Crescendo escrita por August Martinez


Capítulo 2
Capítulo 2




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"Volte o seu rosto sempre na direção do sol, e então, as sombras ficarão para trás."

 

 

Caminhava pelo primeiro andar, sem me preocupar com o meu real destino. As paredes revestidas de um tom de vermelho elegante me observavam durante todo o caminho, o vento chicoteava as velhas vidraças coloridas, e o silêncio atribuía um ar ainda mais morto para a escola. Caminhava lentamente sobre a longa carpete, tentando manter os meus passos o mais silenciosos possível. Havia acordado muito cedo, e os amplos corredores ainda estavam vazios, quase desertos. Era manhã de sábado, pelo que todos os alunos estavam aproveitando para dormir até tarde. Suspirei de alívio, pensando em como era agradável não ter que manter a compostura, e parecer calma, sorrindo para todos os alunos em um ato de aceitação infernal. Me dirigi para a primeira paragem do dia, o banheiro. Já conseguia sentir uma rotina se estabelecendo. A fraca luz esverdeada se acendeu com a minha entrada, e logo decidi aproveitar estar a sós, para tomar um banho. Os compartimentos revestidos de uma porcelana antiquadamente pálida não eram convidativos, porém, o tapete já amarelado que pisava ainda menos o era. Deixei a água quente correr livremente pelo meu corpo, deixando de lado qualquer réstia de frio de uma gélida manhã do Colorado. Sentia os meus músculos descontrair no meu corpo, e logo consegui relaxar, enquanto ouvia o som da água caindo na chão imaculado. Levantei o rosto, sentindo o vapor o acariciando. A minha mão massageava de leve o meu pescoço, que após uma primeira noite de habituação, estava dolorido e cansado. Cantarolando uma das antigas músicas das, ainda mais antigas cassetes de minha mãe, dei o banho por terminado, trazendo comigo uma das toalhas. O meu corpo estremecia de frio, assim como os meus lábios, ao entrar em contato com o ambiente frio matinal. Passei a mão em um dos espelhos, agora embaçados, e me olhei no espelho. Me olhei por inteira, em silêncio. Os meus cabelos curtos e molhados, o meu corpo pálido e sardento, e algumas curvas, provenientes de uma infância combatendo o excesso de peso. O meu corpo era agora considerado como magro, mas a minha cara redonda e abolachada, quase infantil, prevalecia exatamente a mesma. Os meus olhos verdes perscrutavam silenciosos o meu corpo encharcado, e me permiti divagar por alguns momentos.

A conversa da noite anterior com Vivian tinha sido um quanto estranha. Porém, teria oportunidade de falar com ela hoje, e pedir algumas explicações. O meu corpo estremecia ao pensar naquele assunto, e por mais que o tentasse convencer de que não havia essa necessidade, ele não me dava ouvidos. Estava alerta, estranhamente alerta. Olhava a minha imagem naquele espelho turvo e sujo, perguntando quem era a pessoa que ali via refletida. A minha cabeça latejava com perguntas sem resposta. Me sentia frustrada por saber que não havia razão para frustração. Foi apenas uma conversa, ultrapasse isso, dizia para mim mesma. Por outro lado, não conseguia parar de pensar em Jean-Pierre, ainda para mais depois daquele diálogo. A tonalidade alaranjada do seu cabelo não saía da minha cabeça, era como um fantasma, que me assombrava naquele nascer de sol. Ao pensar nisso, olhei pela pequena janela do banheiro, deixando o meus olhos sentirem o prazer de ver o manto laranja que se estendia pela montanha mais longínqua. O nascer do sol era de fato uma das mais belas coisas que já havia visto. Ele significava oportunidade. Trazia um novo dia, uma nova chance, uma nova tentativa. Sorri ao perceber que talvez estivesse ficando louca. Quem teria aquele tipo de pensamentos logo pela manhã?

Levei as mãos à cabeça, quando me apercebi de que havia esquecido de ligar a Miss Charlotte no dia anterior. Sequei o cabelo o mais rápido que consegui, me vestindo em seguida, e depois segui para o meu pequeno cubículo. O celular oferecido pela minha mãe no meu décimo sétimo aniversário estava sobre a pequena cómoda, peguei nele e disquei apressadamente o seu número, torcendo para que já estivesse acordada. Por sorte, a sua voz doce e protetora atendeu após alguns segundos.

