Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 2
Um passageiro indesejado


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
John Lennon é despedido de uma empresa de logística por se ter enganado numa encomenda de um cliente muito importante. Quando regressa a casa no seu velho carro não se apercebe de que não está sozinho.



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John Lennon sentia-se o homem mais desafortunado do mundo.

Não, corrigiu-se mentalmente… o homem mais desafortunado do Universo inteiro. Nem queria acreditar no seu azar, no tremendo infortúnio de ter perdido mais aquele trabalho e quando sabia que isso não podia acontecer. O Instituto de Emprego não iria aceitar as suas desculpas, nem o técnico que o atendesse seria compassivo, em face da sua ficha deplorável que revelava uma instabilidade crónica no que tocava a uma profissão. Dezasseis empregos arruinados…

Ele não tinha conta bancária, achava um desperdício abrir uma conta para depositar meia dúzia de tostões, recebia o salário através de cheque que ia levantar ao banco. Guardava metade do dinheiro na carteira, a outra metade espalhava por diversos esconderijos pela casa. Começava por gastar o que tinha na carteira e assim que as notas sumiam e esta emagrecia, ia explorando os lugares onde sabia que havia dinheiro escondido. Era como uma pequena caça ao tesouro, fantasiando que não sabia que este estava ali. Na realidade nunca sabia quanto é que escondia em casa, fechava os olhos quando empurrava a gaveta, tapava a caixa ou enfiava um rolo de notas debaixo do colchão, pelo que era quase uma verdadeira caça ao tesouro. Às vezes eram vinte, outras vezes eram cinquenta ou mesmo setenta euros.

Naquele momento ele sabia que a sua casa estava tão despida como a sua carteira. Se encontrasse uma nota de cinco euros já se podia considerar afortunado. Estava à espera de receber dali a dez dias… Era muito tempo, pôs-se a pensar. Iria revirar o quarto onde morava até ter a certeza de que recuperava todo o dinheiro que escondera.

O carro rolava devagar pela estrada pouco frequentada, àquela hora passavam poucos veículos por ali pois a maioria das pessoas estava a trabalhar. O ponteiro do velocímetro indicava sessenta quilómetros por hora e já era uma velocidade enorme para aquele chaço enferrujado. Sim, um ponteiro num mostrador embaciado, que o carro era tão velho que não tinha um painel digital moderno.

Olhou pela janela meio aberta – pois o vidro não baixava até ao fim, por muita força que imprimisse na manivela. Sim, uma manivela, nada de vidros elétricos.

Passava por quintas com terrenos cultivados até perder de vista com milho e trigo, pomares de árvores a exibir frutos deliciosos e brilhantes. Sentiu fome. Do outro lado, o terreno recortava-se em propriedades particulares, enfeitadas com palmeiras e outras árvores exóticas, jardins luxuriantes com piscina, mansões imponentes com os seus telhados de ardósia a brilhar ao sol. O tal senhor Moreira que tinha ficado aborrecido por causa da comida de cão – ao pensar no assunto, achou que o homem já devia andar com a ideia de cortar relações com a empresa e só estaria à espera de uma desculpa para fazê-lo – devia morar numa casa daquele calibre, grande como um palácio, cheio de criadagem e… de cães para guardar os seus muros. Portanto, se não podia usar a comida canídea para a tal festa, podia dá-la aos fiéis animais e aproveitava a encomenda. Claro, só precisava de uma patética desculpa para armar aquela confusão e ele, ainda mais patético, provocara a desgraça que acabara por afetá-lo também.

Era injusto. O chefe se quisesse…

— Bah!

Abanou uma mão. Não se importava com nada daquilo e era uma estupidez estar a pensar naquele patrãozinho asqueroso que, tal como esse Moreira, só estava à espera de uma razão mesquinha para despedi-lo. Fim da história.

Ouviu um estalido junto à orelha direita.

— Isto é um assalto! Não faças nenhuma estupidez…

Ao tentar olhar para trás, sentiu um objeto frio a bater-lhe na têmpora. Seria o cano da arma que escutara ser destravada. Reparou que levava alguém no banco traseiro, um homem, mas não conseguiu ver-lhe o rosto. A pistola negra impedia-o de fazer gestos bruscos e era só o que mais lhe faltava, ser despedido e morto no mesmo dia, por causa de duas inutilidades que não lhe diziam respeito.

