Crescendo escrita por August Martinez


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Aqui está o primeiro capitulo de "Crescendo". Espero que gostem ♥



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"A dor de partir não é nada em comparação com a alegria do reencontro." -Charles Dickens.

 

 Lembrava de cada pormenor como se de ontem se tratasse. A sala iluminada, a grande secretária escurecida pelo tempo, as pinturas abstratas nas paredes e ela. Miss Charlotte me olhava paciente, sorrindo radiante. Provavelmente tão feliz quanto eu. Aquela seria a nossa última consulta. Última consulta. Ainda não conseguia acreditar, parecia quase irreal. Ela me ouvia atentamente, como sempre, e ia anotanto tudo o que eu falava. A minha mãe estava ao meu lado, recostada na sua poltrona, segurando firmemente a minha mão. Eu relatava tudo o que sentia, sem deixar nenhum pormenor de fora ou por dizer. Fazendo um pequeno relatório mental de toda aquela conversa, queria recordar aquela tarde para o resto da minha vida.

Cinco anos de sofrimento, cinco anos sem quase respirar, cinco anos sem ser eu mesma. Me sentia sufocada pela grande quantidade de perguntas que me eram feitas, mas naquela tarde nada importava. Estava feliz por ali estar. Ia olhando ao meu redor, enquanto pensava cuidadosamente na minha próxima resposta, registrando tudo mentalmente. Nunca mais iria entrar naquela sala. Isso me alegrava o espírito, mas uma pequena parte de mim sabia que sentiria falta de Miss Charlotte e dos seus conselhos. Ela era a única pessoa que conseguia me entender por completo, ou talvez quase por completo. E eu a amava por isso.
       Tudo começou quando eu tinha apenas seis anos. Havia criado um amigo imaginário chamado de Igor. Na altura a minha mãe não havia dado muita importância a esse aspeto, afinal, era completamente normal para aquela idade. Mas com o passar dos anos ela começou a estranhar a sua persistência, e por isso mesmo, decidiu procurar um psicólogo para me ajudar. Quando os meus antigos amiguinhos desapareceram, as sombras surgiram. De início a minha mãe pensava ser efeito da nova medicação que me havia sido administrada, visto que esta me deixava febril. Mas quando o meu estado melhorou, e as sombras continuaram a marcar presença, o meu psicólogo decidiu que iria contatar uma velha amiga dele, Miss Charlotte, uma psiquiatra de confiança. E foi assim que a conheci. Ela não me olhava como se eu fosse uma bomba relógio, prestes a explodir. Pelo contrário, eu sentia que podia confiar nela. Poderia lhe confiar a minha vida, sem medo algum.
      Faziam sete meses que eu não as via, circundando a minha cabeça, ou dançando nas paredes do meu quarto de noite. Nem uma. E isso queria dizer uma coisa: liberdade. Finalmente poderia seguir o meu maior sonho.
Implorei para que minha mãe me autorizasse a ingressar num curso de violino. A minha avó havia me ensinado a tocar, ela tinha sido, na sua juventude, uma famosa violinista. Mas um câncer maligno no estômago levou a melhor, e ela havia perdido a batalha contra esse inimigo mortal. Sentia a sua falta, sentia a falta do seu sorriso, sentia falta das horas passadas a praticar, na sua pequena casa, onde acabaria por vir a falecer mais tarde. Porém, nunca havia tido a oportunidade de ter aulas de violino numa escola, devido a toda essa situação.   

E agora, que tinha revelado esse desejo a Miss Charlotte, ela achava ser o momento certo para o fazer. Ela acreditava vivamente que a música me poderia ajudar. E eu sentia que isso era verdade. Mas qual era o seu diagnóstico? Uma mente fértil? Uma mente conturbada? Quebrada? Na opinião de Miss Charlotte nada passava de criações que eu mesma criei, na tentativa de preencher o vazio que a sua morte me deixara, assim como da separação dos meus pais, quando era ainda uma criança. Não sabia se ela estava certa. Mas de uma coisa eu estava ciente: eu era diferente. E eu não o encarava como sendo algo negativo.

