Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 13
Eros


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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I

— Por favor — o nervosismo e a frustração em Manibus saltavam de sua voz — repita o que acabou de me dizer...

Então, atingiu a parede do casarão com um soco, derrubando um quadro que se estilhaçou no chão. O barulho, fosco na minha mente, fez com que Luana se encolhesse.

Você ainda está aí? Pois bem. Não me lembro exatamente o que me trouxe até o casarão. Mas, isso não é importante. O importante é que...

— Você ainda não se lembra de nada?!

— A única coisa que aconteceu comigo foi... — Raciocino um pouco antes de soltar as palavras — estar próximo de entrar em colapso.

Uma enorme veia saltava de sua têmpora, sua mandíbula subindo e descendo discretamente, seu rosto passando por decepção, pressa e raiva.

— Me diga, Vince... quem é Bamphlech?

Me diga, amigo. Quem é Bamphlech?

— Eu não sei.

— O que você viu?

— Eu não sei.

— Você deve se lembrar de alguma coisa!

— Não me lembro.

O professor se aproxima, ligeiro, e Luana se sobrepõe, a sua pele completando uma volta inteira em torno da minha. Os dois se encaram por um tempo; a tensão era uma colmeia zumbindo.

— De um jeito... de um jeito ou de outro — eu disse, sem muita força — a culpa não foi minha. Achou que com hipnose minhas memórias iriam voltar?

— Eu tentei algo! — Bernardo deu meia volta, gritando para as paredes — eu tentei algo, droga. Eu não sei o que fazer para essas suas memórias voltarem sem te machucar. Ninguém sabe! E você não fez o mínimo esforço...

— Eu não pedi para ser salvo. E ainda por cima me machuquei.

Luana me apertou com força incisiva. Com certeza aquelas não eram as palavras certas; mas eram as palavras que rondavam minha mente, e conforme elas saíam, as lágrimas também tornavam a descer.

— Eu não queria estar aqui. Eu não queria conhecer esse mundo... eu não queria sentir medo. Eu só queria estar em casa... eu só queria...

— Eu queria, eu queria, eu queria... todos aqui estamos fartos de conhecer os seus desejos. Sabemos muito bem quem é você. E sabemos muito bem o que você quer — Manibus não mais falava; vociferava, como um cão faminto — mas a pessoa que conhecemos não se importaria tanto com os desejos. Ele pensaria no que é preciso para todos.

— E o que é preciso para todos? Vocês me querem para que eu derrote aqueles va... va...

— Var’croz — completou Luana.

— Essas criaturas! Eu sofri para derrotar o Lobo, que nem temos certeza se é mesmo um deles... como vocês acham que eu vou ter poder para ajudar em alguma coisa?

— Vince confiaria em nós e saberia que conhecer é o mesmo que poder.

Eu sou o Vince! Entenda isso! E eu não ligo para essa sua filosofia de boteco.

Bernardo Manibus riu, amargo. Parte dele queria largar mão daquilo tudo... queria que eu continuasse adormecido, enquanto a décima quinta Resistência ruía assim como todas as outras, e aquele mundo fosse destruído. Uma parte ainda maior de mim deseja isso também. Eu poderia voltar para a minha rotina... voltar a estudar, ir para uma faculdade privilegiada, me tornar um redator de jornal, e morrer feliz assim.

Mas outra parte... era uma parte demasiado incômoda. Entende? Quando uma parte de si é tão menor, mas não menos barulhenta que as outras... e te chama a atenção, fisga sua energia vital, de forma que você ceda àquela minoria repugnante. Àquele impulso que se sobrepõe à todas as outras forças maiores.

— Eu te darei a escolha — Bernardo voltou a dizer, recuperando a calma — é tudo que posso fazer.

— Professor, não... — Luana estava voltando aos prantos. Contudo, o professor era implacável.

— É só o que podemos fazer — reiterou — então, me diga: você quer despertar, ou não?

E estava tudo inserido naquela pergunta, que carregava o peso de um fato. Estava relativamente calmo até então; a implacabilidade com que Manibus me dera a chance de escolha me colocava na posição de mãe que deveria escolher qual filho gêmeo merecia morrer.