Por outro lado, aquela situação atual pareceu-lhe tão caricata que perguntou:

— Estás a falar a sério?

— Claro que estou a falar a sério! Estás a ser assaltado!

— Eu? O que esperas roubar-me?!

O homem rosnou e respondeu:

— Qualquer coisa que valha a pena ou não me dava a tanto trabalho, espertinho!

— Eu não tenho nada… – A seguir ele percebeu o motivo por que transportava aquele clandestino. – Ah! Entraste neste carro…

— Porque era o único que estava destrancado.

— Claro que estava destrancado! Não existe nada aqui dentro para roubar. Nem rádio tenho.

Apontou para o buraco ao lado do porta-luvas onde deveria estar o rádio.

— Quando quero ouvir música ponho-me a cantar. Assim…

E começou a murmurar uma melodia, por certo a mesma que tinha escutado enquanto fumava descansado o seu cigarro, antes de a sua vida ter dado um trambolhão tão grande que agora estava a conduzir o seu carro de volta para um quarto vazio, desempregado e a ser assaltado por um idiota.

— Cala-te! Dá-me a tua carteira.

— Está no bolso de trás das calças e estou sentado em cima dela. Não me dá muito jeito tirá-la agora, estou a conduzir. Se faço um gesto brusco com o volante, dou uma guinada valente, tu cais para o lado e essa arma ainda dispara sem querer.

— Dá-me a carteira, já disse – insistiu o outro, nervoso.

— Escuta, só lá tenho um punhado de moedas. Não vale a pena morrer por um punhado de moedas, não vale a pena ires para a prisão por homicídio por um punhado de moedas.

— Quero ver se é mesmo assim.

— Tens toda a razão. Tens toda a razão. Posso estar a querer enganar-te. Olha, acabei de ser despedido…

— Quero lá saber da tua vida!

— Posso fazer uma proposta? Vai agradar-te – atirou quase em desespero. Queria afastar aquele cano negro da sua testa.

O assaltante pensou por alguns segundos e depois concordou:

— Diz lá…

— Salta aqui para o banco da frente. Tiras-me a carteira do bolso, fazes a tua inspeção, tiras o que quiseres. Sei que não é muito, mas é o que eu tenho. Conversamos mais um pouco… Quero é que afastes essa pistola da minha cabeça!

— Estás a ser assaltado e eu tenho uma pistola. É normal que a vá usar como o estou a fazer!

— Claro, claro, tens toda a razão… Mas isso pode disparar sem querer, no meio da nossa negociação e tu não vais querer isso. Pois não?

O seu estômago contraía-se com o medo que estava a sentir.

— Nós estamos no meio de uma negociação? – troçou o assaltante.

— Bem, estamos a conversar e isso já é um princípio. Ofereci-te lugar no pendura. Vá lá, aceita… E baixa essa pistola.

— E por que razão eu iria fazer isso?

— Nunca viste o Pulp Fiction? – Explicou compenetrado: – Numa cena do filme uma pistola disparou sem querer dentro de um carro e fez uma porcaria tão grande ao atingir a cabeça de um tipo que tiveram de levar o carro até um lugar especial para o lavarem… Além disso, eu sou o condutor. Imagina que me davas um tiro, o carro despistava-se e morrias comigo. Era um pouco… esquisito.

Relutante e zangado, o assaltante suspirou e baixou a arma. Com alguma agilidade passou por cima do encosto e sentou-se ao lado dele. John girou a cabeça para fazer uma avaliação do cenário. Primeiro descobriu a pistola na mão direita do tipo, pousada no colo mas com o cano apontado para si. De seguida viu que o assaltante era um jovem adulto como ele, mais ou menos da mesma idade, com o mesmo aspeto desleixado, desamparado e exaurido, de calças rasgadas e blusa sebenta, um ligeiro odor a suor, o cabelo despenteado e olhos azuis entristecidos.

— Não queres guardar isso? – pediu a medir a posição da pistola, com o maldito cano negro ainda a mirar na sua direção.

— Dá-me a carteira – resmungou o assaltante.

Ele levantou-se ligeiramente do assento, com cuidado para manter o pé no acelerador. Expôs o bolso das calças e o assaltante puxou a carteira. Abriu-a ansioso, remexeu em todos os compartimentos, sacudiu-a, algumas moedas escuras caíram.

