas. As folhas das árvores formavam uma massa densa, misturada com os galhos e os cipós, repletos de abstratos e policromáticos desenhos. A pequena mosca, no entanto, não poderia se atentar aos detalhes daquilo – o cheiro de sangue a atraía mais que tudo.

Foi quando ela expeliu seu corpo das folhas e, sendo guiada pelo odor, traçou uma espiral com seu voo, até perceber que tinha todo o espaço do mundo agora que estava livre da vegetação. Voava nos ares de uma clareira.

O cheiro de sangue partia de seu centro. Lá, jazia um homem imenso, muito embora magro, cujos cabelo sujos e bagunçados se misturavam à terra.  Livros o cercavam, e um deles estava aberto frente a sua cabeça. Sibilava brandamente as palavras que lia.

A mosca se aproximava desse organismo até perceber que tinha concorrentes, que haviam chegado mais cedo, e se divertiam naquele pequeno rio de sangue que saía das ruínas de seu ouvido. Ignoravam completamente o respirar do gigante, que nada era a não ser uma rajada de ar que saía de suas cavidades – assim era sua voz, assim eram os seus gemidos de dor.

Sua voz era vento, e não palavra – mas alguém tivesse ouvidos humanos e jamais duvidaria que o gigante (agora nem tão gigante) não falava português. Declamava sempre as mesmas palavras de um estranho idioma, primeiro mecânico, pontuando cada som com lentidão, mas com muito tento, e pouco a pouco ia se acostumando, até que parecesse o mais natural possível. Isso tudo acontecendo entre estertores.

Se a mosca voasse um pouco mais abaixo, um pouco mais à direita, viria que as mãos gigantescas se movimentavam. Seus dedos longos e magros estavam lambuzados de sangue fresco, cuja fonte era uma ferida em sua barriga. Um livro aberto estava sendo melado pelo sangue naquele magro indicador — não, o olhar mais atento revelaria outra coisa. O sangue tomava forma, era um desenho, um símbolo, uma runa.

A mão virou a página lentamente. E a runa voltava a ser desenhada, dessa vez com mais destreza e detalhismo; e isso repetiu-se, quem sabe, umas cem vezes.

II

Um misto de nostalgia e agressividade passa pela minha cabeça, ante este cheiro de ervas medicinais que Anistia exala. O eflúvio dos guardas, em contrapartida, é de chumbo, ou mesmo um estranho férreo, semelhante ao sangue. Talvez esse cheiro parta de mim, na verdade. Não se sabe.

— Droga. Você realmente se deu mal — é a voz da Morte.

Permaneço em silêncio. Não sei se é um bom sinal… a Morte tirando sarro de mim... ou melhor, a Morte ainda falar comigo.

Meus olhos permanecem fechados, os guardas me carregam; sou uma pluma, ou um cadáver? Creio que não… Anistia me dirige a palavra, tentando me tranquilizar, mas meu ouvido está gravemente danificado, não consigo ouvi-lo… o outro está pressionado contra o peito do homem que me carrega.

— Ah, vamos, eu sinto falta de quando andávamos lado a lado. Eu não quero ter que te levar para a minha casa tão cedo… e eu não digo isso com tanta frequência.

Eu não me importo. Eu… não me importo nem um pouco.

— Não? Você já poderia ter morrido, se realmente não se importasse… mas, o que são essas runas? Por que se importou em escrevê-las?

Eram apenas protótipos, que eu queria reproduzir. Ver se me soavam, de alguma forma, familiares. Espere. Antes, sentia os passos firmes do guarda afundando na terra… agora eles colidem com o chão… paralelepípedos. Estamos chegando… pela distância, calculo que voltamos ao casarão… ou será que ainda mais longe? Não posso confiar nos meus sentidos agora. Merda. Está tudo tão turvo e escuro… nada mais existe em minha realidade, senão o distanciamento de tudo, e a voz impassível da Morte em minha mente. Vamos, diga mais alguma coisa.

