Vai sonhando escrita por Cínthia Zagatto


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Esta é a playlist da história, para quem quiser conhecer todas as músicas nostálgicas que vão estar por aqui: http://bit.ly/vaisonhandotrilha



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Double não precisava abrir os olhos para adivinhar onde acordava naquela manhã. O cheiro impregnado nos lençóis fazia isso por si só. A liberdade que tinha para se mover também lhe dedurava que já não havia ninguém junto com ele no apertado espaço que os colegas de banda gostavam de chamar de beliches. Catacumbas, cabines de tortura, nichos claustrofóbicos eram o que aquelas coisas eram. No entanto, pela primeira vez, sua reação imediata não foi jogar as cobertas para longe das pernas e correr para fora das cortinas em busca do corredor igualmente estreito, porém mais arejado. Tudo em que conseguia pensar enquanto encarava sua própria cama, a um metro acima dos olhos, era como havia se deixado adormecer ali embaixo.

Sabia como aquilo começara. Uma troca de mensagens com os celulares mudos, a fim de não incomodar os amigos que dormiam na parede oposta do trailer da turnê, fizera-o descer no meio da madrugada. Agora, instalado no dormitório errado e tateando em busca da única peça de roupa que costumava vestir durante a noite, não tinha um aparelho eletrônico que pudesse informá-lo do horário. Talvez todos ainda estivessem dormindo, ainda que o ambiente parecesse tomado por uma luz forte. Ela atravessava o tecido escuro, que assegurava um mínimo de privacidade durante seu sono, para avisar que já era o meio da manhã.

Enfiou os pés pela samba-canção branca, sem ter certeza se fazia isso do jeito certo ou se o tecido estava do avesso, e decidiu que precisava sair dali enquanto os arredores continuassem silenciosos. Com um pouco de sorte, teria fechado sua cabine na véspera e todos os outros já haveriam saído do trailer sem notar que dormira no lugar errado. Um. Dois. Três. Correr. Puxou o pano grosso, de coloração vinho, e o som dos arames deslizando pelo trilho foi seguido por outro igual a ele, vindo em sincronia do leito à sua frente.

Um par de olhos azuis pousou sobre os seus e o dono deles se manteve inerte. Enquanto Double tomava ar para ameaçar uma explicação, ou talvez apenas oxigenar o cérebro no intuito de pensar em algo inteligente a dizer, o outro garoto se levantou em silêncio e seguiu na direção do banheiro. Aquele era Shaun Lafontaine, o guitarrista dos Virgin Boys¹ e a pior pessoa com quem se poderia conviver pela manhã.

Apenas pela manhã, ou tudo não teria acontecido tão rápido nos últimos oito meses. Após o meio-dia, Shaun era uma das poucas pessoas com mais de dez anos de idade que mereciam uma mordida bem no meio da bochecha. Às sete da noite, ele era digno de ser pedido em casamento; nem precisava de tanto – Double já ficaria feliz apenas de poder pegá-lo no colo. E foi isso o que fez, exatamente nesse horário, quando se conheceram em um bar na Davie Street, a rua gay de Vancouver.

Ele parecia ser um garoto de três anos vestido pela mãe, com uma bermuda tão comprida que quase poderia ser uma calça larga e um boné com aba desalinhada da testa, enfiado até os olhos. Saltitava sem sair do lugar para não ocupar muito espaço no meio da multidão, que assistia à banda cover tocando em cima do palco de um palmo de altura. Então sua vozinha cantarolou no ritmo da canção em um esboço de provocação que não deveria atingir ninguém, já que o que dizia nunca chegaria aos ouvidos dos músicos:

─ O guitarrista errou o tom, o guitarrista errou o tom.

Ele tinha um amigo bem mais alto que ele ao seu lado, de pele muito branca contrastando com os cabelos castanho-escuros espetados. Esse segundo garoto soltou uma gargalhada fácil e tratou de abraçá-lo pelo pescoço de modo que era difícil de explicar, mas que parecia algo entre uma demonstração de afeto e um mata leão para que deixasse de ser implicante.