Eu posso, a partir de uma palavra, voltar ao conforto de minha vida; continuar com calma minha terapia... voltar a estabilidade. Nada disso teria acontecido. Os meus laços com aquele mundo estranho e com Resistência desapareceriam. Seria melhor assim... muito melhor. Um mundo ruindo, existente ou não, deve ser evitado. Não sou insensível — isso é a mais pura lógica, e fora essa racionalidade, a minha vida também prevalece: estava prestes a ser construída, imposta acima de um passado deixado para trás.

Contudo, conhecimento e poder, se não são as mesmas coisas, partilham o mesmo caractere: a sedução. Não era possível ignorar a curiosidade do destino daquele mundo. Quão forte poderia ser o domínio do fogo? Quem era Bamphlech? É realmente impossível derrotar a eminência alienígena? Este segundo caminho nada me proporcionava senão dúvidas. E, no entanto, era tão capcioso quanto o outro.

— Mas não se esqueça — disparou, captando de uma só vez minha atenção — não sei se posso mantê-lo na escola.

Aquilo me atingiu como um gancho. Esqueça tudo que eu falei até então... essa variável não era conhecida.

— É, isso mesmo. Você não se lembra nem disso? Anistia quer expulsar você.

— P-por quê...?

Seus lábios tremeram junto a pergunta, numa espécie de sorriso.

— Se eu te respondo isso, eu dou uma pista. Você quer mesmo?

Luana se impôs novamente entre nós dois. Por alguns segundos, ela somente o encarou. E, dessa vez, eu podia perceber uma energia que emanava do seu corpo — energia semelhante a que eu sentia quando produzia fogo.

— Você não me ameaça, Luanna.

— Claro que não — respondeu, com humor amargo — mas você o ameaça, né? Já que ele é mais novo e mais fraco.

O professor estalou a língua, desdenhoso.

— Não se façam de vítimas agora. Estou trabalhando nisso a mais tempo do que vocês imaginam. E agora...

— Você queria que nos rebelássemos. Sempre quis isso. Sempre disse que devemos questionar as autoridades.

— Sim, mas...

— Mas o quê?! Vince não aceita o seu... o seu “tratamento”. Não o force. Você estaria sendo como Anistia.

A comparação nitidamente o atingiu. Passaram mais tempo se encarando, entretanto, o olhar do professor agora era fraco, e ele o desviou velozmente. O silêncio, ensurdecedor, prevaleceu.

— Eu quero acordar.

Aquele lugar não produzia eco, porém eu imagino que as mentes tanto de Manibus quanto de Luana reproduziram várias e várias vezes o peso daquela afirmação. Olharam para mim, atônitos.

— Eu quero acordar. Por que a surpresa? Você me deu uma escolha, não é? Vamos então.

— Não me entenda mal — ele advertiu, a voz tão trêmula quanto a minha — na minha pergunta, eu não quis dizer que seria fácil. Ainda passaremos pelo mesmo processo doloroso e...

— Sim. Tudo bem. Estou convicto disso — mas não estava. Foi um tiro no escuro. Uma impulsividade; mas nossas vidas são tão somente movidas por impulsividades como essas. Que o pensar, por ora, vá a merda.

— Vince... você não precisa. É sério. Respeitamos o seu...

— Não. Eu realmente quero — meus olhos deslizaram pelo chão, e com as mãos quase que espasmando, cerrei os punhos, levantei o queixo, e tentei falar. Não consegui. A segunda vez, entre gagues, foi mais bem-sucedida — eu... eu só preciso de um... como posso dizer... de um teste... para ter certeza...

Manibus revirou os olhos.

— O que foi agora? Acha que é fácil assim? Uma escolha é uma escolha.

— Eu sei que você pode fazê-lo. Então, por que não?

— Posso? Como você pode dizer com tanta certeza?

— Pode, sim — Luana indagou, enérgica ç você fez o que fez. Ele não se tornou estúpido, Manibus.