—Bom dia, minha querida Elisabeth.- ouvir a sua serena voz, me transmitia paz. Sorri ao escutar o meu nome, ela parecia extremamente animada com a minha ligação.

—Bom dia, Miss Charlotte! Estava com medo de a acordar.

—Oh, minha querida jovem, nem ao sábado eu tenho um momento de descanso.- garantiu bastante divertida.- Mas, me diga minha filha, como estão correndo as coisas por aí?

—Estão ótimas...de verdade. Eu já fiz alguns amigos, eu espero...- a imagem dos simpáticos Drake e Sabrine pairaram na minha mente.- São todos muito gentis comigo.- talvez a última parte tenha sido um pouco exagerada e mentirosa, mas não me deti muito tempo sobre esse assunto.

—Mas que maravilha! Aposto que a esse ponto gostaria de poder ficar aí o curso completo, não é verdade?- ela parecia genuinamente feliz por mim. E de fato, era o meu sonho conseguir um curso completo de violino. Mas as poupanças da minha mãe não eram suficientes, por isso mesmo havia optado pelo curso mais curto.

—Sim...com certeza! Se bem que, apenas hoje será a minha primeira aula.- esclareci, tentando afastar o medo que sentia em relação a essa mesma.

—Tenho a certeza de que será fabulosa, minha querida. Mas espere, Elisabeth...aula a um sábado?- interrogou ela subitamente desconfiada.

—Ah, sim. Os cursos individuais são aos fins de semana, para dar a oportunidade aos estudantes fixos de cursarem música também, sem interferir com os estudos deles.

—Que magnifica ideia! E assim não vos deixam andar por aí, fazendo besteira...- o seu último comentário transparecia uma impressionante quantidade de preocupação. Eu sabia o quanto a deixava preocupada por estar longe, sem supervisão, depois de tudo o que havia acontecido. Mas aquela era a minha grande oportunidade de demonstrar que era capaz de cuidar de mim mesma.

—Bom, não o tencionava fazer de qualquer modo.- respondi demasiado rápido.- E por aí, como andam as coisas?

—Muito trabalho, meu doce. Muito trabalho.- resmungou entre suspiros. Conseguia ouvir as teclas do seu computador, pelo que assumi que já estava trabalhando tão cedo.

—Agora já tem menos uma paciente, deve se sentir mais leve.- ouvi o seu riso melodioso do outro lado da linha, em resposta ao meu comentário inesperado.

—E você acha mesmo que eu abandonei meus cuidados em relação a você? Eu estou sempre de olho em você, Elisabeth.- as suas últimas palavras pareciam trazer consigo um peso, que não consegui identificar. Não pareciam fruto de um mero jogo de palavras, ou expressão bastante comum. Mas sim como algo sério, para levar em conta.

—Eu sei, Miss Charlotte. Eu sei que se preocupa imenso.- garanti. Ouvi duas batidas na porta, e depois de a abrir, vi uma Sabrine sorridente.- Eu acho que preciso ir.

—Claro, falamos mais tarde. Não espero que ligue todos os dias, mas por favor, me mantenha informada, querida.

—Assim o farei.- garanti.- Tenha um bom dia, Miss Charlotte.

Vi Sabrine saltitar até à minha cama, se jogando em cima da mesma em seguida. Guardei o celular no bolso, e depois me sentei junto da pequena garota, que me olhava ansiosa.

—Bom dia, Sabrine. Como está?- perguntei.

—Ótima! Já você não deve poder dizer o mesmo...aula a um sábado?-perguntou incrédula. A olhei sem compreender como ela sabia sobre a minha aula.

—Espera aí...você...

—Você estava falando muito alto, Lis. Me desculpe.- ela parecia genuinamente preocupada com a possibilidade de ficar chateada com ela. Afinal de contas, quem nunca ouviu atrás das portas, mesmo que sem querer?

—Não tem problema, de verdade.

—Com quem estava falando?- quis saber, enquanto pegava em um dos meus poucos ursinhos de pelúcia. Tinha deixado a grande maioria deles em casa, trazendo apenas os meus favoritos.

—Com a minha mãe.- menti. Parecia que mentir estava se tornando algo bastante comum no meu quotidiano, mas eu não queria que ninguém soubesse que estava falando com a minha psiquiátra. O que iriam pensar de mim?

