HERÓIS escrita por Felipe Arruda


Capítulo 9
Em Chamas




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— Eu consegui algumas imagens – disse Fernando clicando na tela do celular. – Casei a informação de um roubo de um carro e consegui as imagens desse carro perto de um galpão velho, onde funcionava uma fábrica de queijo de cabras uma vez.

Todos estavam ao redor de Fernando e olhavam para o vídeo em suas mãos na tentativa de identificar alguma coisa que pudesse ser relacionada com Tamires.

— Isso fica perto de onde? – Perguntou Ágata olhando para o vídeo, que pertencia a uma câmera de segurança, no celular de Fernando.

O vídeo mostrava um carro numa estrada rural e em seguida era cortado para outra cena do carro entrando num calçamento no meio do nada. Fernando havia buscado a localização dos radares e chegado à localização da antiga fábrica de queijos.

— Próximo aquele acidente que vocês sofreram aquela vez – disse o garoto. Todos ficaram quietos se lembrando do dia em que Jaqueline quase matara a todos.

Richard se afastou dos outros e disse num tom de voz baixo e carregado de sentimentos indecifráveis.

— Foi onde eu e Cintia nos escondemos da polícia – disse ele. Richard lançou um olhar não muito amistoso para Ian e depois encarou Ágata – é o mesmo lugar.

— E a gente está esperando o que para ir até lá? – Perguntou Kayo animado com a situação.

○○○

Ágata estava a toda velocidade em sua moto com Richard na garupa. Fernando havia voltado para seu QG após receber uma estranha ligação do irmão mais novo. O garoto aproveitou para mandar todas as instruções por celular, caso a policial precisasse.

— Honestamente – disse ele antes de subir na sua Pop branca. – Eu não vou ser muito útil se ela estiver lá mesmo. – Todos o encararam em silêncio. – Eu fico de olho no radar, nas câmeras e filmagens... – ele colocou o capacete na cabeça e abriu a viseira. – Se ela fugir dessa vez, eu vou ver para onde.

A moto foi desacelerando na medida em que Ágata viu uma velha construção em ruínas se aproximando. Ali havia sido uma fábrica de queijo de cabra há dois anos, mas agora nada mais era do que uma velha construção caindo aos pedaços. Nos fundos estava um galpão de madeira, também velho e estranhamente assustador.

Ian e Kayo se materializaram em questão de segundos usando o teletransporte de Kayo. Ágata permanecia parada ao lado da moto olhando para o local estranhamente agourento.

— Você sente isso também? – Perguntou ela para Richard.

— Sentir o que? – Perguntou ele, olhando confuso para a policial.

— Que é tudo irreal – respondeu Ian antes dela. Ele olhava fixamente para um ponto qualquer da velha construção. – Como se estivéssemos presos dentro de outra realidade, outra dimensão...

— Isso me assusta – disse Ágata passando as mãos pelo braço. Ian a encarou por meio segundo, mas não disse nada.

Os quatro deram a volta pela antiga construção e logo se depararam com o carro que Fernando havia falado. Eles estavam prestes a ir em direção a uma grande porta de madeira apodrecida quando ouviram uma voz.

— Vocês pensam que vão aonde? – Os quatro olharam simultaneamente para trás e se depararam com uma garota baixa e com uma expressão felina. O rosto dela tinha o formato como o de um gato, olhos amarelados e garras afiadas.

— Quem é você? – Perguntou Ian a achando estranhamente familiar.

— Tamara – disse ela com um estranho sorriso nos lábios. Ela deu dois passos na direção a eles e Richard se colocou na frente impedindo que ela prosseguisse.

— Pode deixar – disse ele para os outros – eu coloco o gato pra fora – havia uma faísca de desafio nos olhos deles. Richard deu um golpe em Tamara que revidou, iniciando uma luta.

Ian, Ágata e Kayo se viraram e se depararam com um homem com quase dois metros de altura e um corpo com músculos extremamente definidos. Mais uma vez Ian teve aquela estranha sensação de que o conhecia, mas não conseguia lembrar de onde.

— Não tão rápido – sibilou ele com a língua estalando entre os dentes.

Ágata sacou a arma e apontou para ele. Kayo e Ian se posicionaram atrás dela que parecia mais confiante do que nunca com aquela arma na mão.

— Você é grande, mas não é de ferro – disse ela num tom decidido.

O homem riu.

— Tem certeza? – Instantaneamente seu corpo foi revestido por um metal grosso e brilhoso que refletia os raios do sol.

— Puta merda – disse Kayo dando um passo para trás instintivamente.