E ali estava eu, mais despida que nunca. Despida de tudo o que me rodeava, despida de medos infantis, apenas eu. Inteiramente eu. Olhava o edifício que se encontrava na minha frente, o encarava segura de mim mesma. Sabia que essa segurança se iria esbater mal pisasse no seu chão. Mas, por agora, me sentia inteiramente eu. Não era mais a Elisabeth Stone, a garota que passava a vida num consultório demasiado iluminado, camuflado num já tão conhecido forte cheiro de tabaco e perfume barato feminino. Era apenas eu. A garota que havia enfrentado uma tempestade para ali chegar. A garota da Florida, que não estava habituada ao ambiente campónio e monótono do Colorado. Apenas eu, uma folha em branco, pronta para ser escrita. Ninguém conhecia o meu passado ali, e eu pretendia que assim continuasse.

O antigo edifício na minha frente parecia já ter tido melhores dias, e eu me identificava com isso, mais do que gostaria que fosse verdade. A sua tinta estava estalada em vários pontos, o tom que um dia deveria ter sido de um vermelho vivo, estava agora desbotada e acabada. Mesmo assim, continuava a ser uma imponente construção apalaçada. Tudo nele gritava "reparação por favor", mas parecia que ninguém ligava para os seus pedidos de ajuda silenciosos. Os seus grandes portões de madeira escura estavam fechados, assim como todas as suas janelas. O pátio estava completamente vazio, assim como o jardim. Se eu não conseguisse ler a grande placa que anunciava a famosa "Academia Serenity Hill", eu pensaria que estava no lugar errado. O bonito recinto escolar estava completamente abandonado, e a neve cobria grande parte da sua paisagem.
      A despedida tinha sido difícil. Odiava despedidas. Não sentir mais a sua presença me destruía por dentro. A minha mãe reprimia as lágrimas enquanto me abraçava, e eu não poderia estar mais segura de que iria desabar bem ali, do seu lado desesperadamente. Mas não o fiz. Sabia que se o fizesse, a sua preocupação não lhe iria permitir partir. E isso era necessário. Por isso, num golpe de coragem e força, virei costas e segui o pequeno trilho de terra batida. A minha mala parecia pesar cada vez mais na minha mão, fazendo o meu corpo estremecer, enquanto perscrutava em silêncio cada centímetro do mato que me rodeava. A escola se encontrava no topo da colina, e isso queria dizer que ainda tinha muito que andar. Isso me deixou feliz, teria mais tempo para pensar, para secar as lágrimas que insistiam em cair e re
spirar fundo.

Respire Elisabeth, relembrava a mim mesma repetidas vezes.
       Não conseguia ver o tradicional parque de estacionamento escolar, e muito menos os tradicionais porteiros, que tentavam ao máximo proteger a entrada de possíveis invasões. Pelos vistos esta escola era ainda mais eficiente do que eu pensava. A escola em si, porém, tinha um ar envelhecido e pesado. Como se nada tivesse mudado desde a sua construção, que segundo o seu site online teria sido em 1874. Os seus gigantescos portões se encontravam a escassos metros de mim, mas pareciam estar próximos o suficiente para me conseguirem sofucar. Porém, estava animada. O pátio estava praticamente deserto, o que facilitava a minha missão. Pelo menos não seria alvo de olhares curiosos e conseguiria passar despercebida. Os horários da escola também jogavam a meu favor, pelo que todos estariam nas aulas naquele preciso momento, deixando o terreno vazio para que eu o pudesse explorar. Aquela escola era, sem sombra de dúvidas, bastante peculiar, e isso me agradava. Muito mais do que alguma vez pensei ser possível.
      Deixando para trás todos os meus pensamentos, decidi entrar no majestoso edificio, ouvindo o som que as minhas botas impermeáveis faziam ao pisar a neve, que já se acumulava naquela altura do ano. O frio cortava as minhas faces, que já eram rosadas por natureza. O Inverno era muito rígido no Colorado, e eu temia que a minha habituação viesse a ser penosa. Decidida a não congelar até à morte, decidi enfrentar os meus receios, e entrar por fim.
      O seu interior estava surpreendentemente quente e aconchegante, comparado ao frio que se fazia sentir lá fora. As paredes eram revestidas por um antiquado papel de parede vermelho sangue, e o chão de madeira escura dava à divisão uma certa escuridão um tanto agradável. Na minha esquerda havia uma enorme escadaria, coberta por um tapete do mesmo tom das paredes. Na minha direita haviam três corredores, bastante semelhantes. Vou me perder com toda a certeza, pensei para comigo mesma. E na minha frente, completamente alheia à minha entrada, estava a secretária. Uma senhora já de idade avançada, que lia atentamente uma revista, atrás da sua secretária de mármore.
      —Bom dia, o meu nome é Elisabeth Stone, e estou aqui para...
    —Eu sei exatamente quem você é.- disse me cortando rispidamente, enquanto me lançava um olhar irado e sufocante. Em seguida, pousou a sua leitura atual, e se dirigiu para uma pilha de papéis no canto oposto ao que me encontrava.- Você está aqui para pegar os seus horários, não é mesmo garota?- pisquei duas vezes, ainda atónita, e depois assenti.- Aqui tem.- disse sem sequer pestanejar. Em seguida lambeu o seu indicador e continuou a folhear a sua revista. Incrédula com a sua antipatia, decidi tomar a liberdade de tentar recuperar a sua atenção, mais uma vez.