— Ei, isso ainda dava para beber um café! – protestou John.

— Ah, cala-te! – ordenou o assaltante frustrado, atirando com a carteira vazia por cima do ombro. Esta foi aterrar algures no banco traseiro.

— Eu disse-te que não tinha dinheiro.

— E acabaste de ser despedido, hum?

— Exato.

O assaltante passou uma mão pelo queixo e abanou a cabeça, pensativo.

— Pois… Pois…

— Queres que te deixe em algum lugar? – perguntou John, espreitando a pistola que já não estava apontada para si. – Vou para a cidade.

O assaltante empunhou novamente a arma, o cano na direção do rosto de John.

— Eh, isso é perigoso!

— Nada de gracinhas – avisou o assaltante.

— Estou a ser engraçado?

— Falas demais!

— Está bem, não digo mais nada… Mas deixas-me inquieto com essa coisa a ameaçar-me.

— É a minha garantia!

— Já percebi!

— Sim, continua para a cidade. Estou a pensar no que fazer…

— Precisas assim tanto de… dinheiro?

— Tu também, pelos vistos – resmungou o assaltante.

— Pois preciso. Mas…

— Mas o quê?

— Ah… esquece…

— Mas nunca te deu para seres ladrão. Era isso o que irias dizer?

— Mais ou menos – suspirou John.

A linha de arranha-céus do centro da cidade já se via, ao fundo. Enormes estruturas de aço e betão rutilantes, devido às imensas janelas que cobriam as fachadas. Havia muita riqueza no mundo, pensou ele, estava era mal distribuída. O tráfego aumentou, mas mesmo assim era pouco comparado com o ajuntamento de carros que ocorria durante a hora de ponta naquela entrada da cidade.

— Podes dar nas vistas a segurar uma arma junto à minha cara – observou John.

O assaltante baixou a pistola.

— Tens razão, não devemos alertar ninguém para o que está a acontecer.

— Olha, eu não faço queixa se…

— Cala-te! Continuas a falar demais.

— OK, amigo – desistiu John, mais descansado por ver o outro a segurar a pistola com as duas mãos entre as pernas, com o cano apontado para o tapete esfarrapado do lado do pendura. Tentou parecer simpático: – Uh… Como te chamas?

Depois percebeu que poderia ter sido exagerado. Não desejaria realmente travar conhecimento com um meliante… E o outro poderia irritar-se ao ponto de se pôr aos berros junto ao seu ouvido direito e deixá-lo surdo. O assaltante, todavia, respondeu.

— Ringo.

— Aposto que esse é um nome artístico. Aposto que é o teu nome de… bandido.

— Ganhavas essa aposta.

Houve um indício de sorriso que logo o assaltante apagou da sua expressão fechada. John descobriu que estava a ver alguém que disfarçava a sua verdadeira personalidade, o rapaz até seria simpático e acessível fora da pele daquele personagem fora-da-lei.

— Como te chamas mesmo, companheiro?

O assaltante fixou-o com as sobrancelhas tão carregadas que formaram uma linha hirsuta por cima dos olhos azuis. Afundou no assento, desanimado. Limpou o suor da testa com as costas da mão que segurava a pistola e respondeu:

— Starkey. Richard Starkey.

— É um prazer. Lennon, John.

— Digo o mesmo. É um prazer.

Deram um aperto de mão breve.

— Mas chama-me Ringo, por favor.

— Certo… Ringo.

Forçando o volante, pois o automóvel não possuía direção assistida, John gingou entre os outros carros que entravam na cidade, tentando não ficar parado no trânsito pois acreditava que Ringo – era estranho chamar o ladrão que estava a transtornar o seu dia pelo nome, mas fingia uma certa proximidade e empatia – também não o desejava. Revirou os olhos, quando voltou brevemente a cabeça para a esquerda, para conferir pelo espelho lateral se podia ultrapassar o carro da frente. Mais uma pérola a acrescentar a todas as que estava a colecionar naquele dia. Despedido, sem um tostão para comer nos dez dias seguintes e a fazer amizade com um criminoso. Um excelente currículo para melhorar a sua imagem perante o Instituto de Emprego!

Perguntou para quebrar o silêncio:

— E agora, o que vais fazer?