O professor bufou, para logo em seguida sorrir, ambíguo. A revolta irrita qualquer autoridade..., e alguém como Bernardo Manibus não poderia deixar de apreciar um manifesto bem arquitetado em busca da autonomia; aquele, talvez, fosse o seu objetivo desde então. Não sei. Não dá para saber.

Ele veio até mim, e Luana se demorou segurando o meu braço. Fiz um gesto para que ela soltasse, e com complacência o fez, quase que se angustiando. Não é de todo interessante esse tratamento, mas compreendo a preocupação. A mancha vermelha em meu curativo não deixava dúvidas do dano que poderia ser causado.

— Professor Anistia. Ele te...

De sua boca já não saía som. E isso nada tinha a ver com meu ouvido inexistente, e sim, ao fato de que um forte agudo surge em minha mente; e este agudo, não importa o quanto eu me movesse, permanecia o mesmo.

Então, era aquilo que Manibus queria dizer. Qualquer informação que eu tivesse, longe do meu cárcere, faria aquilo comigo. Já aconteceu uma vez... é, já aconteceu uma vez, naquele mesmo lugar. O professor, vendo que eu me curvava, que eu tentava fugir daquilo, agarrou meu rosto — e a prece de Luana não conseguiu impedi-lo. Lá estava ele, ferrenho, dublando aquela minha dor intensa.

Lembrei de suas aulas; quando ele disse que a primeira saída da caverna poderia cegar nossos olhos, acostumados com a escuridão.

Foi em reação aos berros que Jeong apareceu, logo atrás do professor, se distanciando da porta; ele estava ali do outro lado da porta, de vigia, provavelmente não escutando nada até então. Quando teve nota do que acontecia, se desesperou, correndo até o grupo; e meu corpo não conseguiu reagir de outra forma. Minhas mãos produziram uma bola de fogo que velozmente atingiu o abdômen do professor de ética; sua roupa queimava enquanto o impacto da esfera o repelia.

Aos poucos, o agudo angustiante cessava, mas isso já não significava muito. Ignorando as objeções dos meus dois amigos, que tentavam acudi-lo, subi as escadas e fui até o quarto. O quarto em que dormi em minha primeira visita a Resistência.

Eu queria beber mais daquela fonte sanguinolenta.

II

Eu e Rebeca tomávamos café de vez em quando. Ela fazia o possível para que eu me sentisse confortável, e embora eu soubesse que aquilo era meramente profissional, eu gostava de acreditar no gesto como o de mais pura afeição.

Essa crença cega foi a que começou a dificultar as coisas; o episódio das roupas não foi o último em que eu percebi mais algum novo detalhe sobre Rebeca. Às vezes, seus lábios estavam secos, e sempre fazia pausas para umedecê-los, um gesto que passou a me incomodar... até que eu percebi que esse incômodo nada mais era que excitação. Eu nunca poderia confessar de onde veio essa dúvida, mas nada me impedia de externalizá-la... talvez ela visse, como sempre, progresso naquilo.

— Eu... às vezes eu pensava... só as vezes. Sabe, quando leio algumas cenas assim em livros..., mas os livros não me causam nada. Enfim... eu acho que me esqueci como é estar excitado.

Meu corpo ficou frígido quando eu proferi as palavras. Sexualidade; tabu. Não estava acostumado a dizer coisas assim. Por que arrisquei? Veja que a impulsividade é minha colega eventualmente.

Ela ergueu as sobrancelhas, como que dizendo para que eu prosseguisse.

— Eu não lembro se já senti isso antes... quer dizer, não que eu me lembre de alguma coisa num geral... mas...

— Entendo o que você quer dizer — tenta me tranquilizar — mas, você tem certeza que nunca sentiu nada disso?

Apenas continuei ouvindo, não compreendendo que ela esperava uma resposta.

— Quer dizer... algumas pessoas não sentem mesmo. E está tudo bem nisso. Só preciso saber se é esse o seu caso, ou se você só está de fato se descobrindo — ela sorri, quase que infante — se descobrindo novamente, não é mesmo?

— Eu acho que senti. Uma vez.