— Você descobriu algo, não é… pequeno mago?

...talvez. Eu não levei os livros comigo à toa. Tive que aprender alguma coisa… só não sei se será útil. Não sei se vou conseguir memorizar as informações que descobri. Ainda mais quando, ao mesmo tempo que lia os livros, eu debatia com as vozes na minha mente. O que importa é que as runas estão ali. Não sei se vão funcionar… aliás, acha que Anistia vai encontrá-las?

— Dentre as milhões de páginas escondidas em seu Diário? Difícil. A não ser que ele adivinhe que você reestabeleceu o elo telepático, ele vai suspeitar. Vince, o que está tramando?

— Ora, confie em mim… sabe que eu só sigo ordens, e não posso falar com mais ninguém.

Não me interprete mal. Eu confio em você, mas existe outra pessoa ouvindo… ou melhor, lendo essa conversa. É nela que não confio.

III

A mente é, sempre foi, uma coisa muito estranha. Tão ou mais complexa que a magia, e aqueles que se arriscarem a estudar a magia da mente, ah!, que malditos serão! Escolhi o caminho mais fácil, embora mais instável. O fogo. Segui o seu caminho e vi minhas atitudes e pensamentos se tornarem tão imprudentes quanto o elemento. Colho as consequências, agora.

Anistia escolheu o caminho que poderia ter lhe tornado um homem louco. Não, não, ele não é louco. É muito racional. Demasiadamente racional, e aprendi muito com ele. Aprendi que quando se domina a própria mente, é fácil dominar aqueles que não conseguiram. Que aquele que dispõe da liberdade muitas vezes acredita que precisa privar de outrem para que a conserve. Tal como o poder.

O diretor de Sempiternum é um homem vil e poderoso. E você sabe disso. Você está do lado dele. Eu não confio mais em você. Eu RtAcY3_yAt7ipLQ3-7pbNFUxStqAMDHtSpiStByLn9csQ4DHglb7
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Os guardas chegaram e espantaram as moscas. A primeira coisa que disseram foi “puta merda, ele morreu.” Anistia meneou a cabeça, desaprovando. Um misto de coisas deve ter se passado na cabeça do professor de literatura: por que que, inutilmente, Bernardo ainda lutava contra minha expulsão? Por que ainda cometia o risco de minha mente continuar constantemente colapsada? Os traumas, as feridas pareciam provas cabais de que não valia a pena continuar persistindo.

— Não, ele não morreu — a voz ríspida e autoritária — acordem-no.

Mesmo céticos, não questionaram. Com certa repulsa, tocaram meu corpo com seus pés, no que Anistia os censurou, dizendo para tomar cuidado. Antes que pudessem tocar meu rosto, abri os olhos, respirando fundo. Desde então, eu não enxergo muita coisa. Você talvez não entenda o porquê. Ou entenda. Não importa, você é um mentiroso, ou mentirosa. Sei pouca coisa sobre magia da mente. Mas sei que é possível dividi-la — como se a mesma mente passasse a assumir, vamos dizer assim, mais de uma unidade. Algumas pessoas tem mais facilidade de fazer duas ou mais coisas ao mesmo tempo. Pressionadas, se torna uma tarefa impossível. É aí que entra o feitiço de fragmentação.

— Maldito…

Estudar magia. Distrair as vozes na minha mente. Era tudo que eu precisava.

— Infelizmente, não posso te ferir. Tenho que te entregar inteiro. Mas como eu queria te destruir agora…

— Senhor, ele pode estar te ouvindo.

Ele se recompôs, mas sim, estava certo, eu podia ouvi-lo. E ele também pode me ouvir agora. Graças a você, farsante.

— É hora de partir, Vince. Eu sinto muito.

Contudo, o uso de magias que modifiquem a própria estrutura de sua mente, quando usada por mãos inexperientes, pode acarretar em consequências horrendas. A perda de um ou mais sentidos. Coma. Loucura. Paranoia. Fobias. Doenças mentais incuráveis.

