Vai sonhando escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 4
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

Tava pensando aqui: tá frio, é férias pra muita gente, quem sabe tenha alguém aí pra ler esse capítulo agora debaixo das cobertas?



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Shaun não sabia como aquilo havia começado, mas agora tinha uma garota loira, cerca de dez centímetros mais alta do que ele, entre suas pernas. Ela esfregava os dedos em seu cabelo raspado rente à cabeça, que normalmente era escondido pelo boné que perdera alguns segundos atrás, e o beijava como se isso fosse a melhor parte de sua semana. Emily. Ela nem mesmo era a mais bonita do grupo de amigas que havia conseguido passe para os bastidores do evento e acabado na festa privada que as bandas estavam dando no estacionamento dos ônibus. Ainda assim, estava ótimo para ele.

Aquilo nunca tinha acontecido antes de estar em uma banda, mesmo que ela fosse tão pequena e insignificante perto de várias outras daquele festival. Na escola, ele costumava ser o garoto com cara de criança que segurava a cabeça das meninas no ombro para que elas chorassem pelos outros meninos, com um mínimo de esperança de que elas vissem o quanto ele era legal e mais ou menos bonito, apesar de baixinho. Nunca dava certo.

Agora elas vinham atrás dele, ainda que não tanto quanto atrás de Peter ou Dave ou até mesmo Double, que quase tinha um carimbo com a inscrição “gay” no meio da testa, entre as abas dos chapéus e os olhos cor de avelã. Bom, não podia culpá-las. Double se vestia como a maioria dos garotos daquelas bandas que tocavam pop-rock, hardcore, emocore ou qualquer coisa parecida com isso. Vários deles gostavam mesmo de meninas e muitos outros juravam de pés juntos que sim. O fato dele rebolar um pouco demais atrás do teclado parecia apenas mais um atrativo para elas.

Mas o importante era que algumas delas iam atrás dele, agora. Ele, Shaun Lafontaine, o pequeno do grupo. Vinte e três centímetros atrás de Double e tantos outros atrás de Dave e Peter, que ele tinha até mesmo vergonha de contar. Nada havia mudado, sempre fora assim. O que mudara era que elas não se importavam mais. E agora Emily só conseguia beijar seu pescoço com facilidade porque ele havia se sentado discretamente sobre uma caixa de som desligada, que o deixava mais alto do que ela. Talvez o nome dela fosse Evelyn.

Double escutou um assobio alto ao colocar o último pé para fora do trailer. Olhou ao redor, tentando localizar a direção de onde vinha o chamado conhecido de Peter. Então caminhou até ele e Dave, sentados em alguns cases de bateria que ainda não haviam sido guardados em seus devidos ônibus. Percebia que, mesmo ali, no meio de muitos garotos que se diziam heterossexuais, conseguia fazer cabeças girarem enquanto desfilava dentro de suas calças skinny na cor creme.

Juntou-se aos dois no momento em que Peter olhou através do estacionamento e cutucou as costelas de Dave. Ele apontou ao longe com a cabeça quando teve atenção e deu mais uma mordida no hambúrguer, que sempre saía de pequenas churrasqueiras montadas entre os ônibus.

─ Que droga ir embora. Shaun tá começando a se acostumar tão bem.

A risada de Dave veio abafada no nariz e ele ainda deu um gole na cerveja que tomava. Cruzou o dedo médio sobre o indicador da mão esquerda e os mostrou no formato de uma figa para o colega de banda, repetindo como um mantra:

─ Nós temos um cartão, nós temos um cartão.

─ Nós temos um cartão. ─ O baterista fez o mesmo símbolo com a mão direita e a ergueu até bater os dedos cruzados nos dele. ─ Logo Shaun vai ter várias garotas pra ele.

─ Se você parar de roubar todas elas antes que elas cheguem nele.

Peter abafou um riso e fechou o punho para socar o ombro de Dave, mas não rebateu o comentário.

─ Eu vou pegar mais uma cerveja ─ anunciou apenas, fazendo com que Double fosse o primeiro a rir de como ele fugia do assunto.

Enquanto o via se afastar, sentou-se ao lado do baixista. O sentimento era o mesmo sempre que isso acontecia, principalmente agora que sabia que era sua última noite ali. Era assim desde que haviam se conhecido aos treze anos, quando se mudara para a cidade e a nova escola. Desde o primeiro dia, tinha vontade de segurar a mão dele e sorrir. Não havia conseguido fazer isso até os dezessete anos, quando Dave finalmente decidira admitir que também gostava de garotos. E Double não sabia por que ainda não estavam namorando firme, cinco anos depois.

A música alta, que competia com as bandas que se apresentavam em palcos ao longe, vinha de algum mp3 com playlist selecionada especialmente para a ocasião. Ele já havia decorado toda ela das últimas cidades em que haviam repetido festas do tipo até irem dormir exaustos. Ergueu uma das mãos e apertou devagar a nuca do melhor amigo, o único jeito que ainda podia chamá-lo.

A reação de Dave veio como se um mosquito perturbasse seu ouvido. Ele chacoalhou o braço ao lado do rosto e, com isso, colidiu os punhos para afastá-lo. Double parou com a mão aberta ainda entre os corpos, mas a confusão que lhe trazia um riso divertido para questionar o que fora aquilo desapareceu ao ver a expressão que o outro portava. Era séria nos olhos castanho-escuros e ríspida nos lábios crispados.

─ Não fica fazendo essas coisas aqui no meio, cara.

