Foram mais dois dias na estrada até que o Viva La Vida se instalasse na nova cidade. Como de costume, eles chegaram no início da semana e todos trabalhavam duro para que no fim de semana o circo pudesse fazer sua estreia.

Era sexta de manhã e os artistas estavam no picadeiro ensaiando para a estreia, que seria naquela noite. Hisoka também treinava na tenda que outrora pertencia ao David, afinal, um mágico não pode preparar seus truques na frente de todos. No dia anterior, o mágico mirim e sua assistente Scarlet haviam combinado de ensaiar juntos, porém Hisoka já estava esperando por ela há mais de uma hora e então decidiu procura-la.

Ele a procurou onde Scarlet dormia com outras mulheres, nos arredores do circo, também perguntou aos outros artistas porém ninguém a via desde a noite anterior. Com esse problema para resolver, Hisoka foi até o Bogus.

— Senhor – Hisoka chamou educadamente o dono do circo, que fiscalizava a montagem do trapézio naquele momento.

— Agora não, tô ocupado – respondeu o homem.

— A Scalet sumiu, como vou me apresentar essa noite sem ela?

Bogus parou e olhou para o menino.

— Já procurou pelo circo?

— Em todo os lugares.

— Já perguntou pros outros, alguém deve ter visto ela.

— Ninguém a viu desde ontem.

— Hum – o homem coçou a cabeça – vou mandar alguém procurar mais atentamente. Enquanto isso ensaie sozinho.

— Posso dar uma sugestão?

— Fala.

— Eu posso treinar com a Sammy?

— Aquela garota que só serve pra ser burro de carga?

— É só pra me ajudar enquanto a Scarlet não volta.

— Está bem, faça como quiser.

Hisoka não gostou de ouvir a sua amiga ser chamada de burro de carga, mas ele era muito paciente apesar da pouca idade e sabia que para atingir seus objetivos precisava disfarçar sua indignação temporariamente. Enfim ele saiu para procurar pela Sammy e a encontrou carregando muitas bolsas de compras junto com a senhora Towanga.

— Samy! – Hisoka a chamou.

— Oi Hisoka! Hoje é a estreia, por que não tá ensaiando?

— Eu preciso de uma assistente e a Scarlet não apareceu, treina comigo?

— Claro que não! – Towanga o interrompeu – hoje tá todo mundo ocupado e eu só tenho ela pra me ajudar.

— Poxa, o Bogus vai ficar muito chateado se tiver que cancelar a minha apresentação por falta de assistente...

Towanga sabia muito bem que o Bogus tinha muita esperança de que o número do Hisoka pudesse se tornar o carro chefe do circo e levar o Viva La Vida ao nível dos maiores circos do mundo. A mulher não acreditava que era pra tanto, mas certamente não queria despertar a ira do chefe

— Tá bom Samy, pode ir com ele.

As duas crianças saíram correndo, muito contentes.

Naquela noite, o circo fez o seu primeiro espetáculo naquela cidade. O número do Hisoka foi muito bem recebido pelo público e a Sammy, mesmo nervosa, havia sido bem instruída pelo amigo e fez o papel de assistente do mágico com perfeição.

O Viva La Vida ficou algumas semanas na cidade e como a Scarlet não apareceu mais, a Sammy fez todas as apresentações junto ao Hisoka. Após a última apresentação, Bogus chamou as duas crianças para conversar.

— Quero dizer que o público adorou um casal de crianças em um número de mágica. Samy – ele disse sorrindo – na próxima cidade você já será a assistente oficial do Hisoka.

— Mas e a Scarlet? – a menina perguntou.

— Já procuramos por toda a parte e nem mesmo a polícia sabe do paradeiro dela. Ela era muito ligada ao David e acho que ela surtou depois que ele morreu, deve ter sumido louca por esse mundo.

As crianças apenas concordaram, e os dois estavam certos de que a partir desse momento formariam uma dupla inseparável.

*****

Sete anos se passaram e a vida seguiu muito bem para a maioria. O Viva La Vida cresceu bastante, saindo do status de um circo caindo aos pedaços para um dos mais famosos daquele país. Conforme esperado pelo chefe Bogus, o número do Hisoka se tornou a principal atração do circo e agora, aos quatorze anos de idade, não dá mais para chamá-lo de mágico mirim. Todavia ele desenvolveu truques cada vez mais elaborados e assim, conseguiu manter o interesse do público. Sammy, agora com dezesseis anos, continua sendo sua assistente e atualmente, também sua namorada.

É claro que mudanças ocorreram. As crianças cresceram e algumas delas se tornaram importantes atrações e também houveram contratações de bons artistas vindos de circos menores buscando condições melhores no Viva La Vida. Lamentavelmente, alguns dos antigos membros acabaram deixando a trupe por não terem se adaptado ao novo padrão de qualidade, sem contar que alguns desapareceram misteriosamente.

*****

O Viva La Vida já estava há três em meses em Very Longe Beach, uma badalada cidade turística, e mesmo após tanto tempo na mesma cidade, as arquibancadas permaneciam lotadas.

Era mais uma noite de espetáculo e Hisoka estava atrás das cortinas, esperando sua vez de entrar no picadeiro. Andy, um jovem loiro e com cabelos loiros abaixo dos ombros, atualmente com dezessete anos de idade e que substituiu o antigo domador, desaparecido há um ano, terminou sua apresentação e foi falar como o mágico.

