Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 12
Obliteração II


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/738353/chapter/12

I

Enquanto eu assisto tudo ao meu redor se reduzir à cinzas, num carnavalesco e medonho tornado de chamas, sinto os papéis crepitarem com deleite, como se as línguas flamejantes fossem extensões do meu próprio corpo.

Eu grito. Sei disso, pois há uma ardência sem precedentes em minha garganta, mas o som das chamas é muito mais alto que minha voz; isso tudo dura, talvez, questão de minutos.

Ofegante, não tarda que eu note toda a sala resfriar-se — as carteiras retorcidas, os papéis reduzidos a pó, os dizeres na lousa borrados, inelegíveis, um gosto de sangue em minha boca.

— Eu... eu não posso...

Algo pinga sobre meus pés. Quando olho para baixo, vejo rubros círculos se formarem em meus sapatos. Não consigo manter minha boca fechada; uma cachoeira de sangue percorre todo o meu corpo, partindo dos meus lábios amolecidos. Meu corpo perde a firmeza.

— Não... eu não...

Dando meia volta, tenciono ir até a porta, no que caio de peito aberto durante o primeiro passo. Minha cabeça tornando-se chumbo conforme meu corpo também enrijece... e assisto minhas mãos se encherem de bolhas e mais bolhas.

Um par de pés surge no meu campo de visão. Penso em gritar, mas minha língua tornou-se uma substância gelatinosa sem movimento em minha boca. É real, estou derretendo. Meus olhos não se movem mais — eu só vejo quem é a pessoa na minha frente quando ela se curva sobre mim.

Um homem, a pele negra e o rosto rígido graças a uma hedionda cicatriz, sorri para mim forçosamente.

— Há quanto tempo, filho — seu riso cínico é a última coisa que ouço, quando minhas pálpebras derretem sobre meus olhos, e eu deixo de sentir qualquer coisa.

II

— Não... eu não fiz isso. Eu não posso ter feito isso...

Logo à minha frente, vejo o meu corpo morto, a cabeça aberta como uma cratera vermelha e gosmenta; com minhas mãos trêmulas, seguro um machado vermelho-sangue.

Deixo-o cair sobre os pés do cadáver, num gesto de repulsa.

— Não, não, não, Vince, isso não é real... isso não é real...

Uma imensa mácula estraga o mosaico perfeito do casarão. Um mosaico vermelho-preto-dourado. O sangue também umedece e dá uma coloração grotesca e rosada aos papéis jogados no chão ao nosso redor.

Os papéis do meu Diário. Em todos, sempre o mesmo seguinte texto:

Só trabalho, sem diversão, faz do Vince um bobão.

Ouço alguém ao meu lado estalar a língua, num gesto de desaprovação. Instintivamente, meus olhos procuram essa pessoa, e tremeluzem tão logo a encontram.

— Pai...

— Não venha com esse papo — diz, se distanciando de mim, para logo em seguida se curvar sobre o machado, agarrando-o com maestria — vamos logo com isso.

— Espere... o quê?

Ele vem em minha direção, balançando-o para trás, para tentar me atingir, e obtendo êxito nessa tarefa, me desfere um golpe certeiro na cabeça. No entanto, eu continuo dolorosamente consciente, caído de joelhos, desequilibrado graças ao peso da arma branca. Berro de dor, enquanto meus olhos são banhados pelo rubro.

— Você nunca deixou de me decepcionar — meu pai senta-se, de costas para mim e frente ao outro corpo, fitando-o com desdém — todas as vezes, eu nunca me divirto o bastante para justificar o tempo perdido — tateando o chão, ele encontra uma das folhas. Quando a lê, estala a língua — é meio triste como as coisas estão se guiando para você, Vince.

Permaneço gemendo de dor.

— É, eu entendo. Ninguém está te explicando coisa alguma. Engraçado, isso não me causa nenhuma piedade — vejo os seus músculos rijos se tranquilizarem quando ele vem até mim, retirando o machado do meu crânio num movimento não tão menos doloroso que aquele que o inseriu — você precisa me parar. E eu não vou pegar leve com você.

Levanta de novo a arma, e balançando-a num movimento circular, a lâmina é logo enterrada em minha cabeça, no que tudo se apaga, tal como antes.

III

O meu corpo podre ainda está no chão. As folhas de papel reduzidos a tênues superfícies de celulose. Próximo de mim (demasiado próximo de mim) está outra versão daquele mesmo cadáver — mas o que...

