Faltavam quatro horas para o último show que fariam naquela turnê, quando o tecladista e o guitarrista dos Virgin Boys entraram em uma Starbucks. Na tarde anterior, enquanto dirigiam até o estacionamento dos ônibus do festival, haviam reparado que chegar a ela exigiria alguns minutos de caminhada, mas qualquer coisa seria melhor do que o café caseiro que Peter deixava, toda manhã, sobre a pia da cozinha. Agora tinham um curto espaço de tempo para conseguir comida e correr de volta aos bastidores para montar seus instrumentos no palco. Mal podiam ver a hora de conseguirem um contrato com uma gravadora e uma equipe que fizesse isso por eles.

O que aconteceu em seguida foi rápido demais. Double estava pronto para se desviar do homem parado de costas no meio do caminho, quando ele girou o corpo em sua direção. A batida do copo de papelão em seu peito fez com que a tampa plástica explodisse para cima junto com uma onda de café preto. Ofegou em agradecimento com a sensação de que o líquido que escorria por sua camiseta e braços não estava tão quente quanto poderia.

─ Double! ─ O chamado do colega de banda veio alto, mas, com o corpo ensopado e ainda paralisado pelo acidente, não conseguiu responder nada a ele. Conhecia a fama que tinha, mas não sabia explicar que, daquela única vez, não havia sido sua culpa.

─ Eu retorno em um minuto ─ o homem disse ao telefone. Ele usava roupas sociais e chacoalhava um dos pés dentro do sapato de couro, sobre o qual a bebida havia entornado.

─ Desculpa, eu sinto muito por isso. ─ Shaun continuou, ao que o desconhecido afastava o celular do ouvido, e espalmou as mãos na frente do peito para evitar o início de uma discussão. Então apressou-se a pegar o copo dele. ─ Eu fico com isso. Vou comprar outro pra você.

─ Não, tudo bem. ─ O homem de roupas sociais ameaçou contê-lo, mas ele já havia se afastado para a fila do caixa. Assim, o desconhecido deu um passo para o lado e pegou um punhado de guardanapos na mesa de condimentos. ─ Ele não precisa comprar nada pra mim, eu sinto muito. Tá quente? Eu te machuquei?

Double apenas observava com os olhos arregalados debaixo do chapéu cinza escuro, um dos incontáveis Fedoras de sua coleção. Seus braços permaneciam levemente erguidos, enquanto sentia a respiração se acalmar e as gotas de tom castanho escorrerem por seu corpo. Colocou as mãos por cima das toalhas de papel que ele encostava em sua barriga e chacoalhou a cabeça, ainda sem certeza de que conseguiria falar caso tentasse. Costumava estar do outro lado daquela situação. Os primeiros músculos que destravaram foram os dos ombros, depois os do pescoço. Só então conseguiu olhar para baixo e se enxugar do jeito que dava.

─ Tá tudo bem. Eu tenho um histórico. ─ Espiou Shaun, que mantinha os olhos grudados neles. Podia enxergar sua preocupação de que o homem de roupas engomadinhas encrencasse por causa do acidente logo no horário comercial.

Esperou ainda por um sinal de que o desconhecido o entendia, mas, quando voltou a olhá-lo, viu que ele apenas sorria. Ele tinha o rosto liso e os lábios grossos e rosados. No cabelo curto, os fios loiro-escuros de sua franja eram penteados para cima. Double conseguia encará-lo diretamente nos olhos verdes, o que lhe deu a entender que deviam ter a mesma altura. Não notou de início que passava a sorrir em retorno a ele, mas logo estava com os lábios puxados para o canto direito.

O olhar dele, então, escapou do seu e desceu para seu abdômen. A questão com olhares era que eles dificilmente podiam ser controlados, às vezes até mesmo pela única pessoa que teria a capacidade de fazer isso: aquela que estava olhando. Era por isso que Double havia aprendido uma coisa importante sobre eles após a puberdade; bom, antes disso, não costumava receber muitos. Eles se dividiam em apenas dois tipos: os olhares que queria receber e os olhares que não queria. Diferentes pessoas reagiam de diferentes maneiras para cada um desses tipos, e Double tinha a sua própria.

Entreabriu os lábios para respirar melhor ao acompanhar o caminho que os olhos esverdeados faziam em seu corpo. A falta de pressa deles dava-lhe a impressão de que conseguia senti-los como um toque. Observou o tecido molhado da camiseta preta, depois as calças apertadas e os tênis gastos. Era como se, deste modo, conseguisse cuidar de cada detalhe que permitia que ele olhasse. Por fim, voltou a erguer o rosto no instante em que ele fazia o mesmo. O calor que sentia nas bochechas já não era culpa do café quente.

─ Eu sinto muito por isso. Eu sou Christopher.

Double ergueu a mão para apertar a que ele lhe oferecia, mas a palavra que saltou de sua boca não foi a que costumava usar para se apresentar à maioria das pessoas. O apelido ficou tímido no fundo do peito enquanto respondia em voz baixa:

─ Calvin.

Pensou que fosse ficar ali para sempre, com a mão segurando a dele. A palma dela era áspera contra a sua. Ele tinha um sorriso que vinha dos olhos, que agora não desviavam dos seus. Quase se esqueceu de que não estavam sozinhos, mas quebrou o cumprimento com um puxão apressado quando a voz do amigo se fez ouvir esbaforida ali ao lado.

─ Seu café.

Double viu Christopher desviar a atenção para Shaun e esperou que ele o olhasse novamente após pegar o novo copo.

─ Obrigado.

Chacoalhando a cabeça, Shaun retornou à fila, mas Double ainda não estava preparado para sair dali. Observou Christopher enquanto ele mantinha aquele sorriso no rosto, erguia de leve as sobrancelhas para se despedir e se afastava até a porta. Logo ele estava fora de seu campo de visão e Double esperou até ouvir o clique da maçaneta atrás de suas costas. Enfim virou o rosto por cima do ombro para assistir-lhe ir, através do vidro. E sorriu para si mesmo ao ver que ele também lhe lançava um último olhar pelo lado de fora.