—Aquela é a sua mãe?- perguntou ela, apontando na direção de uma das muitas molduras que havia trazido comigo da Florida. Ali estava a minha foto favorita. Eu tinha cinco anos, tinha sido tirada na minha primeira viagem para a Disney. Eu e a minha mãe estávamos na frente do grande castelo em tons de rosa claro, sorrindo diretamente para mim. Sentia falta de sorrir daquela maneira.

—É, é ela sim.- respondi, sentindo o meu estômago se contorcendo. Desde que tudo aquilo começou, que a nossa relação só piorava. Estando cada vez mais fria e distante.

—Ela é muito bonita. Você se parece com ela.

—Não...eu não sou nada parecida com ela acredite...- essas palavras saíram da minha boca como uma flecha, com mágoa e tristeza. Sabrine me olhou por alguns segundos, e depois desviou o olhar para o ursinho que segurava junto do peito.

—Onde está Drake?- mudei de assunto.

—Ah, ele? Ele sempre aproveita os fins de semana para dormir até às quatro da tarde! Não se preocupa com ele! Mas então, está pronta para ir comer algo?

—Claro, vamos.- aceitei.

Descemos juntas para o primeiro andar, ignorando todos os olhares curiosos postos sobre mim. Os corredores já se encontravam lotados de alunos, e aquela escola nunca me havia parecido tão intimidadora como naquele momento. Algumas pessoas sussurravam entre si, outros me olhavam com um misto de curiosidade e superioridade. Sabrine estava alheia a tudo isso, continuava a tagarelar sobre tudo um pouco. Principalmente sobre como estava frio naquela manhã.
Quando chegamos no minúsculo refeitório não foi diferente. Ninguém parou de comer para me olhar, como aconteciam nos filmes, mas de alguma maneira eu sentia que estavam cientes da minha presença. Talvez fosse apenas mania da perseguição. Sabrine continuava a tagarelar alegremente, enquanto nos dirigíamos para escolher a nossa comida. Em cima do grande balcão circular havia uma grande variedade de comida. Não faltava por onde escolher. Desde o simples pão até ao elaborado bolo de chocolate, tudo parecia delicioso. Decidi pegar um suco de laranja e um pão com manteiga, e me dirigi para a única mesa vazia. Sabrine se sentou na minha frente, mordiscando o seu bolo e bebendo pequenos goles de café.

—Sinto que ainda não nos conhecemos muito bem. E visto que provavelmente iremos passar algum tempo juntas, penso ter direito a algumas perguntas...- engoli o suco que tinha na boca demasiado rápido, tossi algumas vezes, e depois respondi incerta:

—Hum, claro.

—De onde você vem?

—California. Mais precisamente de San Diego.- a minha mente se debatia para não entrar em pânico. Esperava a sua próxima pergunta, e torcia para que não fosse comprometedora.

—Você gosta de lá viver?

—Mas é claro...é onde está a minha família.- respondi calmamente, mesmo sabendo que ela se resumia à minha mãe.- Mas, e você, Sabrine?

—Eu sou de Washington, de uma localidade chamada Georgetown.

—Georgetown? Georgetown, A Georgetown do filme do Exorcista?- perguntei explodindo numa risada descontrolada. Ela me olhou séria e depois me acompanhou.

—Nossa! Porque é que todo o mundo fala desse maldito filme, sempre que digo onde nasci? Sim, é exatamente aí.

—Deve ser fantástico viver lá!- comentei irônica. Ela me jogou uma migalha de bolo, e depois pareceu refletir por alguns segundos sobre o que perguntar em seguida.

—Você tem irmãos?

—Não. Infelizmente não. E você?

—Três irmãs e um irmão.

—Nossa! Isso sim é uma casa cheia!- comentei, sentindo uma pontinha de inveja da minha amiga. Nunca soubera o que é uma família grande, ou uma feliz sequer.

—É, a nossa família sempre foi bem grande!- respondeu em voz baixa. Percebi um pouco de tristeza na sua voz, e desconfortável com o ambiente, decidi mudar de assunto.

—Você sabe porque estou aqui...o curso de violino...mas, e você?

—Aqui? Bom estou aqui a comer incrivelmente cedo, porque a minha querida colega de quarto Vivian ressona para caramba.- respondeu subitamente divertida.

