Vai sonhando escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

É sexta-feira à noite e o mês do Orgulho LGBT tá acabando. Então acho que é uma boa hora pra mais um capítulo, não?



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─ Você precisava ter visto a cara do almofadinha quando Double jogou café em cima dele!

─ Eu não joguei café em cima dele. Ele jogou em mim e você gastou o nosso dinheiro comprando outro copo pra ele.

Shaun olhou para Peter, sentado do outro lado da pequena mesa que tinham no trailer. Chacoalhou a cabeça coberta por um boné preto, indicando que não era para que ele acreditasse na versão de Double, ainda que imaginasse que nem mesmo precisasse pedir. Todos sabiam a verdade.

O baterista era o único deles que já havia ganhado direito a um banho depois do show. Todos haviam concordado, desde o primeiro dia, que aquilo era o mais justo, principalmente para que seu cheiro de suor não se espalhasse pela área comum do trailer.

Agora esperavam que Dave vagasse o banheiro para que pudessem se arrumar para a última noite da Warped Tour 2005— ao menos a última em que estariam nela. Não haviam sido contratados para mais cidades e não tinham dinheiro suficiente para continuar a turnê junto com as outras bandas apenas para aproveitar as festas dos bastidores com os novos amigos que haviam feito.

─ Por que tá quieto assim? ─ Shaun voltou a falar, com a costura do boné fazendo coçar a testa salgada de suor. Fazia anos que conhecia Peter Boyd para saber que aquele silêncio não era comum.

─ Só um minuto, tá bom? Dave precisa ouvir também.

O guitarrista torceu os lábios em uma careta curiosa, mas os pensamentos logo foram condicionados para uma disputa que começava sempre que o trinco do banheiro era destravado. Viu Double jogar as pernas para fora do sofá em que se deitara pelos últimos minutos, então deslizou para fora do banco a fim de correr na frente dele para o banho. Shaun sabia que o outro sempre poderia levantá-lo pela cintura e tirá-lo do caminho se estivesse vencendo a corrida, mas gostava de pensar que a briga seria mais justa do que isso. Ela nunca era.

─ Espera! ─ Peter ergueu as mãos para impedi-los de começar com a sessão diária de luta livre e esticou o pescoço na direção do banheiro para chamar Dave pelo nome.

O baixista se aproximou de toalha enrolada na cintura e cruzou os braços na frente do corpo. Double logo estava parado ao lado dele, estufando o peito, com os olhos bem fixos em Peter. Shaun baixou o queixo para esconder um sorriso. Também podia sentir o cheiro do sabonete de Dave dali de onde estava e se perguntava se Double realmente imaginava que evitar de olhar para o corpo molhado dele impediria que percebessem aquilo que já era mais do que óbvio.

O lugar ficou em silêncio até que Shaun se colocasse sobre os joelhos e se debruçasse sobre a mesa. Bateu com a ponta dos dedos na testa do baterista e, assim, empurrou-a para trás.

─ O que é? Diz logo.

─ O dono da Pryor Records. ─ Peter voltou a erguer a cabeça, agora com um sorriso mole no meio de um olhar de reprovação que Shaun conhecia. ─ Aquele que o Deryck do Sum 41 disse que estaria aqui. Ele veio falar comigo depois do show, enquanto eu desmontava a bateria, e tá interessado na gente ─ contou devagar, e Shaun imaginou que isso fosse mesmo necessário, porque demorou a assimilar as palavras e entender que aquilo já estava acontecendo após meros oito meses de trabalho. Trabalho duro, mas apenas oito meses e um EP gravado em um estúdio quase caseiro. Viu Peter colocar a mão no bolso e erguer um pequeno papel branco e preto entre dois dedos. ─ Eu ganhei um cartão!

─ Mentira! ─ Shaun foi o primeiro a gritar. Sentiu-se como uma cobra ao dar um bote para pegar o papel. Pousou os olhos sobre ele, relendo algumas vezes com uma necessidade tola de confirmar que era verdadeiro. ─ Chris Pryor, eu te amo! ─ gritou sozinho e colou o cartão na boca para beijá-lo com um som alto e exagerado.

Pelo canto dos olhos, viu que Double e Dave comemoravam à parte. Não era algo que o deixava surpreso. Ainda de corpo molhado, o baixista tirava o outro do chão em um abraço apertado, e a risada que vinha deles soava como um alívio ao seus ouvidos. Então, um segundo depois, o papel desapareceu de seus dedos, assim que Double foi devolvido no chão.

─ Me dá, eu não confio em você. Ligo assim que chegarmos em Vancouver.

Shaun acompanhou Dave com os olhos enquanto ele levava o cartão para guardar em sua mala no pequeno armário do trailer. Queria reclamar, mas achava justo. Ele e Double eram os vocalistas e, ainda que o contato tivesse sido feito por Peter, imaginava que um deles deveria ficar responsável por ligar e marcar a reunião. Na verdade, sabia quem deles realmente deveria fazer isso. Double sempre fora a cabeça de tudo, mas era claro que Dave gostava de acreditar que também tinha certa importância nas negociações e na logística da banda.

Ninguém reclamou, nem mesmo o próprio Double. Ele estava trêmulo demais para isso. Shaun pôde vê-lo com os olhos marejados enquanto ele se arrastava para o banheiro, talvez para chorar sozinho no banho. Os Virgin Boys eram novos e todos eles sabiam que sofrer assim chegava a ser injusto com tantas bandas antigas e boas que nunca pareciam ser descobertas, mas, se eles haviam sido aceitos na Warped Tour, acreditavam que tinham o direito de competir com elas. Shaun também sabia que aquela banda podia ser nova, mas que Double, principalmente Double entre todos eles, fazia música desde que se entendia por gente.