— Vá… à merda…

Vá à merda, você também. Você foi o meu maior estorvo. E agora já não faz diferença eu saber disso ou não. Eu falhei. Eu fui tolo, conservador, não escutei àqueles que mais queriam me ajudar. E eu não sei quanta parte disso é culpa minha, ou sua, por ter me enganado o tempo todo. Por ter me iludido. Por ter xeSV1LsVQsVqyzdJJY35YzlWy34FEUSeZwgHaMr_7OzkVI3I3c7Bcb1IyGxfFt5I_64CEytdT1yTCBrSyr-jsYzDq9GtosVLu6ugWqzUusOoc0Yy3oWZZKVKRpjkzeQQyoEqc0XoBCMhis-bMQSnOPTmBCXfqns1Yxz5UNjKqJE tirado de mim a vontade de viver.

É quando ele se aproxima de mim, aquele hálito acre e horrível, que sempre me fora incômodo, mas agora é grotesco e ameaçador.

— Não pense que é tão esperto. Ainda existe algo que você não descobriu. E assim permanecerá.  

— Não faz diferença — minha voz cansada é tão ou mais afônica que a dele — eu perdi. Assumo isso com toda a humildade.

— Mas ainda está fazendo um esforço tremendo. Por quê? Você me daria todo esse trabalho para desistir no final? Eu o conheço, Vicente Filho, sei que ainda está tramando algo. E eu te digo para desistir. Existe um motivo para que eu seja o professor, e você, o aluno. Agora, vamos. Ou você tem mais alguma consideração?

— Sim… tenho.

— Então, sou todo ouvidos.

E, depois de um silêncio dramático, e antes de cair em cansadas e fartas risadas: — moedas de chocolate não compram barras de ouro.

IV

— Poxa, que barra — comentou a Morte, em seu tom sarcástico de sempre — mas o que será que falta você descobrir, hein? Que ele tomou suas memórias, isso já é fato. Que ele quer te expulsar por te considerar uma ameaça, também. E o que mais?

Não faz diferença. E, mesmo que fizesse, lembre-se que não estamos em total privacidade aqui e XqALUApDxQfAcRFC4TtCAGoqotLDf6_Nl-wQ4yqn_zdqXPG_8Y7wOhRv9PO8lngfpiAqb7DuoS5qjE-5YJLtDMSUsxBKabiyp_N8dAuW87xbBiRBjFUmE9H3bxfod5RBltHz5T5fgQrdsx1mzHG6XV3INF4DRlhg-Wrn66jDM35qXPG_8Y7wOhRv9PO8lngfpiAqb7DuoS5qjE-5YJLtDMSUsxBKabiyp_N8dAuW87xbBiRBjFUmE9H3bxfod5RBltHz5T5fgQrdsx1mzHG6XV3INF4DRlhg-Wrn66jDM35qXPG_8Y7wOhRv9PO8lngfpiAqb7DuoS5qjE-5YJLtDMSUsxBKabiyp_N8dAuW87xbBiRBjFUmE9H3bxfod5RBltHz5T5fgQrdsx1mzHG6XV3INF4DRlhg-Wrn66jDM37_QI2l3Gs1L_6ZItnqtuQzKE_4Kk8pozhdp2qMcodRkw

— Sua mente está completamente deteriorada. Se eu fosse você...

Eu… eu consigo me cuidar. Já não basta Bernardo e Jeong me encherem o saco, agora a própria Morte? Dá-me um tempo, por favor.

— Você esqueceu da Luana.

— Sente falta deles, não é?

Que seja. O que eu quero saber é… por que você continua falando comigo? Eu já compreendi a mensagem, você é uma ameaça real, e eu preciso tomar cuidado, pessoas dependem de mim, blá blá blá… então, por que está aqui, ainda? Vá embora!

— Não… você não compreendeu — Ela ri — na verdade, você está falando consigo mesmo, querido Vince.