—Espere...Vivian? Eu conheci ela a noite passada.

—Ah, é mesmo?- perguntou demonstrando pouco interesse.

—Mas você não respondeu à minha pergunta.- insisti.

—Os meus pais trabalham muito, para tentar sustentar a família inteira, e nunca estão em casa. Acontece que tinham que enviar a filha mais nova para algum sitio, visto que os mais velhos não estavam dispostos a cuidar de mim. E para além disso, é a minha avó que está pagando esse colégio. E menos uma boca para sustentar e dar de comer em casa, é sempre favorável.

—Entendo...- disse sincera. Dei um gole no meu suco, e depois desisti de comer. Aquela conversa estava me deixando sem fome.

—Mudando de assunto... Tem namorado?- perguntou me lançando um olhar provocativo.

—Não! E nem pretendo.- respondi rápidamente.- Garotos só trazem problemas...e não estou disposta a ter mais um.

—Hum, sei. Quantos anos você tem? Parece incrível, mas na noite passada eu e o Drake estávamos tentando adivinhar mas não chegamos a um consenso!

—Eu tenho 18 anos. E vocês?- perguntei logo de seguida.

—Eu tenho 17 e o Drake tem 19. Hey, por falar na noite anterior...o que deu em você para saír daquele jeito da biblioteca? Nem assistiu o filme com a gente!- lembrou triste.- Eu ia apresentar você para umas pessoas super legais!- pigarreei para limpar a garganta, tentando não pensar nas pessoas que ela considerava como sendo legais.

—Tenho a certeza de que haverá mais oportunidades.

—Não se passar a vida trancada naquele quarto.- reclamou, enquanto engolia mais um pedaço de bolo.- Mas o que aconteceu?

—Eu estava cansada...- ela não pareceu acreditar em mim, mas se limitou a comer mais um pedaço de bolo e encolher os ombros.- Como vocês se conheceram? Você e o Drake?

—Quando eu cheguei aqui eu não conhecia ninguém. Então decidi me inscrever no comitê de boas vindas para poder facilitar essa tarefa. Ele entrou um ano depois de mim, nos conhecemos mais ou menos como nós as duas.

—Isso é muito legal!- ela sorriu para mim, e depois pareceu ficar preocupada.

—A que horas começa a sua aula?

—Daqui a vinte minutos, melhor me apressar!

 Me despedi da pequena garota de óculos, e depois corri para pegar um caderno e algumas canetas do meu quarto. Aproveitando a vantagem de ter a sala de música no mesmo andar que o meu dormitório, decidi ir mais cedo e esperar lá. Os corredores já não estavam tão cheios, provavelmente já estariam todos no refeitório, ou até se divertindo no grande jardim do colégio. Suspirei, prometendo a mim mesma que iria fazer o mesmo mal a aula terminasse. Para minha surpresa não era a única adiantada. Lá estava Vivian na porta do salão de música. Por alguns segundos permaneci em silêncio. Uma parte da minha mente dizia que seria totalmente indelicado se questionar sobre como ela tocaria um instrumento, devido ao seu problema de visão. Logo afastei essas ideias, e a cumprimentei:

—Como está, Vivian?

—Elisabeth...- reconheceu ela a minha voz, abrindo um bonito sorriso em seguida.- Como vai?