— Biga? – Perguntou Ian. O homem deu um sorrisinho em resposta. O metal em seu corpo refletia os raios de sol impossibilitando que Ian olhasse diretamente para ele, por conta do reflexo que provocava em seus olhos. Ele sentiu vontade de espirrar.

— Você conhece o homem de lata? – Perguntou Ágata claramente assustada. Ela também havia dado um passo para trás, mas a arma continuava firme em sua mão.

— Não tenho certeza – disse ele buscando na mente qualquer coisa que pudesse indicar de onde ele conhecia Tamara e Biga. – Talvez da ilha... – sussurrou ele, pensando alto.

Biga primeiro atacou Kayo e em seguida Ágata. Enquanto os dois tentavam derrubar o homem de ferro, Richard continuava numa briga feia contra Tamara.

— Eu não quero machucar você – disse Richard para a garota felina.

— Que pena – respondeu ela. – Porque isso é tudo o que eu mais quero fazer com você – ela soltou um rugido animal e investiu outro golpe contra Richard.

Antes que Richard pudesse pensar em qualquer coisa, Tamara o atacou com as garras arranhando completamente o lado direito de seu rosto que logo começou a sangrar. Ele caiu no chão com o impacto e sem esperar muito, Tamara o agarrou pelo pescoço e o jogou contra a parede da casa em ruínas.

Richard rolou para o lado esquerdo desviando de mais um golpe de Tamara. Com os pés, ele se colocou de pé e lançou um golpe contra ela. Primeiro ele deu um chute em seu peito o que a fez perder o equilíbrio e pender para trás, aproveitando o momento, Richard deu um salto e um chute em seu rosto a fazendo cair.

Os arranhados no rosto dele haviam cicatrizado deixando apenas a marca seca do sangue. Tamara olhou para ele atônito.

— Hora de botar o gato pra fora – disse ele agarrando Tamara pelo colarinho e a jogando contra a parede. Ela fincou as garras no braço dele o perfurando profundamente, mas em instantes não havia se quer uma marca.

Tamara caiu no chão, mas logo se levantou, soltou outro rugido de pantera e atacou Richard, que com a força, caiu no chão. A mulher imobilizou os braços dele com a perna e fincou as garras nas laterais de sua cabeça.

Richard soltou um rugido de dor. Ele tentou se mexer, mas os braços imobilizados não ajudavam muito.

— Você é tolo, patético – disse ela. – Você pode se regenerar, não é? – ela riu. – Será que se eu arrancar a sua cabeça você consegue fazer nascer outra no lugar?

Tamara começou a puxar a cabeça dele com as garras felinas ainda presas na carne. Richard sentia que sua cabeça parecia querer descolar do pescoço. Ele gritava desesperadamente, o ar parecia não oxigenar mais seu cérebro, ele finalmente iria experimentar algo que achava não pertencer a seu mundo, a morte.

Richard soltou um grito desesperado enquanto tâmara arrancava com as mãos a cabeça dele.

○○○

Biga deu o primeiro soco em Kayo o fazendo cair com tudo no chão com a boca sangrando. Ágata parou de seguir Ian em direção ao galpão e sem pensar duas vezes, atirou em Biga, que no instante que a bala pegou em seu braço caiu no chão inútil. Os braços de Biga haviam criado uma camada grossa de metal e seu rosto também estava revestido daquele material. Não havia mais nada de humano no homem de quase dois metros de altura.

Kayo tentou dar um soco em seu estômago, mas acabou machucando a mão quando ela entrou em contato com o metal.

O homem de ferro agarrou Kayo pelo pescoço e o jogou novamente no chão como se ele fosse uma bolinha de papel. Com a queda, Kayo bateu com as costas numa pedra que soltou um leve estalo o fazendo gritar de dor.

Biga pisou com toda a sua força na perna direita do garoto a esmagando na mesma hora. Kayo soltou um uivo de dor e continuou imobilizado no chão. O homem de ferro o agarrou pelo braço esquerdo e o quebrou no meio.

— Kayo! – Gritou Ágata desesperada.

— Eu vou quebrar todos os seus ossos – murmurou Biga para Kayo esmagando a outra perna dele.

Kayo caiu de lado com lágrimas no rosto e o corpo numa explosão total de dor. Ele não conseguia se mexer e por mais que tentasse usar seu poder de se teletransportar ele sabia que não conseguiria ir muito longe.