— E sabe me descrever como foi? — Quando ela disse isso, levantou-se, e vagou até a cafeteira no canto da sala. Novamente usava uma saia, só que preta, e mais colada em suas pernas — estou ouvindo, Vince.

Olhei para baixo. Estava tremendo; talvez como não havia tremido há muito tempo. Fechei os olhos, e percebi que a silhueta de Rebeca estava colada no interior de minhas pálpebras. Nada em minha mente conseguia desassociar a imagem de seus seios, suas pernas, seus lábios... aquelas estranhas sinuosidades que eu nunca havia pensando em desvendar. Naquele momento, eu pensava, e parte de mim me condenava por isso; contudo, ela se enfraquecia... mais... mais... só restava o desejo e o medo do desejo.

— Vince? — Ouço sua voz, um eco disforme.

— A mente... fica estagnada. Não dá para pensar em outra coisa, sabe? Você... você fica tremendo. Principalmente nas pernas. Ofega. É estranho. É como... como estar medicado. Claro que em níveis menores. Mas, em princípio, é isso mesmo. E o meu... — Me abstenho quando vejo que estou novamente me aproximando de um tabu — o meu...

— Tudo bem — o som das duas xícaras de café aterrissando na mesa dão um tom trovejante a sua voz — tudo bem, já entendi o que você quer dizer. É perfeitamente normal, Vince. Todos nós sentimos isso em algum momento de nossas vidas. Principalmente na sua idade.

— É... Talvez.

Silêncio.

— Mas — imponho — mas e quando... esses sentimentos vem aliados a... a... não sei... amor?

Ela abre um sorriso. Me ver falando de amor é assim tão surpreendente? Sim. Com certeza. Eu sequer acreditava no que estava dizendo. Amor... que estranha abstração! Como resumir todos os nossos sentimentos e pensamentos numa só palavra? Como gerar tantas discussões atravessando gerações, incessantes em sua busca por uma verdade inaudível? Invente um termo como “amor”! Mas lá estava eu. Repetindo aquilo, na falta de outra palavra para utilizar, e tão somente por isso.

— Melhor ainda, não é?

— E se... e se a pessoa nunca corresponder?

Seu tom mudou, tornando-se quase que complacente; como se tivesse acabado de perceber que eu estava, por alguma razão, ofendido.

— Bem... acho que todos nós sofremos de amor não-correspondido em algum momento de nossas vidas. Pode parecer doloroso, mas vai acontecer. Isso está acontecendo com você?

— Não... não sei..., mas... caso aconteça, o que eu deveria fazer?

— Primeiro, você deveria ter certeza que de fato não estão te correspondendo, certo? É alguém que você conversa?

A pergunta me trouxe uma espécie de culpa. Uma culpa, por assim dizer, hipotética; se eu estivesse de fato conversando com alguém, sem consentimento de Rebeca, estaria omitindo informações valiosas para o suceder da minha terapia... por outro lado, eu não poderia de forma alguma dar a entender que a “pessoa” em questão não existe; eu estaria afirmando que minha atração por Rebeca é real; tanto para mim, quanto para ela... e isso seria o fim. Literalmente, o fim.

Logo, me vi obrigado a continuar omitindo.

— Vamos dizer que sim. Eu acho que nunca mencionei antes. Desculpe...

— Sem problemas. E vocês são amigos?

— Sim... eu acho que sim, dá para chamar desse jeito. Sentamos um perto do outro...

— Bem — se ajeitando na cadeira, vejo que umedece novamente seus lábios. Droga — já que deu um passo na direção dela, deveríamos prosseguir. Caso você sinta que é a hora de... sabe... conversar mais sério com ela, você deveria fazê-lo. Quando sentir que sua paixão é real... se você sentir, é claro. Talvez passe. Nunca se sabe... de qualquer forma, Vince, nunca é bom esconder essas coisas.

Nunca é bom esconder as coisas. A frase me atingiu num torpedo. Algo dentro de mim tremeluziu; a boca estava seca. Obviamente, Beca não deixou de perceber.

— Está mesmo tudo bem, Vince?