—Bem e você?- perguntei, enquanto a ajudava a tirar o seu celular que entretando havia começado a tocar, de dentro da sua bolsa. Ela simplesmente pressionou o pequeno botão vermelho, ignorando a chamada por completo.- Você também está no curso de música, Vivian?
      —Sim, e fico muito feliz por conhecer alguém aqui.- disse entusiasmada, enquanto ajeitava os seus longos cabelos loiros. Fomos interrompidas pelo barulho de saltos altos, andando na nossa direção. Uma mulher perto da casa dos setenta anos estava se dirigindo para a porta do salão, e ignorando totalmente a nossa presença, abriu a mesma e entrou para o seu interior. Vivian não pareceu ligar a esse fato, passou o seu braço pelo meu, e nos encaminhámos para a primeira fileira de cadeiras. A senhora, que percebi ser a nossa professora, escrevia no quadro o seu nome. Trinity Bruce. O seu cabelo estava rigidamente preso atrás da sua cabeça, o que lhe atribuía uma expressão ainda menos amigável. Suspirei, retirando os materiais de dentro da minha mala. Mais alunos foram entrando no salão, tomando os seus lugares, na sua maíoria na parte de trás. Não contive um pequeno gemido surpreso e definitivamente irado, quando vi Jean-Pierre entrar pela porta. Os meus olhos triplicaram de tamanho devido ao espanto. O que fazia ele ali? A minha boca abriu e se fechou em seguida, desistindo da ideia de perguntar fosse o que fosse.
      —O meu nome é Trinity Bruce, e serei a vossa professora de música durante a vossa estadia no nosso colégio.- iniciou a professora, assim que viu todos os lugares preenchidos.- Como já devem ter percebido temos poucos alunos nessa sala, visto que maioria deles chegará apenas na segunda feira. Mesmo assim, fiquei sabendo que o número de alunos de música desse ano será muito inferior ao dos anos anteriores. O que quer dizer que eu irei puxar muito mais, e exigir muito mais, de cada um de vocês. Muitos pensam que música é apenas um hobby, uma parcela de diversão em suas vidas...mas se acham que isso vai ser moleza, podem pegar nas vossas coisas e sair imediatamente dessa sala. Eu serei a vossa melhor amiga durante essa jornada, se vocês levarem isso a sério. Porque a partir do momento em que o deixarem de fazer, vocês irão perder toda a minha tolerância.- os alunos se entreolharam, e eu não consegui sequer ter reação perante aquele discurso. Os meus olhos saltitavam pela sala procurando Jean-Pierre, que olhava para a cena mais calmo que o normal.
        —Como podem ver temos vários materiais ao vosso dispor nesse salão.- continuou ela, apontando para todos os instrumentos ao nosso redor.- Se sintam à vontade para os usarem, tendo a liberdade para aqui praticarem sempre que quiserem. Porém, se alguma coisa aparecer danificada, será transmitido imediatamente aos vossos responsáveis e pais. Estamos entendidos, quanto a isso?- todos assentiram.- Continuando, não pensem que por essa ser apenas uma aula de apresentação, que não irão trabalhar. Para quem está aqui pelo primeiro ano, saibam que mesmo que este seja um curso extra curricular, também serão avaliados. Ninguém levará para casa um curso concluído só por ouvirem as minhas longas palestras ou por pena. Estão aqui para aprender, evoluír. E por isso mesmo, saibam que terão vários trabalhos para realizar, sem contar com a apresentacão final de curso.

—Por falar nisso, podem começar a decidir o vosso par, porque irei vos atribuír já o vosso primeiro trabalho.- disse, fazendo em seguida a primeira pausa em minutos. Ela falava demasiado rápido, e isso estava me deixando um pouco zonza. Os alunos se entreolharam mais uma vez, e depois de perceber que nenhum tomava uma iniciativa, decidiu recuperar o seu ritmo.- Bom, parece que terei de ser eu a decidir, não é mesmo?

Em seguida retirou uma pequena agenda da sua pasta, e passou os seus pequenos olhos pela mesma. Depois de parecer ponderar sobre as suas opções começou a falar:

—Senhorita Elisabeth e senhorita Vivian.- anunciou ela. Sorri para a minha nova amiga, e ela já sorria na minha direção. Estava muito feliz por ter ficado com ela. Todo o meu corpo estremecia só de pensar em ficar com Jean-Pierre como parceiro, por exemplo.

—Jean-Pierre e senhorita Amanda!- anunciou novamente. Os meus olhos foram atraídos para o rosto de Jean-Pierre que não parecia satisfeito com a escolha. Olhei na direção da garota, que se encontrava logo atrás de mim. Ela também não parecia muito feliz. Ela era uma pequena garota de cabelos negros, e pequenos olhos repuxados, definitivamente asiática. E extremamente bonita. Não tão bonita quanto Vivian, mas mesmo assim bonita.

—Peço desculpas professora, mas seria possível fazer o trabalho individualmente?- perguntou ele. A senhorita Trinity semicerrou os olhos, e depois estalou a lingua com reprovação.

—Não.- cuspiu aquelas palavras com tanta força, que me pareceu ver Amanda estremecendo. -Os trabalhos são feitos para aprendizado e criação de laços, e  compentências a nível de trabalho em comum, não individual. Lamento, mas terá que permanecer com a senhorita Amanda.

