IV escrita por Ane


Capítulo 6
Jimin




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 Os pés já familiarizados com o piso frio da sala de prática começavam a dar sinais de cansaço. A cada vez que eles encostavam no chão, uma dormência quase como um ardor começava a manifestar-se, indicando que ele talvez já estivesse ali há muito tempo. Apesar disso, Jimin continuava a mover-se pela sala, esforçando-se em deixar cada movimento o mais perfeito e leve possível em uma sequência de passos que ele já sabia de cor, refletindo em cada um deles o máximo de expressão que pudesse, já que a dança contemporânea tinha essa característica. Ao invés de acompanhar uma música em particular, ele involuntariamente murmurava uma melodia com um certo esforço que competia com sua busca por fôlego devido aos saltos e corridas que dava aqui e ali. Pelo espelho, vistoriava a si mesmo entre um passo e outro, mas ainda mantendo a concentração no que estava fazendo. Um, dois, contava mentalmente, um dois, três… Até parar em um momento, interrompendo tanto a contagem mental, como a melodia. Com as mãos na cintura, cabeça e ombros curvados para baixo, suspirava. Parte por estar cansado, e parte pela frustração de ter errado um mínimo passo, pela quinta vez seguida. Ou pelo menos por não tê-lo realizado da maneira que queria. Não era o suficiente, pensou.
           Já fazia provavelmente duas horas que ele estava ali, praticando os mesmos passos que estava preparando para uma avaliação que aconteceria dentro de algumas semanas, e ainda tinha milhares de dúvidas se isso seria o bastante. Os outros alunos provavelmente nem haviam começado a pensar nisso, mas ele gostava de se adiantar.  Apesar de ser considerado o melhor aluno da Academia, Jimin continuava exigente consigo mesmo, desde sempre. Tudo o que fazia, principalmente sua dança, era sempre vítima dele mesmo, que poderia ser considerado seu maior crítico. Nessas horas ele sentia falta de quando dançava apenas popping e não era tão rígido consigo mesmo. Quando ele e os amigos costumavam se apresentar apenas por diversão, nada mais. Mas desde que Jimin houvera decidido fazer da dança algo mais sério, as exigências tornaram-se maiores, afinal, para realizar seu sonho de se tornar um artista bem sucedido, teria que dar o seu máximo.
            Ergueu a cabeça e olhou para seu reflexo novamente, permanecendo assim por alguns segundos, como se estivesse procurando algo nos olhos daquela imagem que também procurava algo nos seus. A melodia que murmurava há alguns minutos voltara a perambular em sua mente e, aos poucos, desviando a consciência e os olhos para um outro lugar, ele a cantava, com palavras e com sinceridade, como em um ritual de paz. Sem perceber, seu corpo movia-se novamente, sem o rigor e perfeccionismo habitual, apenas como se estivesse sendo arrastado por uma maré quente e agradável do oceano, devagar e natural, enquanto sua expressão parecia focar-se cada vez mais na sua própria voz e em cada palavra que ele cantava, que servia pra ele como uma porta de incêndio, uma calmaria para sua mente tão cansada e exausta de praticar.
           Jimin realmente gostava de cantar. Gostava de como a música podia fazer isso com ele, de como se deixar levar pelos próprios sentimentos, de se deixar descansar. Mesmo que a dança fosse a sua principal dedicação, o canto para ele tinha tanta importância quanto. Porém, não sentia que tinha uma voz boa o suficiente para poder investir mais nessa área. Treinava, da mesma forma, mas não se achava suficiente, e talvez nunca acharia na verdade. Mas em momentos como esse ele não se importava muito, apenas abria a boca e deixava alguma música falar por ele. Aos poucos, a dança começava a se tornar um peso, algo que ele deveria superar e se dedicar cada vez mais, e ele não queria que o canto se tornasse a mesma coisa. Talvez até quisesse permanecer imperfeito ou incompleto nessa parte, apenas para manter o seu significado.
一 Você realmente canta muito bem, Jimin-ssi. 一 disse uma voz logo atrás dele, interrompendo-o depressa.