—Com licença senhora, mas...-o seu rosto se virou para mim, pela segunda vez. Ela tinha um ar exausto, como se já não dormisse fazia dias.- Recebi um e-mail que me dizia que eu teria um encontro marcado com a diretora. Com a senhorita Cassandra Colleen, se não estou em erro.

—Você não tem um calendário nesses aparelhos idiotas que vocês adolescentes tanto gostam, não? Nós estávamos esperando a chegada de novos alunos, para o curso de música, apenas no Domingo. Sabe que dia é hoje? Sexta. Alguma dúvida?- neguei com a cabeça, e depois de um sorriso falso, retomou a sua leitura.

Irritada, e ainda pasma com aquela atitude, decidi seguir caminho para me instalar no meu quarto. Passei rapidamente os olhos pelo papel que ela me havia dado, e descobri que havia um pequeno mapa na sua parte de trás. Obrigadinha senhora incrivelmente antipática. Subi as escadas como me era indicado, e depois continuei por corredores a fio. A decoração não mudava muito de divisão para divisão. Escura, antiquada e bastante morta. 247, esse seria o número do meu novo quarto.

Estava decidida em me trancar no meu quarto pelo resto do dia, mas algo despertou a minha atenção. Ali estava ela, uma porta de vidro, que me deixava ver as maravilhas que lá dentro estavam. Pousei a mala no chão do corredor, e entrei no grande salão. As grandes janelas iluminavam o grande espaço, no seu centro um grande piano preto lustroso, e do seu lado várias cadeiras, com variadas pautas, e outros instrumentos. Logo os meus olhos foram atraídos para o meu grande amor. Um belo violino estava em cima de uma das cadeiras, abandonado, sem ninguém. Destraída com tal beleza, não ouvi os passos que se aproximavam mais e mais de mim. Me sobressaltei quando ouvi uma voz feminina que me chamava. Virei a cabeça na sua direção, e dei de caras com uma garota de cabelos escuros e enormes óculos de grau.

—Me desculpe! Não era minha intenção assustar você.- ela parecia genuinamente preocupada. Os seus grandes olhos castanhos avaliavam a situação, enquanto se dirigia para junto de mim. Soltei uma gargalhada atrapalhada, e depois suspirei, pousando uma mão no meu peito palpitante.

—Não tem problema.- disse rapidamente, tentando acalmar a minha respiração ofegante.- Só não esperava que alguém fosse entrar agora.- expliquei.

—Peço desculpas mesmo assim. Eu não deveria entrar aqui, para começar, visto que não faço parte do clube músical. Mas quando ouvi passos aqui dentro, fora do horário de aulas, percebi que seria você.- olhei para ela confusa, e ela sorriu compreensiva, prosseguindo.- Não pense que sou uma maníaca louca.- disse, rindo divertida.- Eu faço parte do comitê de boas vindas. Eu estava esperando a sua chegada na verdade.

—Oh, sim, claro.- balbuciei sem saber ao certo o que tudo aquilo queria dizer.