—Como queiram.- ele cuspiu estas palavras com a mesma força.  Vi a professora levantar ligeiramente o seu queixo com insatisfação, e depois desviou o seu olhar dele.

—Bom, passemos ao tema do trabalho, e espero que o anotem. Não esperem que aconteça o mesmo que no ano passado.- se dirigia agora aos alunos do ano anterior, que baixaram a cabeça envergonhados.- Quero que me tragam um ensaio, produzido nos instrumentos que cada um de vocês se sentem mais à vontade. E escusam abrir esses sorrisinhos de alegria, não pensem em trazer obras de Mozart, Chopin, Beethoven e muito menos de Debussy, estou farta deles! Nem os posso ouvir mais. Quero inovação, algo novo para os meus ouvidos. Já alguma vez ouviram uma música do estilo metal tocada por uma arpa?

—Não...- sussurrou Amanda derrotada.

—Exato!- disse ela apontando para a mesma. -Precisamos transformar esses "nãos", em "sims". Quero inovação, brilho, algo que me impressione. Estamos claros? Bom, mas vamos ao trabalho.
        Não poderia chamar aquela aula de produtiva, visto que não me consegui focar em nada do que a Senhorita Trinity falava. Sentia o olhar de Jean-Pierre queimando em mim. Não cedi, continuando a olhar para a professora, fingindo interesse no que ela estava dizendo. Sobre o que ela estava falando mesmo? Porém, os meus olhos estavam se lamuriando fazia tempo para olhar na sua direção.

Quando a aula terminou, me despedi de Vivian, que como sempre havia recusado a minha ajuda para a guiar até ao seu quarto. Estava me dirigindo para o meu quarto, quando ouvi a voz de Jean-Pierre me chamando. Suspirei irada, e continuei andando. Senti a sua mão no meu braço, mesmo antes de o sentir se aproximando.

—Elisabeth! Não é esse o seu nome?- perguntou ele, assim que virei o rosto na sua direção, mesmo que sem vontade.

—É sim...o que é que você quer, Jean-Pierre?- perguntei sem interesse, por seja o que for que ele estivesse prestes a dizer.

—Jean, pode me chamar de Jean. Jean-Pierre era o meu pai.- acabou por dizer. O seu tom de voz estava diferente, não havia uma ponta de arrogância nela. Porém, não era o suficiente para desfazer toda a minha raiva.

—Hum, legal. Era só isso que tinha para me falar?

—Olha, eu sei que fui um idiota no outro dia, mas eu estava realmente chateado.- explicou ele, enquanto olhava para as costas de Amanda, que agora desaparecia nas escadarias.

—Se isso era um pedido de desculpas, o considere como aceite. Agora se me dá licença...- virei o meu tronco, pronta para saír dali, quando a sua mão puxou o meu braço de novo com delicadeza.

—Espere. Eu queria perguntar se você não se importa de trocar de lugar com a nossa colega, Amanda.

—No trabalho de grupo?- perguntei, suspirando.

—Sim...

—Não me parece uma boa ideia. A Vivian não conhece mais ninguém a não ser eu naquela turma, não vou abandonar ela...- decidi jogar esse trunfo. Sabia o que ele havia feito com ela, e sabia como o usar. Ele baixou a cabeça, visivelmente afetado.

—Entendo.

—Mas porquê? Você não gosta da Amanda?

—Não...eu só não queria ficar com ela no trabalho. Problemas do passado, sabe?- explicou ele, abrindo um sorriso arrogante. Ali estava ele de novo. Jean-Pierre. Que ódio de você, Jean-Pierre.