— Sim... só está tudo muito estranho. Quer dizer... se isso nunca cessar... eu vou ter que, uma hora ou outra, confessar, certo?

Ela se deleita ao notar meu entendimento.

— Justamente. Mas leve as coisas no seu tempo. Se não conseguir, você pode sempre me consultar, também.

Desvio o olhar, desconfortável com a resposta. Beca passou a me olhar como se reiterasse a mesma pergunta de antes. Percebendo que ignoro o olhar, estala a língua, enquanto fita o laptop ao lado.

— Bem — começa a se levantar — já deu a nossa hora – indo abrir a porta para mim (cordialidade que ela mantinha sempre), percebe que eu me demoro um pouco ali, sentado. Quando ficamos de pé, lado a lado, noto que sou ligeiramente mais alto que ela. Vendo-a assim, como que de cima, percebo minhas pernas voltando a tremer — está tudo bem?

Faço que sim com a cabeça. Infelizmente, Rebeca tem como principal competência a interpretação dos meus gestos. E muito embora ela desconhecesse o que estava acontecendo, sabia que tinha algo acontecendo.

Enquanto saio da sala e me dirijo ao meu dormitório, em passos vagarosos e despreocupados (o que não é comum, sendo que geralmente tenciono voltar o mais cedo possível aos meus aposentos), começo a pensar na angústia que seria o meu destino, se eu não deixasse aquele sentimento que sentira outrora morrer.

Queria que Beca estivesse certa, no entanto, quando dizia que aquele sentimento era comum; e que seria efêmero. Não fosse, seria um grande problema. Não conseguiria vê-la, mais, com aqueles olhos de antes. Ela seria o problema em si, deixando de ser a solucionadora.

Numa metáfora vulgar, seria como se começasse a sofrer uma reação alérgica intensa a algum medicamento a que estava acostumado. Qual o proceder padrão, nesse caso? Bem, imagino que trocar o medicamento. Não quero sequer pensar nisso. Rebeca foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida... talvez por isso eu esteja confundindo tudo.

Foi assim que me vi absorto numa dualidade hedionda, com que Eros me estrangulou em suas flechas: se amar é desejo, a não-consumação somente acarretaria em frustração. Entretanto, romper com o tratamento e trocar de terapeuta engendraria decepção semelhante, mas que só se dá pelo fato de eu não querer deixa-la, isso é, de amá-la (deseja-la). Recordando que, isso tudo se deu porque parte de mim precisava amá-la; outra parte não o queria.

Então, sintetizando o dilema: curiosamente, para continuar amando-a, precisava deixar de amá-la.

III

Não sei se é minha visão turva ou meu corpo trêmulo, mas estou quase certo de que todos os dedos da minha mão estão quebrados.

O que fiz para isso acontecer? Essa é a primeira pergunta que me ocorre... não é um bom sinal. Estou dentro do quarto, como tencionei minutos atrás. Ele não é o mesmo. Merda. O que eu fiz? Minhas roupas estão sujas de tinta, produzindo um cheiro acre e artificial. A parede, à minha frente, que em minha primeira visita me causou fortes dores ao fita-la... bem... as letras incompreensíveis que antes jaziam lá estão cobertas de preto. Já não sinto dor alguma em observar a parede, que nada mais tem a não ser uma enorme mácula negra — e ao lado, pequenas manchas vermelhas, menores, no formato de um punho fechado.

É, não preciso de maiores explicações. A dor em minha mão se torna cada vez maior. Caio de joelhos no chão, ofegante, o corpo frio, as roupas coladas em meu corpo através de um suor gélido.

Ouço baterem a porta. Ignoro, sem sequer compreender o sentido daquele som. Quando ele vem com mais força, vem acompanhado da voz rouca, enfraquecida de Luana.

— Você precisa sair daí. Agora.

— Chame Jeong — a frase vem rápida, com incisão — eu quero falar com Jeong.

Apesar do silêncio, quase consigo ver seus olhos cerrando. Não tarda, eu ouço a voz baixa e inexpressiva do colega de quarto.

— Manibus está machucado; pode ter machucado a perna.

— Jeong. Se lembra quando nos conhecemos?

