Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 3
Um bando respeitável de ladrões


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
John Lennon descobre que está a ser assaltado no seu próprio carro por um bandido um pouco trapalhão que, a dado momento, apresenta-se como Ringo Starr, nome artístico de Richard Starkey. Como John não tem nada que valha a pena ser roubado seguem para a cidade. Quando o carro para num semáforo, entra Paul McCartney que cumprimenta o seu amigo John.



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Paul McCartney tinha acabado de entrar no seu carro e fechava a porta.

O semáforo passou a verde.

Movido pelo instinto e pelo estímulo da mudança de cor no sinal luminoso, John soltou o pedal da embraiagem e acelerou, fazendo o carro avançar e atravessar o cruzamento.

Sentiu o suor empapar-lhe as axilas, de tão nervoso. Paul McCartney tinha sido seu colega na escola secundária, um grande amigo que partilhava com ele o gosto pela música. Escrevia letras e compunha canções simples de amor numa velha viola, ele gostava de complementar essas obras com alguns versos e uns tantos acordes. Enquanto Paul tinha seguido os estudos e frequentara um curso técnico numa universidade, ele tinha começado logo a trabalhar porque estava farto do ambiente académico, principalmente da prepotência dos professores que nunca lhe tinham ensinado nada que fosse útil e que o ajudasse na sua vida profissional. Os resultados estavam à vista: só com o ensino obrigatório não conseguia manter um emprego por mais de cinco meses.

Paul era inteligente e interessado pelo funcionamento da sociedade, não sabotava as ofertas que existiam e tinha uma vida organizada. Trabalhava num escritório de advogados e complementava os seus estudos com um curso noturno. Podia-se dizer que era um jovem adulto bem-sucedido, com objetivos razoáveis para uma vida organizada, simples e fácil.

Era seu amigo, cogitou John num pensamento rápido como um relâmpago fugaz a cortar-lhe o cérebro, estava em perigo de morte e desconhecia o facto, ao ter entrado inesperadamente naquele carro. Se acontecesse alguma coisa a Paul, ele sabia que a sua reação iria ser extrema.

— John, não vais dizer nada? Estás demasiado calado…

— Macca… – gemeu.

Paul ficou sério.

— Aconteceu alguma coisa?

— Costumas fazer serviço gratuito de táxi, é?

A pergunta partira do banco traseiro e Paul voltou o pescoço para descobrir o terceiro passageiro, recostado no banco de estofos estalados e queimados pelo sol. Este sorria-lhe e Paul hesitou.

— Eh… Olá… – Perguntou ao amigo, admirado: – Estás a passear ou…? O que se passa, John? Não devias estar a trabalhar?

John olhou pelo retrovisor e avisou, entredentes:

— Cala-te, Ringo. Limita-te a ser o… o que és nesta história.

— Com muito gosto.

Paul voltou-se outra vez para trás, estendendo a mão.

— Chamas-te Ringo? É um prazer conhecer um amigo do John… Chamo-me Paul.

O bandido apertou a mão a Paul. Pelos vistos, a pistola não se encontrava visível ou teria sido mencionada como pormenor anormal daquela cena que já passara a surrealista. John suspirou alto. Conduzia o carro pelas artérias ensolaradas da cidade, sem saber que direção tomar. Manobrava o volante fazendo as curvas, em modo automático. Conferiu as tabuletas que indicavam o centro. O mais prudente seria afastar-se da confusão, pois não queria provocar o bandido. Se por vezes parecia amável e confiável, noutras temia que se descontrolasse ao ponto de perder as estribeiras e desatar aos tiros. Estava armado, era um desconhecido, podia ser imprevisível.

Espreitou o lugar do pendura. O amigo estava bem vestido, como sempre, com um casaco leve de verão, uma gravata florida sobre uma camisa fresca, calças vincadas, os sapatos engraxados. Depois percebeu que Paul estava sério. Já tinha percebido que alguma coisa não estava bem… Não por causa do passageiro no banco traseiro, mas por causa das horas e de ele estar a passear-se pela cidade. Para evitar afundar-se ainda mais naquela situação, adiantou-se.

— Ei Macca! – Fingiu alegria. – E o que fazias por estes lados?

— Estava a entregar uns documentos a um cliente. Já liguei para o escritório e estou livre para o resto da tarde… E tu, meu amigo?

— Uh… Estou a dar umas voltas com… um colega novo que não conhece a cidade.

— O Ringo?

— Sou teu colega? – perguntou o bandido divertido.