Ainda no chão, ele sentiu seu outro braço ser partido ao meio e depois sua mão. A clavícula foi quebrada logo depois de Biga destruir seus pés. Ele continuava caído no chão, com a cabeça de lado vendo Ágata desesperadamente descarregar sua arma no homem de ferro.

Biga se virou para ela num impulso de fúria e com passos pesados, que faziam o chão vibrar, quebrou o pescoço dela com um único movimento rápido. Kayo tentou chamar por ela, mas a voz não saia de sua boca. Biga deixou o corpo de Ágata no chão e voltou para ele.

O céu estava bem azul, quando Kayo olhou para cima e então escureceu com a sombra do pé de Biga vindo com toda a força em direção a sua cabeça.

○○○

Ian correu até as grandes portas de madeira atrás de Tamires. A porta se abriu facilmente e se fechou assim que ele entrou no velho e apodrecido galpão. Um cheiro forte de gasolina chegou ao nariz dele, não demorou muito para Ian encontrar Tamires no centro do galpão o encarando de volta.

— Oi – disse ele encarando a garota. O rosto dela estava desfigurado. O cabelo estava mais longo e os olhos eram opacos. – Você ainda está viva... – ele encarou a garota que fumava um cigarro tranquilamente. – Eu tinha dúvidas em relação a isso, mas aqui está você...

— Não foi fácil – disse ela. Sua voz era fantasmagórica. Tamires soprou a fumaça para o alto. – Quando o corpo de bombeiros me encontrou naquela noite, eu estava quase morta. – Ela tentou esboçar um sorriso, mas sua boca deformada pelas queimaduras não permitiu. – Eles me levaram para um hospital, onde eu fiquei por um tempo alegando não me lembrar de nada.

Ian não conseguia tirar os olhos dela.

— Eu fingi estar sem memória por muito tempo – continuou ela. – Até que eu me senti forte o suficiente para fugir e iniciar minha caçada atrás de você. – Ian engoliu a saliva da boca toda de uma vez. – Eu sentia você toda vez que você tinha um pesadelo – disse ela. – Você sabe que meu poder é bem amplo e bem forte, não sabe?

— Sei – disse ele.

Tamires tentou outra vez sorrir e o som que saiu da sua boca e que deveria ser de um risinho irônico, soou como um grunhido animal.

— Eu segui você pelas sombras – disse ela. – Eu estive com você em Maringá, no Paraguai e em todos os lugares que você tentou ir depois daquela noite – o cigarro queimava em sua boca. – Eu fiz você voltar... Eu fiz você vir até mim... E aqui está você, Ian.

— Eu fui dominado pelo ódio – disse Ian – pela raiva – ele se referia a noite na Pró-Z. – Eu custo a acreditar até hoje que você foi atrás do Zacarias para alertá-lo que eu queria matá-lo. – Ele não ousava desviar o olhar dela. – Não depois de tudo o que ele fez com a gente...

— Você matou tantas pessoas – disse ela. – Cintia, Eric, Jaque, Eliza, Zacarias, o casal Gasparini... – ela fez uma rápida pausa. – Tentou me matar... – seus olhos se encheram de lágrimas. – E olhe para você, claramente vemos que tudo foi em vão. Tudo o que você tinha que ter feito era ter seguido em frente – disse ela. – No fundo você sabia que seu irmão estava morto, então porque deixar esse rastro de sangue pelo caminho quando tudo o que você precisava ter feito era ter seguido em frente?

— Você nunca entenderia... – disse Ian olhando para os pés.

— Eu sempre te entendi – disse ela. – Eu sempre estive ao seu lado, pronta para qualquer coisa, mas você nunca viu isso da mesma forma que eu via. – Havia magoa na voz dela. – Você nunca me amou como eu te amei, Ian. A verdade é que não adianta eu te falar isso porque você não sabe reconhecer o amor – ele olhou para ela. – Você não sabe o que significa amar porque você nunca amou ninguém. E eu te amei.

Ian encarou Tamires com um nó forte na garganta o estrangulando lentamente.

— Eu deveria alertá-los sobre a merda que você é – disse ela cuspindo aquelas palavras. – Você não é um herói, Ian. E vilões não tem finais felizes.

Os dois continuavam se encarando.

— Olhe ao seu redor – disse ela. – Todos estão morrendo por sua causa. Richard, Kayo, Ágata... é desse jeito que eu vou me vingar por aquela noite. Matar todo mundo e te deixar vivo e consciente de que a culpa é sua.

Ian riu.

— Seus poderes estão mais fortes – disse ele. Tamires o encarou com um vestígio de medo. – Mas você está fraca, está deixando falhas...