Por que a Morte seria parte de mim? Isso… não faz o menor sentido. Eu estava fugindo de você! Além disso, eu não consigo prever seus movimentos… como eu não poderia prever meus próprios movimentos?

— Se questione, Vince. Eu não posso lhe conceder nenhuma resposta, além do mais… 02QrNNq8KeSdQIggTXovgu8BzqUt2Wi6GeDlKManILpjxJ-xN03brwBvQIoTvHKaYmHv00USuiEWMeSoKx3EsulWImnia1X6fyPMyS_asMpiGjaXj20zOwW_1_-DDF3kN7YopRDqs2efCU8eq4a6F7Ckta9c187YkvIwnYrWnc4

— Rebeca, eu… eu acordei com medo.

Faz calor, ainda mais com o vapor do café tocando meu rosto irritantemente; mesmo assim, meu corpo está trêmulo.

— Teve um pesadelo, Vince?

— Eu… não sei. Algo do tipo… mas eu não me lembro com detalhes. Lembro que… eu me sentia… como se tivesse acabado de tirar a vida de alguém.

Aqueles enormes olhos felinos cor de mel permaneciam me encarando, até que desviaram. Se desviaram dos meus. Desviaram dos meus. Por quê?

— Você sabe por quê, Vince — as mãos cadavéricas da morte me envolvem. Não, perto da Rebeca não…

— Perto dela, longe dela… não faz diferença. Eu sempre estive aqui.

EU NÃO SOU UM ASSASSINO.

— Sim, Vince… você é…

É quando me levanto, e num movimento brusco, derrubo a caneca de café no chão. Ouço gemidos de dor junto ao som do líquido queimando em carne. Quando olho para baixo, vejo uma pilha de corpos, que constituem todo o chão.

— Não… não… eu estou ficando louco… eu… eu já passei dessa fase… durante a obliteração…

— Eu avisei! A obliteração nunca terminou. Sua sanidade não para de ir embora. Você só está regredindo. Voltando à negação. Negando quem você é…

Eu matei o Lobo com facilidade… eu não me importei com sua vida…

MAS, NÃO, EU NÃO POSSO SER…

— Vince, mantenha a calma — quando a psiquiatra toca em minha mão, algo em mim desperta. Não era a excitação sexual de antes… mas as chamas em minhas costas. As asas de fogo retornam, e quando se abrem completamente, envolvem o corpo dela em chamas. Ela grita. Sua dor me atinge como se fosse a minha dor amplificada. Sua dor dentro da minha própria alma.

— Eu nunca faria isso… eu nunca mataria Beca.

— Pois foi isso que fez. Talvez não com suas mãos. Talvez não com seu fogo… mas sua imprudência conseguiu exterminá-la.

Eu não consigo gritar. Eu não consigo fazer coisa alguma. Só consigo estar gélido, apesar das asas flamejantes… só consigo me ver, agora, mais desistente que antes. Mais fracassado que antes.

— As pessoas desse mundo talvez te vejam como um herói, Vicente Filho. Para muitas outras, você é um monstro. Por isso, muito cuidado em tomar partido. Lembre-se disso quando descobrir quem é você. Agora… penso que falta pouco para que você esteja completamente destruído. Que tal desfragmentar sua mente, agora?

V

No momento, minha visão volta ao normal, e é como olhar diretamente para o sol. Queima. Queima como Rebeca queimou em minhas asas. Queima como a carne putrefata do Lobo.

Meu corpo, fraco, magérrimo, está sendo carregado pelos guardas que Anistia manipula. E na minha frente…

— Bernardo Manibus — a voz afônica e autoritária lá está, de novo — você contrariou minhas ordens. Me traiu, como eu havia imaginado. Pagará as consequências assim que for tempo. Agora, tudo que pode fazer é me deixar passar.

Percebo que o guarda que não me segura está apontando uma arma de fogo para o professor de ética. Quão irônico. Um professor deveria ser inofensivo. Mas não ele. No capítulo anterior ao banquete, quis que Manibus morresse, com todas as minhas forças, por ter me forçado a despertar. Agora, estou confuso em relação a isso. Em quem eu devo confiar…

Tome muito cuidado em tomar partido.