— Você precisa me parar — o meu estômago sequer dispõe de tempo para expelir tudo que estava guardado. Quando ouço a voz do meu pai, o machado acerta o meu pescoço, e o negrume volta a invadir meus olhos.

IV

— Não...!

— Você precisa — novamente, o machado me atinge. Um terceiro corpo.

V

...parar isso — tento virar o corpo, mas não consigo ser ágil o bastante. A lâmina acerta a minha cintura, no que tombo no chão sanguinolento — de uma vez por todas — Vicente, envolto de prazer, brande a arma novamente.

XX

Quando me precipito, levando meus braços à altura do rosto, em proteção cega, vejo que não estou no mesmo lugar. O alívio, no entanto, dura pouco, quando percebo que o local em que estou não me provém iluminação alguma.

Demora um pouco até localizá-lo por inteiro, mas se trata da biblioteca de Sempiternum, só que fechada, quando todo o colégio está dormindo... eu nunca teria parado para pensar como esse lugar seria nesses momentos. Triste, velho, vazio... enorme.

As estantes de livros são titãs pétreos, melancólicos e enfileirados. As escadas são como guerreiros raquíticos descansando eternamente, e os meus passos, lentos e ecoantes, são os pingares das estalagmites de uma caverna grotesca e funda.

Estou quase tranquilizado por esse ambiente, quando ouço um som que se difere. Um chiado. Interrupção de sinal. Nada consigo fazer senão seguir o som. Não o queria, mas meus pés são magnetizados pelo barulho incessante, que a cada passo fica mais intenso... até que eu vejo o primeiro foco de luz, e seguir o som não é mais necessário.

Percebo que as estantes formam uma espiral, antitético à verdadeira disposição das estantes da biblioteca; no centro desta forma, jaz uma pequena escrivaninha junto a uma cadeira, envolta por cordas.

Eu sei o que você fez aí, disposto nessa escrivaninha, um laptop. É de lá que vem o ruído. Se eu fosse Jeong, com certeza faria um rápido diagnóstico do porquê de um barulho tão intenso..., mas eu só consigo ser guiado pela dúvida — não tarda eu esteja sentado de frente para o computador. Velozmente, o barulho cessa, e por conta própria, um vídeo é reproduzido naquela tela fina.

Eu engulo seco; parte porque o vídeo é muito familiar, parte porque as cordas começam a subir nos meus pés, me amarrando contra a cadeira, tornando-me inábil a qualquer outra coisa que não olhar para a tela.

Não há cores aqui. Também não há muita distinção de detalhes, sendo a imagem repleta de pequenas obstruções e cortes. O que se vê é o pátio de um colégio, que eu não consigo dizer se pertence à Sempiternum ou Resistência, tendo em vista a ambiguidade da imagem. Enfim, o pátio está lotado de alunos usando capas de chuva, de frente para um palanque, onde jaz um jovem cujo rosto não é possível ver. Ele está cercado por homens usando traje militar e armas de fogo.

O homem do rosto invisível discursa algo, enquanto outros três homens aparecem no meio da multidão, dessa vez, trazendo um jovem franzino, que lentamente sobe o palanque. A palavra é passada para ele, e não é preciso de muitos detalhes para saber que se trata de mim. Eu, em cima de um palanque, todos esperando que eu fale.

Em nenhuma dimensão paralela isso seria possível.

Não estou usando capa de chuva, e meus cabelos molhados cobrem os meus olhos. Por alguma razão, uma raiva me acomete, aqui, assistindo o filme, e conforme meus nervos se agitam aqui dentro, algo se altera também no vídeo. Um flash de luz toma todo o quadro, e quando ele evanesce, vejo as pequenas cabeças dos alunos se agitarem, no que os militares tentam a todo custo tranquilizar a multidão, mas falham miseravelmente em suas tarefas.

Um protesto.

O pequeno Vince da tela do computador possui asas de fogo, e muito embora não voe, a superfície dessas asas repelem as balas com maestria.

Isso não é possível de se ver em vídeo. Eu só... eu só me lembro. Merda. Eu me lembro.

Chegou a tua hora...

Virando minha cabeça com dificuldade, os fios de cabelo grudados na têmpora, vejo que em meio a escuridão onde a luz não atinge, está a focinheira do Lobo. Não... elas são muitas. Uma imensa alcateia está ao meu redor, eles se aproximam, num ataque coletivo visceral.

Um deles, agarra o laptop, e o arremessa contra a escuridão. A lâmpada cai. Nada sinto senão as criaturas me mordendo, golpeando, arranhando... eles se vingam, da melhor forma possível, tomando o meu corpo.