—Eu deveria estar em aula agora, mas me dispensaram para que a pudesse guiar até o seu quarto. Não estávamos esperando ninguém hoje, foi tudo feito na última da hora.- ela parecia verdadeiramente irritada por causa disso.- Deveriamos aproveitar agora enquanto a confusão não se instala nos corredores.- explicou ela, enquanto me observava atentamente. Eu não poderia concordar mais com ela. Mal podia esperar por estar no meu quarto, sozinha.

—Ah, que grosseria a minha, o meu nome é Sabrine. Sabrine Meyer.

—O meu nome é Elisabeth, mas creio que já o saiba.- disse divertida, enquanto pegava desajeitadamente na mala, já no corredor.- Mas pode me chamar de Lis.

—Mais curto, mais fácil e mais fofo. Gostei, Lis.- comentou ela, abrindo um amável sorriso.

Estava radiante por finalmente conhecer alguém simpático nessa escola. Sabrine me fez uma curta visita guiada pelo meu piso, mostrando os banheiros, a pequena sala de informática e uma pequena biblioteca, apenas destinada aos alunos daquele piso. Ela tagarelava alegremente sobre tudo um pouco. Eu gostava dela, definitivamente.

—Você sabia que antes de ser uma escola, esse lugar era um convento de freira?- perguntou ela expectante.

—Você só pode estar brincando...-respondi verdadeiramente surpresa, enquanto cortávamos a grande velocidade os grandes corredores.

—Não, eu não estou.- disse entusiasmada. Conseguia perceber que ela estava muito divertida por ter alguém novata por perto.- Na verdade, a diretora Cassandra era uma freira! Ou estava estudando para isso...mas aí se apaixonou e teve que desistir do cargo.

—Como você sabe tudo isso?- dei por mim realmente entretida com a conversa. Ela apenas piscou para mim, sussurrando em seguida: " Tenho vários conhecimentos". Sorri perante a sua atitude enigmática, e depois parámos na frente de uma porta. 235.

—De quem é esse quarto?

—De uma das poucas pessoas que vale a pena conhecer nesse inferno.- exclareceu Sabrine. Após algumas batidas insistentes, a porta se abriu, revelando um pequeno rapaz sonolento. Não consegui deixar de ficar pasma ao ver aquela quantidade de "informação". Os cabelos do garoto estavam tingidos de roxo, tinha os olhos esborratados de preto e vestia uma camisola que dizia "I love Freddie Mercury".

—Ai, o que você quer Sabrine?- perguntou ele esfregando os olhos, agora ainda mais esborratados.

—Esse é Drake. Drake essa é a Lis.- apresentou ela rapidamente, se jogando em cima da sua cama em seguida. Eu permaneci junto da porta, vendo Sabrine me incentivando a entrar. Ele me avaliou por alguns segundos, me deixando um pouco desconfortável.

—Você não deve ser daqui. Tem um aspeto demasiado...forasteiro.- acabou por dizer sorridente. Em seguida fez de sinal para que entrasse, e assim o fiz.- Mas você é bonita.

—Ah, deixa ela em paz Drake.- reclamou Sabrine. As minhas bochechas queimavam, e tinha a certeza de que estava exageradamente corada.-Não se deixe enganar Lis, ele gosta tanto de garotos quanto a maioria das garotas dessa escola inteira.

—Ah.- disse eu, e a minha mente se iluminou de compreensão e alívio.

—Ai gata, você sempre estraga os meus planos.- disse ele, fingindo estar chateado.-E aí, Lis? O que a trouxe aqui, para esse paraíso?

—Eu vim pelo programa de música. É extraordinário.- eles se entreolharam de uma maneira estranha, e depois explodiram numa gargalhada coletiva.-Eu vim ter aulas de violino.

—Nossa, vejam só, eu tenho agora uma amiga violinista. Não acha fenomenal, Sab?- Sabrine assentiu e depois sorriu para mim.- Quando toca para nós?

—Quando quiserem.- disse subitamente mais calma. Drake era verdadeiramente legal e simpático, era impossível ficar desconfortável perto dele.

—Ei, quase me esquecia, aqui está o mapa da escola. Pode se tornar bem confusa para alguém novo aqui.- disse Sabrine apressadamente.