Ele não entende nem um pouco.

— Pare de brincar. Não é hora disso... se Manibus não conseguir ir para a reunião, ninguém vai impedir Anistia de te expulsar...

— Eu não queria falar com você. Eu tinha medo do que você poderia fazer. Eu disse a Rebeca que você me obrigou a sair do dormitório.

Silêncio momentâneo.

— Você... disse isso?

— Sim — um riso fraco e ingênuo — eu fiz de tudo para que você fosse embora. Mas depois eu vi que... que você era que nem eu. Que não tinha muitos amigos. A maior parte dos garotos da nossa idade só falam de coisas que não me interessava. E você entendeu isso.

...

— Você me mostrou alguns filmes em seu laptop. Graças a você aprendi a gostar de cinema... e através disso... eu consegui aprender um pouco mais sobre as pessoas. Os livros apenas me dão um... uma impressão vulgar da humanidade. Os filmes demonstram isso com crueza. Jogam na sua cara. Eu aprendi isso com você, Jeong.

O silêncio prevaleceu. Não me pergunte porque estou dizendo essas coisas. Eu só temo o que pode acontecer; da iminente possibilidade de eu nunca mais vê-lo; das coisas virarem um turbilhão ainda maior em minha vida. Medo. Tudo se resume nisso.

— Eu lembro que você adorou Kubrick. As pessoas acham chato... e você gostou. Eu vi que tinha algo de diferente em você ali. Sabe, nem eu gosto tanto de Kubrick. Confesso que durmo assistindo 2001 às vezes.

— Mas não dá para dormir assistindo O Iluminado.

— Não mesmo.

— Jeong.

— Você delirou com Laranja Mecânica. E quando ficou sabendo que era baseado em um livro? Foi como um louco buscar um exemplar na biblioteca... tive que procurar na internet para você, nunca te vi tão agitado e...

— Minha mão dói.

...

— O que você fez?

— Eu acho que... soquei a parede. Várias vezes. Para aliviar a dor na minha cabeça. Eu... eu não estava consciente... eu não me lembro... você tem que me ajudar...

— Eu não consigo. Eu preciso chamar...

— Não.

— O quê? Ia dizer que precisamos chamar a Ivre para te ajudar. Mas não são nem seis horas ainda.

— Eu não quero me encontrar com Ivre...

— Por quê?

Não seria racional; na verdade, seria incrivelmente estúpido responde-lo com sinceridade. A única opção viável seria me encontrar com Ivre de fato, apesar da dor no estômago que a cena me causa. Mas não é só Manibus que está arquitetando coisas aqui... é como ele disse: conhecer é poder.

A maior parte dos livros jogados no chão estão com seu interior intacto, apesar das manchas de tinta na capa. Sabemos o que fazer... sabemos. Sentindo imensa angústia, cujos gritos foram abafados por mordidas dolorosas em meu lábio inferior, empilhei os livros, e joguei-os dentro de uma bolsa de couro puída que jazia no canto do quarto. Duraria muito pouco com aquele peso, mas já seria o bastante.

IV

Passou-se talvez meia hora quando Ivre chegou. Abri a porta, segurando-a para ter certeza que apenas ela entraria — Jeong não estava mais lá, provavelmente havia voltado ao seu posto de sentinela. O lugar logo se tornou uma mistura de cheiro de tinta com ervas medicinais.

A enfermeira tinha olheiras profundas. Creio que havia sido retirada do seu sono; não me dirigiu nenhuma palavra, apenas pediu para que eu me sentasse na cama, e puxou a única cadeira da sala. Ignorou completamente as manchas de tinta e de sangue, e começou o tratamento ritualístico. As luzes esverdeadas surgiram junto às palavras extraordinárias, agora envolvendo meus dedos e meu pulso. Era como se pequenas mãos gélidas estivessem pouco a pouco desentortando meus dedos; um processo doloroso e refrescante ao mesmo tempo.

— Você deveria parar de ser teimoso — disse, finalmente — graças ao que fez com Manibus... talvez as coisas se compliquem.