O meu corpo que não pode morrer tão cedo.

— Vocês são — digo entre ataque e outro — medíocres – um arranhão mais incisivo consegue concluir o trabalho de arrancar o meu olho fora — cometendo o mesmo erro.

Pilares de fogo surgem do meu corpo, perfurando os Lobos um por um. O ataque dos caninos conseguiu terminar de destruir as cordas que me prendiam. O cheiro de carne putrefata fica evidente quando eles evaporam... e entre a fumaça morta que eles exalam que todas as luzes se acendem.

Me levanto. O corpo, uma ruína, cujos pilares ainda resistem e se prontificam para partir. Com as chamas que envolvem os livros guiando meu caminho, vou à procura de onde está meu pai.

XV

Estou no segundo andar do casarão. Em cima da escada, eu consigo ver meu pai, matando, talvez, o vigésimo Vince, que cai por um buraco no telhado, negro, hipnótico, vazio... sim, sei como é impossível imaginar o vazio. Contudo, lá está ele, implacável, se aproximando de mim. O casarão está desaparecendo, assim como todas as minhas certezas.

Todas as memórias. Todo o progresso.

Aos tropeços, desço da escada, ficando mais próximo do monte de cadáveres que se formou no centro do casarão. O Vicente primogênito conta um por um, conforme eles caem.

— Por que está fazendo isso?

Ele sorri, sem cessar sua tarefa.

— O que eu poderia fazer em meu tempo livre, senão matar cada versão sua?

— Eu não tenho tempo pra isso... quero sair daqui.

— Que pena — vejo a aproximação do meu pai sem recuar. Meus dedos sediando as chamas — eu também quero sair de dentro da sua mente. Infelizmente, você nunca deixou que isso acontecesse — ele olha para as minhas mãos, achando que está prevendo meus movimentos, no entanto, quando pensa em me atingir com o machado, algo agarra sua cintura.

Meus cadáveres estão se levantando, um a um.

— Você nunca matou nenhuma parte de mim. Pelo contrário, pai. Eu nunca estive tão vivo.

Seu sorriso se desfaz gradativamente, enquanto ele vê várias versões de seu filho o cercarem, com as mãos em chamas, prontas para carboniza-lo.

— Não... você não sabe o que está acontecendo aqui! Precisa de uma resposta...

— E que resposta você poderia me dar? — Sussurro: —  você está morto.

O vazio já toma as paredes, numa tarefa de suma obliteração. Enquanto isso ocorre, vinte e um Vicentes Filhos bombardeiam o seu pai com bolas de fogo, invisibilizando todo o local com uma cortina de fumaça. Ofegantes, os demais garotos caem, cansados.

...mas meu pai ainda está de pé, rindo.

— Eu estou morto?!

Numa gestualidade confusa e complexa, seu corpo começa a produzir chamas. Chamas azuis. Ele se aproxima de corpo remanescente no chão, que derrete ao ter contato com o fogo.

Merda.

— Isso não é familiar para você...?!

Mais um filho derrete. Merda.

— Você perdendo para mim. Sempre. Apanhando.

Mais um.

— Sempre...

Corro. Não só do meu pai, mas do vazio que rapidamente acomete todo o casarão. Quando estou próximo da porta, ele salta sobre mim, no que sinto minhas costas amolecerem e meus nervos gritarem de dor.

— Você já sonhou outras vezes — ele provoca, às gargalhadas — e sabe que não pode fugir. Não pode.

— Não... dessa vez é diferente.

— Por que seria? Olhe só para você — ele esmurra o meu rosto, os punhos cobertos dessas chamas azuis — está ruindo.

— Eu... eu estou...

— Cale-se! — Mais um murro. Sinto os meus pés penderem no vazio, enquanto as mobílias caem no infinito.

— A minha mente...

— Chega — meu pai me agarra pelos cabelos numa facilidade imensa, no que eu vejo a sua pele toda queimada graças as bolas de fogo de outrora. É impossível que ele não sinta um pingo de dor. Impossível!

Como que ameaçando seu próprio filho, pendura o meu corpo cansado sobre o vazio. Cada célula minha está indo embora... eu consigo perceber.

— Se você me deixar cair — digo, engasgado com o sangue em minha boca — você também vai.

— Você não me engana — muito embora sua voz esteja trêmula — você não poderia se importar menos com a morte.

— Sim. Mas eu não sou você. Eu sei que você ainda quer existir... eu sei...