Esqueceu-se de ir lutar com ele para ser o próximo a se enfiar debaixo da ducha. Em vez disso, manteve os olhos fixos em Peter. Queria poder ler a mente dele agora. Lembrava-se de se sentar com ele no galho mais alto da árvore do colégio, alguns anos antes, e compor algumas das músicas que agora haviam melhorado e gravado em seu primeiro EP. O melhor amigo ergueu o braço sobre a mesa e apertou uma de suas mãos. Seus dedos tremeram contra os dele. O contato que devia lhe passar segurança só fez com que se sentisse ainda mais ansioso.

Com um gemido abafado, Peter então o soltou e devolveu a mão no bolso.

─ Aqui. ─ Colocou um pacote branco sobre a mesa e o deslizou até parar em sua frente. ─ Uma garota deixou pra você, hoje de manhã.

─ Giulia. ─ Shaun leu em voz alta, depois rasgou o papel com tanta pressa quanto sempre fizera ao ganhar presentes. Ele os adorava e não tinha a menor vergonha em dizer isso, mesmo depois de crescido. ─ Uau!

Puxou de dentro dele um cordão preto, no qual já conseguia ver um pingente, mas o trouxe na frente dos olhos para enxergar melhor. O topo de sua lista de prioridades tinha um nome muito específico desde quando era criança. Podia parar tudo o que estivesse fazendo e brincar por horas ao encontrar uma caixa de Lego. Agora poderia carregar no pescoço a imitação em prata de uma peça pequena e retangular, de dois pinos de encaixe. Para os mais apaixonados, como ele, aquilo tinha um nome – era um Brick 1x2. Colocou-o e percebeu que o elástico precisava se esticar para passar pela cabeça. Achou isso ótimo. Não teria necessidade de tirá-lo para dormir com medo de se enforcar, nem precisaria se preocupar com a hipótese de perdê-lo.

Foi até a câmera com a qual registravam os melhores momentos da turnê e a levou para que Peter fizesse isso para ele. Forçou um sorriso grande e infantil enquanto mostrava o colar para a foto, que postaria com um agradecimento no perfil da banda na rede social MySpace quando tivesse acesso à internet. Vinha vendo que as meninas na grade dos shows costumavam fazer barulhinhos fofos cada vez que passava por elas, como se realmente fosse uma criança. Todos na banda já tinham vindo lhe dizer a mesma coisa e ele apenas fingira discordar, mas continuava a dar a elas o que elas pareciam querer. Não saberia ser nada muito diferente disso, de qualquer forma.

O amigo girou o sentido da câmera em sua frente e Shaun soube que ele tiraria uma foto vertical. Subiu o elástico pela cabeça apenas até que ele desse a volta em sua testa, com o pingente pendurado no centro dela. Arregalou os olhos e criou um bico nos lábios, em uma expressão boba que arrancou risos do fotógrafo. Assim que escutou o som do obturador, mostrou os dentes ao franzir o nariz e grunhir um rosnado do fundo da garganta. De rosto enfiado na tela do outro lado, o corpo de Peter se chacoalhava em risos inaudíveis enquanto ele capturava cada uma das caretas.

Shaun andou até ele, escalou seu colo no banco da mesa e parou ajoelhado sobre suas pernas. Tirou a câmera de sua mão ao passo que escutou um resmungo próximo ao seu ouvido. Virou o rosto para Peter, a fim de descobrir sobre o que ele reclamava, ao mesmo tempo em que os braços dele vinham circular sua cintura. Assim ele impedia que seu corpo escorregasse para cair de mau jeito.

─ Você tá todo suado!

O guitarrista demorou os olhos no homem que reclamava. Observou-o enquanto ele tombava a cabeça para trás e a apoiava no banco, afastando-se de seu corpo do jeito que conseguia. Exceto pelas mãos. Ele as mantinha firmes em suas costas para protegê-lo de um tombo. Pensou por mais um tempo sobre a frescura de Peter com todos aqueles banhos que tomava o tempo todo. Então o pescoço de cor pálida dele se abriu como um convite em sua frente.

Shaun tirou o boné para libertar os curtos fios do cabelo, agora molhados de suor. Tombou a bochecha na pele do amigo e a esfregou em todo canto que pôde alcançar, com o pescoço cruzando com o dele algumas vezes e o cabelo roçando debaixo de seu queixo, de vez em quando chegando à sua orelha.

Peter soltou uma sequência de resmungos e colocou a mão em sua testa para afastá-lo, sem realmente lutar por isso. Ele apenas soltou sua cintura, e Shaun soube que ele não o ajudaria caso caísse de seu colo enquanto fazia aquilo. Era o tipo de coisa que o amigo considerava uma punição justa. Segurou-se nos ombros dele para evitar o acidente e continuou até ter certeza de que ele já estava empesteado com seu cheiro.

Saltou do banco apenas quando ouviu Double desocupar o banheiro. Correu para longe antes que Peter pudesse alcançá-lo para revidar de alguma forma, como se ele não houvesse tido tempo suficiente para fazer isso caso quisesse. Mas teve que esperar que ele se lavasse na pia antes de poder entrar no banho.


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Notas finais do capítulo

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