— Está ouvindo? – Andy apontou na direção da plateia – são os aplausos, hoje eu consegui domar até gatos, duvido que você vai superar isso com seus truquezinhos de cartas.

Hisoka não respondeu à provocação do domador. Desde que Andy se tornou o domador oficial do circo que ele tenta tomar o posto de atração mais popular do Viva La Vida, porém o mágico nunca demonstrou qualquer interesse nessa disputa.

— Vamos amor, é nossa vez!

Sammy segurou a mão do namorado e os dois entraram juntos no picadeiro. Os dois formavam um belo casal, Sammy, outrora considerada uma menina feia e sem talento, se tornou uma jovem morena clara com longos cabelos compridos, nada de “parar o trânsito” ao vestir o body brilhante e apertado que compunha seu uniforme, mas possuía uma beleza discreta que agrada a muitos. Já o Hisoka arrancava suspiros da porção feminina da plateia.

Ao fim da apresentação, Hisoka recebeu muito mais aplausos do que Andy, o que deixou o domador visivelmente irritado.

Uma semana depois

Era uma ensolarada tarde de domingo e Hisoka estava no seu trailer ensaiando alguns truques quando Sammy entrou.

— Oi amor! – ela chegou alegremente.

— Oi – Hisoka respondeu sem ao menos olhar para a garota.

— Ensaiando? Você já ensaiou a semana toda, não pode relaxar um pouco antes da apresentação dessa noite?

— Estou aprimorando o número em que eu escapo do tanque d’água.

— Número, trabalho você só pensa nisso? Nós nunca saímos pra nos divertir, você não me dá atenção, parece que gosta mais da mágica do que de mim.

— Se quiser me ajudar no ensaio seja bem vinda, mas se veio aqui apenas jogar conversa fora vá fazer isso em outro lugar.

A garota saiu correndo com os olhos cheios de lágrimas devido à falta de sensibilidade do namorado.

Naquela noite o casal Hisoka-Sammy se apresentou e apesar do clima pesado entre os dois, eles se mostraram muito profissionais e não deixaram que isso atrapalhasse o espetáculo. Ao término, a garota se retirou sem ao menos falar com ele.

Já tarde da noite, Hisoka estava no seu trailer sem conseguir dormir. Ficou pensando que Sammy, ainda criança, foi a primeira pessoa a aconselhá-lo a se tornar um bom artista para ter uma boa vida no circo. Ela foi uma boa companheira e o mágico deu um pequeno sorriso ao lembrar de quando, meses antes, ela o pediu em namoro e o beijou (não necessariamente nesta ordem), e como ele aceitou mesmo sem saber direito o que era isso até então, mas ela o ensinou muito bem como essas coisas funcionam.

Sammy era a terceira coisa que Hisoka mais gostava, ficando atrás apenas de matar e de praticar ilusionismo. Um terceiro lugar no coração de um assassino sem apego a seres humanos era uma boa posição e pensando nisso, ele foi procurar por ela, não para se desculpar, mas para deixar claro o quanto era dedicado ao seu trabalho e quem sabe, estabelecer horários para dar a atenção que a garota pedia.

Hisoka foi ao trailer que a namorada dividia com outra garota e, percebendo que a porta estava aberta, entrou. A companheira da Sammy se encontrava deitada e deu um pulo quando viu Hisoka, ficando muito assustada.

— Que susto Hisoka!

— Desculpe incomodar a essa hora, mas você viu a Sammy?

— Eu eu... – a garota gaguejava – ela foi no banheiro.

— Obrigado, se a vir diga que eu quero falar com ela.

Por se tratar de acomodações temporárias, os banheiros eram coletivos e ficavam um tanto afastados dos dormitórios, de forma que a resposta da moça era coerente. Porém, a intuição de Hisoka dizia que ela estava mentindo, o que foi confirmado checou o banheiro e não constatou que Sammy não estava lá. Assim, ele começou a procura-la em outras partes do circo.

Já era tarde e todos estavam dormindo, o que de certa forma facilitou o trabalho de busca. Após meia hora procurando por toda parte sem encontra-la, Hisoka passou próximo ao trailler do Andy e viu que as luzes estavam apagadas, mas era possível ver que havia movimentação lá dentro.

A fim de verificar, afinal, era um dos poucos lugares aonde Hisoka ainda não tinha procurado pela Sammy, ele se aproximou e viu que o trailler estava balançando, além de ouvir alguns gemidos.

“Se esse idiota perdesse menos tempo transando com aquelas garotas vulgares que ficam gritando na hora das apresentações, certamente chegaria perto de ser melhor do que eu”, pensou.

Realmente existia um grupo de garotas que iam às apresentações apenas para “tietar” tanto o Andy quanto o Hisoka, porém o assassino nunca se interessou por qualquer uma delas.

Ele já estava indo embora quando ouviu alguém dizer:

“Vai devagar Andy, assim vai acabar acordando alguém...”

Hisoka percebeu claramente que era a voz da Sammy e mesmo tentando se convencer de que não ouviu aquilo, arrombou a porta do trailler com um chute e viu Andy e Sammy deitados na cama e totalmente nus.

— Hisoka! – a garota puxou um lençol para cobrir o corpo – eu... me... – ela gaguejava e repentinamente começou a chorar.

— Esquece Hisoka! Pelo menos aqui – Andy deu uma batida na cama – eu sou melhor do que você.

Um breve momento de silêncio dominou a cena até que Hisoka, que geralmente sorri pouco e discretamente, começou a gargalhar loucamente.