— Não, não existe nada aqui que você saiba! Só existe dúvida! Dúvida! Olhe esse vazio... olhe como tudo está cedendo aos seus pés! Essa é a prova cabal!

Sua voz está diferente. Talvez essa seja a minha mente, perdendo o juízo... a sanidade.

— Eu... eu estou ficando louco? É assim que funciona? É esse o colapso de que tanto falavam?

— Apenas olhe para baixo.

Não consigo ver nada além de... nada. Não, espere. Não só os meus pés estão pendendo no Vazio... os do meu pai também.

Não. Ele... isto não é o meu pai.

A criatura que antes era o mau pai redireciona a minha cabeça em sua direção. Asas de inseto impedem que nós caíamos, muito embora tudo ao nosso redor já não exista mais.

— Bamphlech.

— É deplorável te encontrar nesse estado, pequeno mago.

Ele não está usando a típica roupa de espião. Seu corpo está nu... o seu abjeto corpo de inseto, com um esqueleto da cor do bronze exposto, e seus órgãos cobertos por uma substância acinzentada grotesca, e seus dedos como pinças afiadas. Seus vários olhos amarelados, todos eles fitam os meus.

Essa criatura hedionda é a única coisa que existe em minha mente. Ela e eu.

— Por que não me solta de uma vez?

Ele sorri, revelando dentes afiados que mais lembram agulhas.

— Eu demorei demais para conseguir esse momento. É hora de saboreá-lo...

— Não seja ridículo. Um general var’croz que conseguiu conquistar o mundo não deveria ter essa mentalidade.

Bamphlech ri, um som horrível.

— Você tem razão. Adeus, pequeno mago — e por fim, ele me solta.

XVI

É estranhamente deleitosa a sensação de cair no vazio. A queda, depois de alguns segundos, torna-se confortável... principalmente aliada a sensação de que ela será eterna.

Talvez... seja o mais próximo de não existir.

Talvez... meu fim seja esse mesmo.

Talvez... seja hora da aceitação.

A queda cabal; derradeira.

...

— Vince! Isso não é real!

Não. Não.

— Isso não é real! Ele está te testando...

Jeong. Ele não pode estar aqui... eu não poderia ouvi-lo. Não. Eu já tinha aceito...

— Saia daí! Saia... daí!

— Eu já aceitei! Eu não posso sair! Eu já estou obliterado... eu... — minha voz enfraquece quando vejo que ela ressoa apenas dentro da minha cabeça. Por mais que eu grite, nada sai de minhas cordas vocais... é claro, o Vazio.

Minhas lágrimas são glóbulos de água e sal flutuando na escuridão. Basta a voz de Jeong surgir em minha mente que a queda se torna algo insuportável. Minhas costas doem... cada parte do meu corpo queima... queima... queima!

Os músculos das minhas costas se movem com dificuldade; as pernas debatem-se no ar, como que submerso. Asas de fogo surgem atrás de mim, e batem uma vez, dando-me algo como estabilidade. Faço com que batam mais uma vez, apenas pelo prazer dessa sensação.

Não vai ser dessa vez que vão se livrar de mim, digo para mim mesmo, rasgando a escuridão conforme disparo na direção oposta à que caí; não, hoje não.

...

Conforme avanço, algo parecido com um ponto luminoso no horizonte acima surge. Isso me alivia, pois não me sinto mais voando em vão. Não, pelo contrário: eu persisto. Eu persisto. Eu persisto...

XVII

Respiro fundo. Uma, duas vezes. Respirar fundo é um deleite que me permito várias e várias vezes. Eu caio de costas no chão, fitando as estrelas; e claro, o globo de luz que ilumina a mim e Jeong.

Por trás de suas lentes, os seus olhos estão úmidos, aturdidos, quase que desesperançosos. Mas eles são pressionados com um sorriso largo quando eu abro os meus olhos, e rio fracamente.

— Você está bem...? – Meu colega de quarto pergunta, num tom quase que inaudível.

— Nunca estive melhor – replico, ofegante. Luana e Manibus, logo ao meu norte, não estão menos ofegantes. Estiveram lutando por quanto tempo? Eu não posso saber. Não posso confiar em minha mente. Não mais.

Bernardo Manibus sorri, um sorriso contrariado, mas ainda um sorriso; uma Luana exausta cai de joelhos, as lágrimas de preocupação e alívio esvaindo de uma só vez.

— Bom trabalho, Vince — reconhece o professor — acaba de dar um grande passo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigado pela leitura até aqui. Arrivederci!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.