—Obrigada, mas acho que não será necessário. A secretária já me deu um. E para além disso, não penso que a minha rotina vá ser muito diferente de: quarto, sala de música, pátio. Acho que está otimo.

—Você está louca? Você tem que conhecer a biblioteca comum da escola.- disse Drake escandalizado, sendo acompanhado por Sabrine, que me olhava horrorizada.

—Não pelos livros.- exclareceu ela.

—Temos uma sessão de cinema todas as sextas à noite por lá. Você deveria aparecer por lá hoje.

—Eh, eu vou pensar nisso. Se não estiver muito cansada...

—Ela acabou de dizer cansada? Que ser humano fofo.-comentou Drake, lançando um olhar preverso a Sabrine, que o retríbuiu.

—Ah, deixa ela Drake.

—Bom, eu acho que deveria ir arrumar as minhas coisas.- confessei olhando para o relógio que se encontrava em cima da cómoda dele. Se o meu quarto fosse igual ao dele seria bastante pequeno, isso pouco importava para mim.

—Não parece que tenha muito que arrumar.- comentou Drake, olhando a única mala com rodinhas que trazia comigo.

—Eh, bom, eu não trouxe muita coisa.- expliquei.

Depois de me despedir dos meus, esperava, novos amigos, decidi que conseguiria encontrar o meu quarto sozinha. E consegui, tal como planeado. Ali estava ele. Peguei na pequena chave que se encontrava pendurada por cima da mesma, e guardei uma nota mental, não puderia perder a chave. Depois abri a porta e entrei no pequeno cubículo. Como já era esperado o quarto era minúsculo, com apenas uma cama, uma secretária e uma cómoda, igual à de Drake. Mas fiquei verdadeiramente animada por a minha janela ser bastante maior que a dele. A luz do pouco sol que se estendia no céu entrava no quarto, e agora conseguia ver as pequenas partículas de pó esvoaçando por ali.

Passei o resto da tarde arrumando as poucas roupas que havia trazido, assim como os meus livros e produtos de higiene. Não esperava adormecer, mas assim que me sentei na cama, surpreendentemente confortável, o cansaço acabou por levar a melhor de mim. Acordei assustada com algumas batidas na porta, olhei ao redor aturdida e depois pequei o meu celular para ver as horas. 19:47? Eu tinha dormido tanto assim? Eu estava faminta, nem sequer havia almoçado. O meu espanto foi cortado por novas insistentes batidas, e foi então que decidi ceder e ir abrir a porta.

Ali estavam eles. Sabrine e Drake. Trocaram olhares divertidos ao me verem descabelada e esborratada.

—Você tem sete minutos para se arrumar.- anunciou ela.

—Como assim? O que vocês estão fazendo aqui?- perguntei bocejando.

—Viemos te buscar, como é obvio.- exclareceu Drake, que agora estava bastante apresentável. De barba feita, penteado e não vestia pijama.

—Noite de cinema, lembra?- recordou Sabrine. Soltei um suspiro cansado, e depois assenti derrotada.

—Ah, sim. Bem, eu acho que eu esqueci.

—Mais uma razão para estarmos aqui. Vah, vamos. Se se despachar ainda chegará a tempo de assistir o segundo filme!

—Claro, claro. Eu já estou indo.- disse automáticamente.- Guardem lugar para mim.- pedi sem vontade.

—Sei não, viu?- brincou Drake, antes de passar o seu braço pelos ombros de Sabrine e de saírem do corredor. Ainda conseguia ouvir as suas vozes quando fechei a porta.

Me vesti o mais rápido que consegui, sem me dar ao trabalho de fazer grandes escolhas. Vesti um casaco por cima da minha camisa amassada, e troquei as minhas calças de viagem, por umas outras mais confortáveis. Lavei a cara e os dentes, e em seguida saí disparada, trancando a porta em seguida, sem antes pegar o meu "fiel amigo" mapa. Passei as mãos pelos cabelos tentando os arrumar o máximo possível, e depois comecei a descer as largas escadarias. A secretária mal humorada já não se encontrava lá, mas não foi dificil de encontrar a biblioteca comum. Ouvia um forte burburinho vindo de uma das duplas portas de madeira do segundo corredor, e decidi arriscar. Bingo. Lá estavam eles, rindo com um grupo de outros estudantes. A biblioteca era incrivelmente grande, fiquei maravilhada com a grande quantidade de livros que ali havia. Ao fundo da divisão, do lado de uma pequena área de estudo, estava um grande ecrã, onde se podia ver uma cena de um filme que não consegui reconhecer, e algumas cadeiras espalhadas ao seu redor.