— Não pense que pode falar normalmente comigo. E o professor com certeza não se machucou tanto com aquela bola de fogo.

O tratamento parou. Os olhos de Ivre se tornaram irados.

— O que deu em você? Está certo... você ainda não sabe o poder que tem. Bernardo machucou a perna com o impacto. Não foi difícil curá-lo, mas ele está instável... dificilmente vai conseguir defende-lo na reunião agora.

Demonstro total desinteresse pelo sermão, desviando o olhar.

— Mas o que diabos eu fiz para você?

Meus olhos imitaram os dela — ambos estavam repletos de incredulidade.

— Você ainda pergunta? Qual o seu problema?! Você não deveria tratar os alunos... você é doente.

A enfermeira dos cabelos lilases se levantou, totalmente contrariada. Os dedos ainda doíam, mas não mais possuíam aquele formato abjeto.

— Eu não sei. Sinceramente não sei porque pensamos em te ajudar. Pessoas depositam suas esperanças em você e...

— Nenhuma delas me beijou. Nenhuma delas se aproveitou de mim e me beijou! Eu não me importo com suas boas intenções... se você fez o que fez!

Ivre não soube, por alguns instantes, se sentia-se enojada ou contrariada. Eu, tão rapidamente, senti as duas coisas. Agora, ambas as minhas mãos tremem... a face da enfermeira só revela uma coisa. Uma única coisa.

— Eu nunca te beijei.

Eu nunca te beijei.

— O que... não, você...

— O que Anistia fez com sua mente...? — Ela se aproximou de mim, agora benévola, tentando me acalmar; um gesto, no entanto, inútil. Eu não iria me acalmar: pelo contrário. As chamas voltaram a aparecer em minha mão. Controladas e letais.

Eu nunca te beijei.

— Vince... vai tudo ficar bem. Me desculpe, eu...

— Se você chegar perto de mim — a voz que sai de mim não me pertence — eu juro que te queimo. Eu carbonizo você.

— Você precisa se acalmar! Precisa aceitar que foi... uma alucinação...

— E o que aqui não é uma alucinação? O que aqui não passa de... de... de insanidade?!

Eu nunca te beijei.

A janela ao lado da cama estava trancada — uma pequena muralha de vidro, entre eu, Ivre, e a execução do meu próximo passo sozinho.

Ainda com as mãos em chamas, recuo, indo até a bolsa. Faço as chamas se extinguirem, só que o tempo de ação da enfermeira é curto: com ambas as mãos, seguro a estrutura de couro, e dou duas voltas em torno do meu corpo, sentindo dores lancinantes a cada volta, e arremesso contra a janela, que se estilhaça em vários cacos de vidro. Ivre grita, se protegendo dos cacos.

— Vince — suplica, angustiada, quando percebe que nada a atingiu — pare com isso... não piore as coisas...

A janela era praticamente colada com uma árvore, que me serviria como escada natural. Ouvimos passos e gritos da escada do casarão. Luana e Jeong devem ter ouvido... porém, quando eles conseguirem entrar, provavelmente já será tarde. Eu já vou ter sumido floresta adentro. Eu e os livros que recolhi.

Com o pé direito na janela quebrada, olho para a mulher que outrora me ajudou. E lá estava ela, totalmente intimidada... tinha medo, medo de mim. Que tipo de reputação eu teria naquele lugar?

Que tipo de pessoa eu represento para aquelas pessoas? Que Vicente Filho Anistia pretendia castrar?

— Me desculpe — digo, e pulo da janela, descendo da árvore desajeitadamente. A bolsa se encontra enroscada em um dos galhos. Quando percebo que tentei agarrá-la com a mão ruim, já é tarde demais. A bolsa e seus livros caem em cima de mim, e eu cambaleio para trás, escorregando na terra frágil e tropeçando em alguma raiz.

O primeiro passo, apesar de desajeitado, foi decisivo. Me recomponho, apressado, com a bolsa de couro pendurada no corpo, e dentro a floresta escura que logo seria iluminada pela luz lilás daquele estranho mundo.


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Notas finais do capítulo

Obrigado pela leitura! Arrivederci!



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