— Estou a pensar! Estou a pensar! – retrucou Ringo abanando a mão esquerda, como que a enxotar as perguntas dele.

John insinuou:

— Deixo-te onde quiseres…

— Vais comigo até ao fim, amigo!

A declaração brusca enervou-o. John mordeu os lábios.

— Se avisares alguém, desfaço-te a cabeça.

— Ringo, pensava que éramos amigos.

A pistola surgiu, perigosa e negra, junto ao seu crânio e desapareceu.

— Não faças nenhum sinal a ninguém. Fica o aviso.

Estavam rodeados de carros, John abrandou a marcha calcando suavemente no pedal do travão, moderando a velocidade. Acionou o pisca e fez uma curva à direita.

— Ouve lá, amigo— disse, olhando para os passeios onde transeuntes caminhavam despreocupados, metidos nas suas vidas, ignorando o drama que estava a acontecer dentro do carro. – Ouve lá, já percebeste que não podes roubar nada de mim, não tenho dinheiro.

— Posso ficar com este carro.

— É demasiado velho.

— Então o carro vai levar-me onde quero ir.

— E onde queres ir?

Surgiu um semáforo mais adiante, John praguejou, não queria parar mas o sinal estava vermelho e na rua transversal passavam os carros que, nesse cruzamento, obedeciam ao verde que lhes indicava terem prioridade.

O Renault parou com um guincho e a carroçaria ficou a trepidar, em ponto-morto, enquanto aguardavam que ficasse verde para eles. A cidade estava animada naquele início de tarde, iluminada por um sol radioso. Se não tivesse aquele passageiro indesejado estava um dia excelente para dar uma volta, ir ver as vistas, esquecer-se de que tinha perdido o emprego, pensou John contrariado.

Nisto, Ringo pulou para o banco traseiro. Quando ia-lhe perguntar porque desistira de o acompanhar, este explicou:

— Penso melhor com espaço. Aí à frente estou com os joelhos entalados.

John suspirou.

— Faz como quiseres. Mas despacha-te que eu não tenho muito combustível.

— Deves estar a brincar.

— Estou com muita vontade de rir, não haja dúvida – murmurou começando a zangar-se.

— Assaltamos uma bomba de gasolina e pronto, problema resolvido.

— Essa é uma boa ideia.

— Assaltar uma bomba de gasolina?

— Sim! Normalmente as máquinas registadoras estão atulhadas de dinheiro.

— Má ideia. Muitas testemunhas a esta hora, seria melhor se fosse de noite.

— Tens razão, podemos esperar que anoiteça…

— Estás a tentar livrar-te de mim? – exaltou-se Ringo.

— Não, longe disso. Não somos amigos? – corrigiu John sarcástico. – Amigos até ao fim…

— Hum… Pode haver outro lugar melhor para roubar a esta hora.

— Diz-me onde é e deixo-te lá.

Ringo gargalhou.

— Pensava… que éramos amigos!

O fluxo de automóveis na rua transversal àquela onde o carro tremelicava como se se fosse desmanchar em peças e ferrugem começou a abrandar, o que queria dizer que o semáforo iria fechar desse lado e abrir naquele. John engatou a mudança para arrancar fixando o vermelho que passaria a verde dentro de alguns segundos. Pôs-se a contar mentalmente.

E em cinco, quatro… Vá lá, três? Dois e um? Não… Agora é que vale, três, dois…

A porta do lado do pendura abriu-se e entrou um terceiro ocupante daquela viatura condenada, em todos os aspetos possíveis, desde perto da destruição até símbolo de uma sentença irrevogável.

John girou a cabeça num movimento rápido.

O rapaz aprumado, vestido de fato e gravata, cabelo escuro bem penteado, olhos sorridentes e cara alegre cumprimentou-o.

— Não resisti quando vi que eras tu. Olá John! O que fazes aqui, a esta hora? Pensava que estavas a trabalhar.

John arquejou.

— Paul?!


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Notas finais do capítulo

Ficámos a conhecer Ringo, que não anda muito bem na vida para se ter tornado num bandido - será que ele é tão ameaçador como quer parecer?
E Paul acaba de entrar no "carro condenado". Pelos vistos John conhece-o... E Paul também conhece o John.
O que irá acontecer a seguir?

Próximo capítulo:
Um bando respeitável de ladrões.