A minha atenção foi roubada por uma voz feminina, extremamente irritada. Atrás da porta entreaberta estava uma senhora, ruiva e incrivelmente alta, que discutia acesamente com um adolescente de cabelos igualmente ruivos.

 —Voce não muda, Jean-Pierre! Eu te trouxe para perto de mim para tentar melhorar a nossa relação, para tentar melhorar toda a situação! E você só me trás problemas atrás de problemas, Jean-Pierre!- a voz da mulher ia aumentando de tom em tom, mais e mais, até se tornar em meros berros .-Não pense que por ser meu filho terá mais privilégios. Próxima brincadeira e você estará a esfregar o chão de cada recanto dessa escola entendeu? Considere esse trabalho aqui na biblioteca como uma alternativa para se redimir.

Eu assistia a toda aquela situação, sem saber o que fazer. Só quando alguém pigarreou atrás de mim é que ela se deu conta de que já não se tratava de uma discussão a dois apenas. Assim sendo, se despediu do garoto, e o mandou entrar na biblioteca imediatamente, e depois desapareceu na escuridão.

Ele tinha cabelos ruivos e encaracolados, que emolduravam o seu rosto fino e sardento. No entando este mesmo demonstrava um aspeto frustrado e extremamente furioso. Esbarrou violentamente no meu braço, quando passou por mim, e depois se sentou na secretária, que reconhecia como sendo da bibliotecária. Será que ele pensava que tinha sido eu a pigarrear? Dei um salto quando senti alguém respirando atrás de mim.

 

—Parece que passo a vida te assustando, não é mesmo?- perguntou Sabrine rindo entusiasmada.

—Ah, olá Sabrine. O que foi isso?- perguntei curiosa.

—Ah, ele. E o filho da diretora Cassandra.-respondeu ela com algum tom de repulsa.- Ele é um completo idiota, sempre metido em encrenca da pesada. Tenho tanta pena da senhorita Cassandra...ela é uma senhora muito boa.

—Ah, aquela era a diretora Cassandra?- perguntei surpresa. Parecia demasiado jovem para ser diretora.- Ele esbarrou contra mim à pouco...meio grosso esse garoto, não?

—Não se sinta especial, Lis. Esse idiota é assim com todo o mundo.

—E porquê?

—Eu não sei, Lis...eu tenho uma pequena ideia, mas penso que seja apenas um palpite bobo.

Não insisti mais naquele assunto, ela parecia verdadeiramente desconfortável. Pedi para que começassem a ver o filme sem mim, pretendia dar uma vista de olhos pelas grandes e variadas estantes. Procurava um autor em especial, o meu favorito. Haviam imensos livros dele na sala de espera da clínica onde costumava ir. Ao pensar nisso senti um aperto no estômago, havia esquecido de ligar a Miss Charlotte, dizendo que a viagem tinha corrido bem. Não poderia adormecer de novo sem o fazer.

Depois de dar voltas e voltas sem fim, percebi que não encontraria os livros que pretendia. Olhei ao redor procurando alguém que trabalhasse na biblioteca, mas parece que só tinha uma alternativa. Jean-Pierre, achava que era esse o nome que tinha ouvido antes. Suspirei indignada e me dirigi para junto dele. Sentia o olhar dos meus dois amigos queimando nas minhas costas, provavelmente achando que eu estava louca.

 —Peço desculpas pela interrupção.- o garoto desviou o olhar do seu celular e me olhou de alto a baixo. Engoli em seco e depois prossegui.- Será que poderia me dizer onde posso encontrar os livros de Charles Dickens?

—Charles Dickens? Aprecia a sua escrita?- perguntou ele em seguida.

—A acho fascinante. Um verdadeiro genio da literatura, na minha opinião.- respondi. Ele me olhava nos olhos agora, guardou o seu celular no bolso, e me devolveu o olhar, agora com ar insolente.