Ele então se lembrou de onde conhecia Tamara e Biga. Quando ele e Tamires eram mais novos, um dia na Ilha, eles começaram a conversar sobre quantas pessoas com habilidades diferentes existiam pelo mundo e como seriam essas habilidades.

— Eu acho que deve existir por ai uma garota pantera – disse Tamires. – e ela tem garras afiadas e um rugido de pantera bem alto e assustador.

Ian riu quando a amiga fez uma careta e fingiu ter garras.

— E como ele se chama? – Perguntou ele.

Tamires pensou por alguns segundos e depois disse sorrindo.

— Tamara – disse ela.

— Tamara? – Perguntou ele rindo. – Isso é por um acaso nome de gente?

— E por um acaso Biga é nome de gente? – Perguntou ela rindo.

Os dois começaram a rir. Ele havia acabado de dizer que deveria existir um homem alto e todo revestido de metal com uma força fora do comum que se chamava Biga porque ninguém o levaria a sério com aquele nome.

— Do que você está falando? – Quando ele deu um passo em direção a ela, Tamires gritou – nem mais um passo! – Ian continuou andando lentamente. – Mas um passo e eu mato você!

Ian sorriu.

— Você não pode – disse ele. – Ninguém está morto de verdade Tamires, Richard, Kayo, Ágata ainda estão lá fora, eu consigo sentir – ele andou até ela. – você está tentando usar isso para me assustar, mas perde-los não me assusta.

Ele estava a um passo de distância dela. Naquele mesmo instante, Tamires soltou o resto do cigarro no chão e instantaneamente o galpão se iluminou com fogo.

— Eu não tenho mais medo Tamires – disse ele colocando as duas mãos no rosto dela delicadamente sentindo a pele enrugada do rosto dela em suas mãos. – Só arrependimento. – Seus olhos estavam cheio de lágrimas.

Tamires fechou os olhos e colocou suas mãos sobre as dele. Ian olhou bem fundo dentro daqueles olhos e sorriu. O galpão ardia em chamas e os dois continuavam imóveis.

— Eu te amei tanto – disse ela deixando uma lágrima escorrer.

 

Eu guardo uma memória de nós dois. Uma das minhas memórias preferidas sobre nós. Uma sobre uma tarde quente onde nós conversávamos sobre o futuro, mesmo sem entender qualquer coisa sobre ele, quando você disse algo que me fez ter uma crise de riso.

Você havia acabado de dizer algo bobo, mas aquilo pareceu tão engraçado para mim que lágrimas escorreram dos meus olhos de tanto que eu ri. Então eu deitei naquele gramado tão verde e tão frio e ignorei sua cara de brava.

A princípio você ficou irritada, mas logo cedeu e deitou ao meu lado, rindo também. E naquele instante eu podia jurar que a sua risada seria capaz de preencher céus e mares.

Depois da crise de riso nós permanecemos deitados no gramado olhando as árvores altas e os raios de sol que passavam por entre as folhas. A tarde então pareceu menos quente naquele momento. Tudo ficou tão suave e tênue como numa realidade paralela. Um sonho bom do qual você fica triste quando acorda.

A dois palmos de distância eu te encarei olhando para o céu por mais três segundos até nossos olhares se encontrarem. Então o silêncio preencheu o momento mais uma vez enquanto recuperávamos o fôlego e eu aproveitei o tempo para decorar todos os traços do seu rosto. A testa estreita, o nariz pequeno, as bochechas rosadas e o batom claro em seus lábios. Eu pude sentir seus olhos decorando cada traço do meu rosto também e aquilo me fez rir. E você riu daquilo.

Naquele momento nenhuma arquibancada cheia de torcedores e nem os gritos de um Maracanã lotado poderiam preencher aquele instante como nós havíamos preenchido.

Eu gosto de me lembrar desse tempo mesmo que agora a memória me deixe mais triste do que feliz.

 

Todas as lembranças dela de repente estavam na cabeça dele. O rosto de Tamires foi secando e o brilho nos olhos sumindo. E assim como todos aqueles de quem Ian havia tirado a vida usando suas habilidades, Tamires caiu no chão como se fosse uma casca velha e vazia. Sem vida, sem alma, e sem mais lembranças.

— Eu ainda te amo – disse ele chorando compulsivamente. O galpão velho começou a despedaçar lentamente. Ian estava preso dentro de uma enorme fogueira. Sua pele ardia a cada instante mais.

Sem forças, ele se ajoelhou e ainda chorando, esperou que tudo virasse cinza, depois das chamas.


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