Double não se importava se era apenas implicância, até porque ele mesmo reconhecia que não era, apesar de seu instrumento de competência ser o teclado. Era uma faixa do The Academy Is... que vinha afastando seus pensamentos desde que começara. Alguém muito especial gostava de cantar para ele toda vez que o vocalista dizia: you kiss me like an overdramatic actor who’s starving for work, with one last shot to make it happen.² Esse alguém especial não estava lá agora porque também era um completo imbecil quando queria ser, mas ele o fizera decorar a música de trás para frente, de maneira que então sabia que o baixinho implicante estava certo.

─ Com licença. Você disse que toca guitarra?

A pergunta desencadeou uma conversa de vinte minutos sobre música enquanto deixavam o amigo dele na pista e se afastavam para o balcão de bebidas em busca de mais cerveja. Então Shaun o arrastara de volta ao homem que haviam largado para lá. Quando pararam na frente dele, Double foi agarrado pela cintura ao que o pequeno afundava a bochecha em seu peito, como se essa fosse a melhor forma de apresentá-lo ao amigo:

─ Peter! Peter! Encontramos uma banda!

E isso obrigou o tecladista a extravasar a vontade que teve de apertá-lo, erguendo-o pela cintura e o chacoalhando de um lado para outro, bem amassado em seus braços. No fim das contas, Peter era um baterista e Double levara aquele tal alguém especial para tocar baixo com eles. Dave.

Era certo que nenhum destes dois estava no trailer agora. Com o silêncio garantido e a cama de Peter vazia, Double soube que o único inimigo era o garoto que certamente enfiava a cabeça debaixo da água gelada da pia para terminar de despertar. Ainda assim, apressou-se para tornar a fechar o beliche em que acordara e escalar até o seu. Checou o celular que deixara conectado ao carregador e abriu as três mensagens que recebera enquanto dormia fora. Duas delas vinham da operadora de celular e uma, da mãe. A senhora Lechine perguntava quando aquela brincadeira doida de shows terminaria. Precisava instalar a porta que mandara fazer para o novo banheiro da piscina. Como se Double fosse de grande ajuda para trabalhos braçais.

Tinha pouco mais de um metro e oitenta de altura, com o corpo esguio adornado por coxas grossas, que combinavam muito bem com calças skinny apertadas. De resto, podia ser facilmente confundido com uma modelo de roupas femininas, com o abdômen seco, os ombros pequenos e braços finos. Escolheu ignorar a mensagem e ir atrás de roupas para aquele dia. Precisava de um banho, antes que alguém pudesse cheirar nele o que havia feito poucas horas atrás.

Shaun desocupou o banheiro e trocou de lugar com ele enquanto se espremiam para passar um pelo outro no corredor tomado pelas camas embutidas. Então, ao que o amigo baixinho, de um metro e sessenta de altura, afastava-se até os armários que guardavam suas malas, virou-se para dizer às costas dele:

─ Escuta. Sobre isso que você viu...

─ Eu acabei de acordar. ─ O comentário veio arranhado numa rouquidão matutina, mas foi o quanto o caçula da banda era assustador antes do meio-dia que o fez se calar para esperar pela continuação. ─ Não vi nada e, se não se importar, também prefiro não ouvir.

Double emudeceu e trombou com o batente durante a tentativa de fugir para sua ducha matinal, antes que o outro voltasse atrás naquela conclusão. Era uma resposta mais do que justa para ele.

¹ Garotos Virgens

² você me beija como um ator ultradramático que está sedento por trabalho, com uma última chance de consegui-lo.


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Notas finais do capítulo

Oioioi, "Vai sonhando" é meu segundo livro e aqui serão postados os primeiros capítulos para que vocês conheçam a história e decidam se se interessam por ela. Você pode encontrar todos os detalhes do lançamento e acompanhar as atualizações em https://www.facebook.com/livrosake/



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