—Me deixe adivinhar: você é sonhadora. Deve gostar de livros de romance e aventura, talvez porque tem falta de ambos em sua vida.

—Como disse?- perguntei irritada. Como ousava ele? A minha cabeça girava, não esperava tal resposta. De modo algum.

—Penso que seja a única razão que leva uma garota da sua idade a vir parar numa biblioteca, apenas por diversão...

—Bom, parece que você também aqui está, não é mesmo?- respondi com cinismo. Ele abriu um pequeno sorriso travesso, e depois estalou a lingua, provavelmente em busca de uma boa resposta.

—Mas eu tenho uma boa razão.- acabou por responder.

—Pode por favor me indicar a estante?- perguntei já desconcertada. Ele abriu ainda mais o seu sorriso zombeteiro, e depois apontou para a estante na minha esquerda .-Obrigada.

Sentia o seu olhar preso em mim, enquanto me dirigia para o lugar indicado. Pensava que talvez me estivesse mentindo, apenas para se rir um pouco de mim. Mas depois de uma vista de olhos acabei por encontrar um livro dele. Apenas um. "A Christmas Carol", por sorte o meu favorito.

Olhei de novo na direção do garoto, mas ele já se encontrava olhando na outra direção. Me dirigi para junto dele de novo, e pousei o livro em cima da secretária, com demasiada força. O seu olhar sobre mim estava irritando o meu ser mais interior, e tive que controlar imenso o meu corpo para não socar a cara sorridente dele.

 -É para levar, por favor.- disse finalmente, no tom mais calmo e pacífico que consegui.

—"A Christmas Carol", que previsível.- disse maldoso, enquanto jogava o livro no ar, o apanhando em seguida. Fechei o punho com força e depois sorri para ele.

—Que bom, sabe ler- disse irónica.

—Bem me parecia que essa postura meio torta tinha um porquê de ser.

—Me desculpe?- perguntei confusa.

—Seus braços...eles estão sempre arqueados, principalmente quando fica na defensiva.

—Não entendo o que quer dizer.

—Você é violinista, não é?- o meu corpo ficou estático, e senti um calafrio percorrer toda a minha espinha.

—Como você sabe disso?- ele deu de ombros e depois sorriu despreocupado. Ele era filho da diretora, com certeza teria acesso a algumas informações interessantes sobre os alunos. Decidi não perguntar mais nada e sair dali o mais rápido possivel.

—O livro, por favor.

—O seu cartão de leitor, por favor?- replicou ele com o mesmo tom.

—Cartão...de leitor?

—Ah, por favor, vai me dizer que me fez perder o meu precioso tempo?

—Eu não sabia que era necessário um para levar um livro.- ele me olhava impaciente, parecia que as palavras escorregavam da minha boca demasiado devagar.- Como posso adquirir um?

—Ah, esquece isso. Só pega nele e vai embora. Não consegue ver que estou ocupado?- disse ele apontando para a tela do seu celular. Estava jogando algo que não conseguia indentificar.

—Um pouco mais de simpatia e compreensão com novos alunos não lhe faria nada mal.- resmunguei enquanto pegava no livro.

—Acha que não sei que você é uma novata? Me poupe. Consigo sentir o seu cheiro de frustração e confusão de longe.

—Eu não estou frustrada...

—Ótimo, fico feliz por você.- a sua ironia era palpável, e o meu corpo estava tremendo de raiva. Não o suportava. De jeito nenhum. Virei costas e me dirigi para a porta de saída.

—Hei! Onde você vai, Lis?- ouvi a voz de Drake atrás de mim.

—Eu estou meio cansada, acho que vou andando para o quarto...

—Mas você acabou de acordar! E o filme, como fica?- perguntou ele numa mistura de desconfiança e confusão.

—Me desculpa, Drake. Mas tenho mesmo que ir...

Virei costas e corri para a escuridão que agora se apoderava da grande escadaria. Subi de dois em dois degraus, e já ofegante decidi parar no banheiro antes de me dirigir para o meu quarto. A luz esverdeada do banheiro acendeu automaticamente com a minha entrada, e a primeira coisa que fiz foi me olhar no espelho. A minha cara demonstrava tudo o que eu estava sentindo no momento. Que garoto idiota!