           O professor olhava para ele com um sorriso orgulhoso e um olhar surpreso, que era genuinamente sincero. Jimin o cumprimentou com uma breve reverência e bochechas rosadas. Ele o considerava um homem muito gentil e definitivamente um dos melhores professores da Academia. Tinha sido um dançarino muito famoso há alguns anos, aparecendo até em programas na televisão algumas vezes, e tinha amigos famosos que vez ou outra aparecia por lá trazendo com eles alguns fotógrafos e fãs. Apesar de tudo, permanecia humilde, sorridente, e dedicado aos alunos. Jimin o via como um grande exemplo para o futuro.
一 Além de ser o melhor dançarino daqui, você vai acabar sendo também o melhor cantor. 一 ele continuou, com os braços cruzados e o sorriso que fazia os seus olhos desaparecerem.
一 Obrigado professor… 一 Jimin respondeu tímido 一 É realmente uma honra ouvir isso do senhor.
一 Você estava ensaiando uma nova coreografia? 一 Ele se aproximou.
一 Sim, a da avaliação que vai ter daqui há três semanas.
一 Mas já? 一 ele respondeu surpreso 一 A maioria dos alunos provavelmente nem começou… É realmente bem esperado de você mesmo… 一 riu novamente, fazendo com que Jimin voltasse a ter o tom rosado nas bochechas enquanto ria. 一 Enfim, você tem realmente uma boa voz… já fez alguma audição para alguma empresa antes, Jimin-ssi?
一 Sim, mas não deu muito certo… 一 ele coçou a parte de trás de sua cabeça 一 Acho que fiquei muito nervoso no dia e acabei não mostrando muita coisa legal.
一 Ah… e você não pensa em tentar de novo? 一 ele continuou, em um tom de curiosidade.
一 Talvez… quer dizer, sim eu quero. Mas não sei muito bem quando.
           O professor concordava com a cabeça como se estivesse refletindo no que ele havia falado, uma mania dele que os alunos costumavam apontar em conversas sobre os professores. Alguns amigos de Jimin até o imitavam do mesmo jeito e ele costumava rir muito nessas horas. Quase começou a rir novamente quando viu o gesto, por lembrar das imitações.
一 É que… 一 ele voltou a falar, como se estivesse prestes a dizer algo importante 一 eu recebi uma ligação ontem de um amigo meu que é produtor, e ele me perguntou se eu tinha algum aluno pra recomendar para ir lá fazer uma audição… Eu até ri muito porque por mim eu recomendaria todos na verdade, mas ele pediu pra eu escolher pelo menos uns cinco. Só que ele queria que os alunos também fossem capazes de cantar bem, e vendo agora, e eu acho que você se encaixa nessa lista... Claro, se você concordar em ir.
           A reação que Jimin teve foi surpresa, ele não estava esperando algo assim. Quer dizer, já havia sido chamado por alguns professores para audições, mas não deste que tinha contatos com pessoas tão importantes. Ele não havia dito, mas o produtor provavelmente poderia ser de uma agência famosa. Jimin sentiu a forte vontade de dizer que sim, que iria, sem pensar duas vezes. Mas ele não sabia se deveria.
一 Eu… nem sei o que falar… Muito obrigado por ter me escolhido professor, mas… 一 Jimin falava ainda pensando sobre o que havia ouvido 一 Eu não sei… não sei seu eu tô pronto…
           O professor pareceu surpreso.
一 Você me parece mais do que pronto, Jimin-ssi. 一 disse ele.
           Jimin suspirou. Talvez ele até estivesse, mas não se sentia assim. Era uma confusão de pensamentos porque ao mesmo tempo que ele queria aceitar a proposta, algo dentro dele dizia que ele não podia, e isso o deixava extremamente frustrado. Não sabia de onde vinha essa sensação, mas de alguma forma não conseguia contrariá-la. Estava com medo, e isso era ridículo. Porque ter sonhos tão grandes se você tem medo de começar a realizá-los? Ele pensava. Pensava muitas coisas naquele momento.
一 Não sei se... eu sou tão confiante sobre a minha voz. 一 Ele falava ainda em meio a um emaranhado de pensamentos 一 não acho que eu ainda esteja pronto. Da última vez eu não estava e decidi treinar mais um pouco… acho que eu ainda preciso treinar mais…? Não sei…
           O professor notou a confusão que era tão familiar para ele. A maioria dos seus alunos tinha um grande objetivo e treinava por isso. Talvez o ato de praticar e melhorar seus talentos os deixavam mais confortáveis, porque de alguma forma estavam fazendo algo para alcançar esses objetivos. Mas quando muito deles eram apresentados a uma opção realmente desafiadora de realizá-los, a sensação que ficava era a de medo. Era algo que ele até mesmo já havia sentido antes.