Double repousou a mão no colo e girou melhor o corpo de frente para ele. Arqueou as sobrancelhas e tombou o queixo para baixo, de modo a encarar o amigo com uma grande interrogação na testa, ou talvez no chapéu que agora passava a escondê-la ainda mais. Não podia dizer que estava surpreso com o pedido para que ficasse longe – não era a primeira vez e provavelmente não seria a última –, mas aquele vocativo soava errado aos seus ouvidos. Dave já havia voltado atrás em inúmeras ocasiões, alegando que não sabia se era aquilo que queria, que havia sido levado pelo calor do momento ou que precisava de um tempo para entender a si mesmo. Só nunca o havia chamado daquele jeito, como se fosse um dos amigos que se sentavam com ele para assistir a uma partida de hóquei na televisão. Dave nem tinha amigos assim. Ele odiava hóquei.

─ Cara? ─ A pergunta fez com que perdesse seus olhos quando ele os desviou para Peter e os garotos próximos da churrasqueira. E a resposta para ela viria resmungada em meio a um gole de cerveja.

─ Por favor, Double, não aqui.

─ Então vem comigo. ─ Sua voz voltou a ganhar um tom de riso, embora já soubesse que iriam cair na mesma história de sempre, ou a mesma história que ele vinha adorando repetir nos últimos oito meses: Peter e Shaun estavam presentes, Peter e Shaun estavam olhando, o que Peter e Shaun pensariam? As desculpas dele ao menos eram mais criativas antes de Peter e Shaun aparecerem.

─ Não, agora não. É a nossa última noite aqui.

─ Exatamente, é a nossa última noite aqui ─ Double reforçou o que ele dizia e ainda o observou, no aguardo de mais falsos pretextos. Dave mantinha os olhos à frente, distantes, bebendo vários goles da cerveja a fim de parecer distraído. Então não precisou de mais nada. Como uma piada sem graça, o silêncio em que se colocou permitiu que Tom Higgenson cantasse ao seu ouvido. I didn’t mean for this to go as far as it did. I didn’t mean to get so close and share what we did.¹ Riu sozinho e assentiu enquanto se levantava. ─ Mas você não quer desperdiçar comigo.

Dave ainda tentou chamá-lo quando caminhou para ir embora, mas até o tom que ele usava confirmava que era aquilo mesmo e que ele apenas não queria que ficasse chateado. Double mal sabia por que ainda ficava, por que ainda não havia criado anticorpos para aquela doença que Dave sempre lhe trazia. Foi direto para o trailer, sem esperar nem por um segundo que ele fosse atrás. E ele realmente não foi.

Quando conseguiu tirar os tênis e se enfiar em seu beliche fechado, como pouco gostava de fazer, A Lonely September ainda soava alto em seus ouvidos. Nem mesmo tirar o chapéu para colocar o travesseiro sobre a orelha fazia com que ela emudecesse, porque sabia todas as palavras daquela música do Plain White T’s. Apertou os olhos para que ela sumisse da cabeça, mas acabou por acompanhá-la com sussurros:

I know it’s not the smartest thing to do, we just can’t seem to get it right. But what I wouldn’t give to have one more chance tonight?²

A música foi cortada em seguida. Enquanto as caixas de som se preparavam para o início da faixa seguinte, um grito ao lado de fora, que ele jamais conseguiria reconhecer de quem vinha, preencheu o vazio do trailer:

─ Essa música é um pé no saco!

O estranho conseguiu fazê-lo rir. Com isso, apertou um pouco mais o travesseiro no rosto para enxugar os olhos úmidos. Ela era mesmo um pé no saco. Pelo menos ali, agora.

Duas horas mais tarde, quando já estava exausto de não fazer nada e apenas odiar Dave dentro da própria cabeça, prestes a adormecer, a cortina de seu beliche foi aberta. Estava de costas para ela e não precisou se virar para ver quem a abria. Conhecia aquele cheiro de longe e também o toque que sentiu no ombro. Usou uma das mãos para empurrar a dele, então um resmungo baixo para reclamar da agressão veio do corredor, junto com o motivo que levara o amigo até ali:

─ O cara da Pryor Records tá aqui fora.

─ Dane-se o cara da Pryor Records!

O ambiente voltou a ficar em silêncio, em contraste com as vozes do lado de fora, que eram cada vez mais altas, assim como a música. Elas lhe diziam que aquilo estava errado, que aquele não era o lugar em que deveria estar na última noite de Warped Tour. Sabia que não devia deixar que Dave o colocasse lá, que Dave tomasse aquela noite dele enquanto ele continuava lá fora, aproveitando a festa. Mas Double já não tinha a menor vontade de se levantar e se juntar a ela.

Ao que os minutos se passavam e ele escutava a respiração às suas costas, sabia que Dave não tinha ido embora. Desejou que ele parasse de observá-lo deitado, que subisse e viesse pedir desculpas, que mudasse de ideia e quisesse ficar consigo. Mas, quando ele voltou a falar, o murmúrio veio junto com o som da cortina nos trilhos de metal. Era claro que Dave respeitava o ódio que sentia por ele agora, mas não estava um pingo arrependido da conversa de mais cedo. E isso era ainda pior.

─ Vou dizer que você tá bêbado e veio dormir.

 

¹ Eu não queria que isso chegasse tão longe quanto chegou. Não queria ficar tão próximo e dividir o que dividimos.

² Eu sei que não é a coisa mais inteligente a fazer, parece que nós não conseguimos acertar. Mas o que eu não daria para ter mais uma chance hoje?


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Notas finais do capítulo

Ainda não decidi quantos capítulos vou postar. Me avisem se estiverem interessados, por favor, pra eu ir decidindo até onde ir. :)
Mas os links pro livro e o e-book já ficam aqui pra quem quiser:
http://bit.ly/vaisonhandoloja
http://bit.ly/vaisonhandoebook

Beijos!



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