Estava lavando a cara quando através do espelho vi uma das portas dos compartimentos se abrindo. Me virei assustada para dar de caras com uma garota sentada no vaso sanitário, mas totalmente vestida. Ela era loira, extremamente bonita, e tinha consigo um tipo de bengala, que reconhecia como sendo para pessoas com deficiência visual. Não sabia se deveria dizer alguma coisa. Ela me olhava fixamente, mas o seu olhar era vago.

—Eu sei que está aí alguém!- advertiu ela, se levantando lentamente.

—O meu nome é Elisabeth Stone, sou nova aqui na escola. Desculpa o incômodo, eu já estava de saída...

—Oh, não precisa ir!- disse ela abrindo um sorriso caloroso e aliviado.- Eu só pensei que fosse um dos rapazes. Eles costumam entrar no banheiro feminino.

—Desculpe a desilusão, mas sou apenas eu.- ela riu da minha piada sem graça, e depois caminhou até mim.- Qual é o seu nome?

—Vivian. Vivian Watson.

—Muito prazer em te conhecer, Vivian. Mas...o que você estava aqui fazendo sozinha nesse banheiro?- perguntei preocupada.

—Ah, estava apenas tirando um tempo para pensar. Não o consigo fazer com a tagarela da minha colega de quarto.- ri com aquela afirmação, e ela parecia feliz por isso.

—Gostei da sua voz, vou com certeza a memorizar. Você se deve estar perguntando se eu sou cega...

—Não, na verdade só achei esse lugar um pouco estranho para pensamentos noturnos.- menti.

—Eu sou cega sim.-respondeu ela sem perder tempo, sem perder o seu sorriso.- Perdi a minha visão faz três anos esse mês.

—Lamento imenso...

—Não lamente, Elisabeth!- pediu ela divertida.- Me fez perceber coisas que nunca tinha percebido antes. Tem coisas que prefiro nem ver.

—Entendo...Peço desculpas se pareço desinteressada no assunto, é só que eu não me estou sentindo muito bem.

—Você deveria beber um pouco de água- aconselhou ela preocupada, depois começou a andar até à porta de saída do banheiro.

—Você precisa de ajuda? Quer dizer...para ir para o seu quarto?

—Não Elisabeth, obrigada. Estes anos serviram para me mostrar que precisamos de desafios em nossa vida para a tornar mais interessante. Nunca pensou nisso antes?

—Nunca tinha pensado nisso.- disse sincera.

—Deveria...

As nossas cabeças se viraram ao mesmo tempo para o corredor,  quando ouvimos alguém discutindo enfurecido no andar de baixo.

—Conheço essa voz.- disse ela.- Jean-Pierre.

—Você o conhece?

—E quem não conhece?- perguntou ela, olhando para o lado.- Ele só se mete em problema.

—É, ja entendi isso, e estou aqui à apenas um dia.

—Vai se habituar, enventualmente.

—Desculpa, mas você sabe qual é o problema dele?

Eu não sabia ao certo o porquê dele me despertar tanto interesse, mas a verdade é que o despertava. Demasiado até.

—Eu costumava andar muito com ele no ano passado. Ele me ajudou bastante quando perdi minha visão.- disse ela em um tom mais triste.- Mas ele deixou de falar comigo, ou seja com quem for...acho que se cansou de mim.

—Sinto muito...ele é um idiota.

—Ele é mesmo. Mas fico feliz que já não possa ver mais. Aposto que ele me ineveja agora, pois ele tinha medo de ver algumas coisas.

Quando acabou de o dizer, abanou a cabeça como se tentasse mandar embora algum pensamento ruim. Parecia inquieta, o seu anterior espirito despreocupado havia sido tomado por dor e silêncio. O meu corpo estremeceu ao ouvir aquelas palavras, e me esforcei para que a minha voz soasse o mais natural possível.

—Do que ele tinha medo de ver, Vivian?

—Tenho sono, Elisabeth. Até amanhã.- disse carinhosamente, e depois de desdobrar a sua bengala, simplesmente saiu do banheiro. Me deixando completamente sozinha.


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Notas finais do capítulo

Se você gostou por favor deixe o seu comentário ♥ até ao próximo capitulo!