—Olha eu não tenho nada a ver com briguinhas de relacionamentos, tudo bem? Se resolvam.
        Esperava que a sua mão não me deixasse avançar novamente, mas dessa vez isso não aconteceu. Sendo assim, continuei a andar em direção ao meu corredor. Ouvia várias vozes dentro dos vários dormitórios, risos abafados e conversas alheias. Mas o corredor em si estava vazio. Tentava desesperadamente retirar o meu celular de dentro do meu bolso, quando os meus olhos foram atraídos para o imenso feixe de luz, proveniente de uma das antiquadas  luminárias na parede. A sua intensidade estava aumentando assustadoramente, e num impulso protetor levei as mãos à cara. Ouvi a explosão momentos antes de sentir os cacos me ferindo as palmas das mãos. Incrédula, e ainda sem entender, olhei para as minhas mãos agora ensanguentadas. Soltei um gemido de dor, e depois arranquei os dois pequenos pedacinhos que ali se tinham agarrado, por sorte superficialmente, os jogando no chão em seguida. Olhei ao redor, para o corredor, agora mal iluminado. E depois de pensar por breves segundos, ainda demasiado atónita para raciocinar corretamente, decidi prosseguir caminho. Apertei o passo em direção à minha porta, e assim que o fiz as restantes lâmpadas explodiram repentinamente. Senti o meu sangue gelar por completo, sentia o meu coração batendo forte no meu peito, como um tambor descompensado. A minha respiração já estava mais alta que meus próprios pensamentos, e pensar se tornou algo extremamente difícil.

Corri para a porta mais próxima e bati nela com toda a minha força, na esperança de que aquele grupo de amigos me abrisse a porta. Porém, isso não aconteceu. Joguei a minha pequena mala no chão, espalhando todo o seu conteúdo. Peguei desajeitadamente na chave, e corri para o meu quarto. Ia contando as portas mentalmente, naquele momento todas elas me pareciam iguais. O corredor estava quase às escuras, e a pouca claridade matinal que provinha da pequena janela não ajudava em nada. Os desenhos das vidraças coloridas dançavam na minha visão, que parecia cada vez mais turva. Assim que consegui encontrar a porta certa, a tateei até encontrar a fechadura, e depois inseri a chave.

Não tive tempo de a girar por completo. Um som já tão conhecido, vindo de trás de mim, me fez estremecer. Um grunhido profundo. Senti o meu coração paralisar por segundos, assim como o meu corpo. Encostei a cabeça na porta, me convencendo de que não podia ser. Sentia os meus olhos se enchendo de lágrimas. Aquilo não poderia estar acontecendo de novo. Não agora. Não ali. Enchendo o peito de ar, girei a cabeça na sua direção, e vi a já tão conhecida forma. Negra. Pesada e assustadora. Mas desta vez estava mais definida, tomando uma forma mais humanoide. Engoli um grito desesperado, me limitando a deixar deslizar o meu corpo até ficar sentada no chão. Fechei os olhos por alguns segundos, sentindo todo o meu corpo tremendo como varas ao vento. Não me conseguiria por de pé, sabia disso. Mas também não conseguiria ficar ali.

Quando ouvi o estilhaçar da última lâmpada, não houve mais tempo para pensar, soltei um grito estridente e corri na direção contrária a ela. O corredor estava agora completamente às escuras. Mesmo assim, continuei correndo. Sentia a sua presença, bem atrás de mim, tentando me alcançar. Já não sabia quantos corredores havia corrido, porém todos eles estavam completamente às escuras. Sentia as minhas pernas cedendo ao cansaço, e o meu suor pingava na minha blusa. Bati com o pé em algo duro, e depois caí no chão imóvel como pedra. E ali fiquei, sussurrando para mim mesma que estava tudo bem. Tentei gritar por ajuda, mas não conseguia. Tentei me levantar, mas não conseguia.

Soltei um grito assustado, quando senti duas mãos me segurando, me puxando para cima. Me debati várias vezes, até finalmente desistir. Me voltei de repente, e vi ser apenas um garoto. Suspirei de alívio, e num momento de pura adrenalina o abracei. Ele reribuiu o abraço meio confuso, e em seguida o quebrou cautelosamente, apontando o seu celular para a minha face esborratada de choro.

—Ouvi você gritar. Você está bem?- perguntou preocupado. Conseguia ver agora melhor o seu rosto. Porém, não muito mais que os seus olhos, nariz e boca.- O meu nome é Adriel. Qual é o seu?- ele tentava a todo o custo arrancar uma palavra que fosse de mim.

—Eu...eu...eu não sei. Eu não...-eu gaguejava incesantemente. Ele guardou o seu celular no bolso, e depois me abraçou de novo, tentando me manter em pé a todo o custo.

—Está tudo bem...está tudo bem...escolas velhas, sabe como é...por vezes há apagões.- tentou explicar, sem me largar uma única vez. Pousei a minha cabeça no seu ombro, e levantando o olhar um pouquinho por cima do mesmo, consegui ver a forma se diluindo no ar e desaparecendo pela janela.

 

 

 


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