Maldita. Maldita, maldita, maldita!

— Não posso permitir — a perna dele ainda está machucada. Está coxo… e sem a presença de Jeong, Luana, ou mesmo Ivre. Quão longe este lugar está do casarão? Eu estou no Instituto…? Por mais que eu tente virar minha cabeça e enxergar, nada parece existir além de nós.

— E o que você pode fazer? O que você e duas crianças podem fazer…?

— Eles saberão que você está os enganando. E você sabe quão poderosos ficam quando revoltados…

Na minha mente surgem as imagens daquele dia de chuva, da primeira vez que vi minhas asas de fogo, e de como todos os alunos foram para cima dos militares. Mas o que isso quer dizer com o momento presente?

— Pelo amor de Deus, Bernardo… você está me ameaçando. Pelo visto, ter sua integridade física prejudicada não é o bastante. Já que é assim…

É quando ele faz um sinal para o guarda, e sem pestanejar, ele me coloca, de joelhos no chão. Meu corpo demora muito para responder, por mais que minha mente já não esteja fragmentada. Pelo visto, já sabemos qual foi a consequência que terei que colher.

— Não, pequeno Vince. É um pouco pior — as mãos ásperas e envelhecidas tocam as minhas têmporas. Minha cabeça já não se mexe, o olhar fixo em Manibus. O movimento dos seus lábios diz uma única coisa, antes que ele se desespere: se questione… se questione…

— Não… o combinado não era entregá-lo íntegro?!

— Fisicamente íntegro, se bem me lembro. Bamphlech nunca disse nada sobre sua mente.

Amig… não. Eu me esqueci. Não posso mais te chamar assim. Agora… eu não tenho a quem recorrer. Nem minha mente está segura. Graças a você… ele sabe tudo que eu penso, agora.

— Não precisa mais se preocupar em falar com seu amigo imaginário, Vince. Agora que já descobriu, tornou-se irritante.

— Do que está falando? — A voz de Manibus era aturdida, e como nunca havia visto antes, confusa.

— Para me certificar que Vince não descobrisse muito, criei um amigo imaginário ao qual ele confessaria todas as coisas. Desse modo, eu poderia sondá-lo o tempo todo. Não só as memórias dele estavam em minhas mãos… sua mente também. Eu só precisava encontrá-lo pessoalmente para extrair todas as informações.

— Você… sabia que eu estava tentando despertá-lo?

— Sim. Mas, como sabia que seus esforços seriam inúteis… apenas o adverti para que não continuasse. Sabe, no dia em que Vince perdeu a orelha. Pelo visto, não surtiu efeitos. Você é estupidamente teimoso, sempre foi…

— Estava sempre um passo à frente — Manibus tombou para frente, a perna vacilando ainda mais — nada adiantou… nada disso adiantou…

— E então? Vai deixar que passemos, e aguardará pacientemente na sala dos professores, ou Vince terá que sair dessa ainda mais prejudicado?

Um silêncio sepulcral me assustou verdadeiramente. Achei que terminaria este capítulo louco… talvez eu termine, de fato, porém, não da forma como Anistia (ou a Morte) planejaram para mim, mas por incredulidade.

Bernardo Manibus, num movimento teatral e veloz, ergue seus braços, e de cada mão surge um imenso clarão de luz quente, extremamente quente, que tenta nos envolver.

— Petulante! O que está fazendo?!

Manibus não fez isso para me machucar. Tampouco, para machucar Anistia… fez isso porque sabia que ele seria obrigado a me defender. E que, sendo poderoso como ele é, defender-se daquele golpe seria algo que demandaria imensa energia.

Energia o suficiente para concentrar todos seus esforços… inclusive, aqueles usados para sondar minha mente.