一 Jimin-ssi, 一 ele começou 一 eu sei que você deve estar com medo. Eu entendo...eu também sou muito exigente comigo mesmo. Em uma das minhas primeiras apresentações, eu quase desisti, sabia? Eu não achava que estava pronto. Eu performei, com receio e forçado, e no final eu fiquei bravo comigo mesmo porque havia cometido um milhão de erros. Pra minha surpresa, todos me elogiaram por semanas… Às vezes eu me pergunto se eu tivesse desistido e ido embora por achar que não era bom, será que ainda hoje eu estaria treinando e treinando, sem chegar a lugar algum? 一 Ele voltou a parecer pensativo por alguns segundos e depois riu 一 Às vezes a gente perde muita oportunidade por que pensamos demais, Jimin.
           Jimin concordou com a cabeça levemente, ele sabia o quanto isso era verdade. Sua memória o levou até o dia em que ele e um amigo que dançava com ele decidiram fazer uma audição. No dia, Jimin não pôde ir, acabou ficando muito nervoso para isso. Já o amigo, apesar de nervoso, foi e acabou passando. Jimin ficara feliz por ele, mas ao mesmo tempo aquilo parecia ser um fato que vez ou outra rondava sua mente, avisando-o que ele estava ficando pra trás, que estava perdendo tempo. E isso lhe deixava muito mal.
一 Muitas vezes, por amor ao que fazemos, 一 continuou ele 一 queremos deixar tudo perfeito. Mas a perfeição é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que ela te ajuda a se aprimorar cada vez mais, ela te deixa cada vez mais nervoso e impaciente, e aos poucos vai sendo maior que o amor que sentimos por aquela atividade. Ás vezes tudo o que devemos fazer é nos divertir e aproveitar o amor por aquilo que estamos fazendo e ficarmos surdos para nós mesmos. Exige prática, claro, mas é tão necessário… É melhor do que perdermos, além das chances de seguir em frente, o gosto pelo que fazemos.
           Jimin respirou fundo. Ele estava certo. A cada vez que ele ensaiava, mais exigente era consigo mesmo e dançar era cada vez mais cansativo. Estava realmente cansado disso. Não queria mais permitir-se atrapalhar pelas expectativas provavelmente inalcançáveis, só queria voltar a se sentir bem e livre enquanto dançava, assim como se sentia quando cantava. Não queria que seu sonho se perdesse enquanto ele estava tentando realizá-lo.
一 Então, eu vou deixar que você pense mais um pouco. 一 o professor começou a falar novamente, vendo que o aluno parecia estar pensando no que ele havia falado 一 Mas lembre-se, as vezes nós temos que sair um pouco do nosso conforto e nos arriscar. É assim que os sonhos são realizados. Mesmo que você receba um não, ou vários, ou se machuque no meio do processo, precisa tomar o primeiro passo, porque também podem acontecer coisas boas. 一 O professor bateu no ombro do aluno e em seguida começou a andar em direção a porta.
           Jimin não se sentia pronto, isso era verdade. Outra verdade é que ele talvez nunca se sentiria. Talvez, anos se passariam e ele continuaria em uma sala de prática, dependendo de onde fosse, frustrando-se por conta de um erro ou outro. Mas talvez já fosse hora de deixar de ver tanto os seus erros e começar a enxergar seus acertos, que também eram muitos, mas que perdiam o foco. Se continuasse assim, o seu sonho acabaria se perdendo no meio do seu perfeccionismo, e isso seria algo imperdoável. Ele não queria perder aquele mesmo sentimento que o havia distraído antes, que o fizera cantar e dançar sem propósito nenhum. Sentimento esse que aos poucos já se tornava raro. Pela proteção do seu próprio sonho, deveria começar a perder o medo de errar. Deveria pisar na água, estando ela fria ou não.
一 Diga pra ele que eu aceito. 一 Jimin falou em um impulso, antes de ter tempo para pensar. Uma parte sua se arrependeu logo em seguida, mas ele preferiu não dar ouvidos para ela.
           O professor parou no meio do caminho e virou-se novamente.
一 É só me dizer a data e a hora. 一 Jimin concluiu.
一 Certo então. 一 O professor abriu um sorriso e virou-se novamente para ir embora.
           Estava com medo, incerto, inseguro e confuso, mas não queria mais perder tempo. Estava mais do que na hora de começar a sair do lugar.


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Notas finais do capítulo

Amanhã eu vou postar o capítulo um pouquinho mais tarde porque eu não vou estar em casa, então ele vai sair provavelmente às 9 horas ;)



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