VI

Essa será nossa última conversa. Não diga nada… não que você fosse dizer, afinal de contas, você é só uma sonda… mas me apeguei a você. Verdadeiramente, me apeguei. E esses serão os últimos segundos em que você vai me ouvir. Depois disso, eu não sei o que será; então, vamos lá, para como foram estes últimos segundos com você, amigo.

Naquele momento, eu descobri porque não conseguia enxergar nada ao meu redor, e ao mesmo tempo, qual último detalhe Anistia me estava escondendo. Resistência e Sempiternum não são lugares diferentes. Não há outro mundo. Não há outra dimensão. Há somente o mundo da Resistência… há somente o mundo em que fui absorto por um imenso déjà vu. Não bastou colher minhas memórias… ele me inseriu numa ilusão, de que eu estudava numa boa escola politécnica, luxuosa, bela, e não num colégio devastado pela guerra, em que as pessoas resistiam a ataques extraterrestres. E mais importante: eu não poderia falar com ninguém. Se isso acontecesse, as pessoas perceberiam que eu estava entorpecido, e eu também, por conseguinte. Aí entra minha fobia social. O que não consigo entender, é porque ninguém veio atrás de mim, se eu sou de fato um herói para eles. Mas talvez isso seja uma mentira, também. Esses questionamentos não cabem em segundos, eu sei.

Imagine… este monte de informações é o bastante para que alguém entre em colapso, não é? Por isso que Manibus tomou tanto cuidado… mas não consigo entender mais algumas outras coisas… imagino que você também não. Contudo… nosso tempo está acabando.

Adeus, amigo. Adorei o tempo que passamos juntos, apesar de tudo.

VII

Vicente Filho, com seu rosto manchado de lágrimas e de cansaço, se apresenta próximo a uma carruagem frente aos portões da Resistência Sempiternum. Calado, permanece olhando para o chão, mesmo que Anistia esteja ao seu lado, e suas mãos estejam desamarradas.

Alimentando os cavalos, está um homem corpulento e fétido, com roupas pretas dignas de um carrasco, e usando uma máscara de ferro qu não permitia ver nenhuma extensão de sua face.

— Aqui está, Rotpor. Perdão pela demora… sei que já está esperando faz um tempo.

Rotpor, que no momento masca uma folha de menta, ignora o comentário de Anistia. Está nitidamente irritado pelo atraso e fita com certo desdém a aparência de Vince.

— A ideia era trazê-lo íntegro. Que que aconteceu com ele, hei?

— Só a sua mente está um pouco… colapsada. Mas isso não dura muito. Sabe como ele é rebelde… não foi tarefa fácil mantê-lo quieto.

— Bem… que seja. Meu trabalho é só levá-lo embora — ele se aproxima do jovem mago, dando leves empurrões, como se averiguasse algo — tem certeza que ele vai continuar assim? Que não vai me dar nenhum trabalho? Ouvi dizer que o moleque é brabo

Anistia segura o braço do cocheiro, mesmo que este seja quase tão grande quanto seu tronco.

— Sim, tenho a certeza. E não o machuque. Lembre-se. Íntegro…. fisicamente.

Embora isso não seja visível, é quase certeza que Rotpor sorri.

— Entendo. Fisicamente — se esforçando o máximo para tomar cuidado, o homem aloca Vince dentro da carruagem, que é completamente coberta, tais como as de alguém de uma alta casta social. O cocheiro se senta em seu devido lugar, e com o chicote emmãos (heia! heia!), faz com que os cavalos, a propósito, mal cuidados, saiam do lugar — bem, adeus.

E a carruagem começa a se desvanecer no horizonte. O diretor do antigo Instituto Sempiternum, agora Resistência Sempiternum, assiste o veículo contendo Vince sair da região florestada, para um deserto criado pela guerra.

Contudo, a guerra também está cá dentro. E, quando volta para dentro da Resistência, se depara com todos os alunos no pátio, trajando mantos negros, esperando pelo diretor com chamas em suas mãos.


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Notas finais do capítulo

Obrigado pela leitura, e arrivederci!



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