— Por que é que estás a mentir-me? – quis Paul saber, franzindo a sobrancelha.

— Não estou a mentir-te.

— Sim, estás. – Cruzou os braços. – Foste despedido outra vez?

— Sim, ele foi despedido – confirmou o bandido, acenando com a cabeça, parecendo solidário com a situação.

— Cala-te Ringo! Achava que não querias saber da minha vida – exclamou John zangado.

— Estou a gostar do passeio.

— Ainda não me disseste onde querias que eu te deixasse!

— Ainda estou a pensar.

— Querem calar-se, vocês dois?! – pediu Paul enervado. – Ouve, John, se perdeste o teu emprego estás metido em problemas. Sabias que não podias largar este trabalho! Como vais sobreviver, daqui para a frente?

— Contava com o teu conselho, Macca.

— O meu conselho?

— Trabalhas numa empresa de advogados, deve haver alguma lei que se possa usar…

— As leis não se usam, Johnny!

— Bem… e em relação ao Instituto de Emprego? Poderias ajudar-me a dar a volta aos tipos que avaliam o meu processo.

— Já o fiz por duas vezes, acredito que não me vão dar crédito à terceira vez. E tenho de manter a minha reputação, sabes. Trabalho numa importante firma de advocacia, não pode haver qualquer suspeita sobre o meu nome.

— Ah! Largas o teu amigo aos animais selvagens… por causa da tua reputação? – indignou-se John.

— Não sejas injusto! Tenho-te ajudado sempre que posso – defendeu-se Paul ofendido. – E irei defender-te também com este problema, mas temos de ver uma nova abordagem… Não pode ser como da última vez, com uma pequena ajuda do primo do meu chefe. – Espetou-lhe um dedo. – E tu vais ter de colaborar, Johnny! Não podes perder todos os empregos que arranjas. O que foi que fizeste desta vez?

— Não fiz nada!

— Conta a verdade, Johnny.

— Bem, enganei-me numa encomenda…

— Enganaste-te numa encomenda. Fizeste asneira da grossa!

— Mais ou menos. Não estava com atenção… Não me lembro bem do que aconteceu.

No banco traseiro, Ringo sorria enquanto assistia à conversa. Voltava a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse num jogo de ténis, à medida que falava um, ora falava outro, escutando os argumentos e contra-argumentos com que se desenvolvia a discussão.

— E o que vais fazer agora? Tens dinheiro contigo?

— Não! – interrompeu Ringo. – Só umas poucas moedas.

— Como é que sabes isso?

A voz de Paul sumiu-se, tragada com uma golfada de ar. Atrapalhado e agitado, disse para John:

— Ele tem uma arma! O teu amigo Ringo tem uma arma!

Os ombros de John descaíram. Olhou para a esquerda e resolveu prosseguir por aquela rua. Estava a evitar todos os semáforos e as artérias citadinas mais concorridas. As árvores plantadas no passeio proporcionavam uma sombra agradável e o carro rolava mansamente entre essas ilhas mais escuras, filtradas pelo sol.

— O que é que estás a inventar, Lennon?! – exclamou Paul.

John fechou os olhos por um instante, só por um instante pois não se podia distrair na condução. Quando Paul tratava-o pelo apelido, o assunto tinha-se tornado muito sério. Lembrava-se de todas as vezes que o amigo chamara-o dessa maneira e não tinham sido muitas, contavam-se perfeitamente pelos dedos de uma mão. Menos de cinco, de certeza.

Ele abriu a boca para tentar explicar que estava a ser roubado, soava estúpido pois ninguém iria roubar alguém como ele, vestido com roupa velha e rasgada, com uma carteira vazia e que se deslocava numa sucata sobre rodas, mas era a mais pura verdade. Antes de conseguir formar uma frase coerente que começou assim:

— Não estou a inventar nada…

Paul concluiu o seu raciocínio, o que ele tinha inferido daquela cena toda:

— Foste despedido e a primeira coisa que te ocorreu foi ires assaltar um banco?

Ringo endireitou as costas.

— O que foi que disseste?

John apressou-se a negar.

— Não, Macca! O que raios pensas de mim?! Posso ser um tipo impossível de lidar, com uma queda involuntária para começar uma revolução sem sentido, contestatário, sonhador e louco, mas não me meto em esquemas ilegais!

— Isso é uma excelente ideia!

John e Paul olharam para Ringo.

— O que estás para aí a dizer? – indagou Paul.

— Já sei onde quero ir… amigo— retorquiu o bandido com os olhos a brilhar de avidez, batendo no ombro do condutor. – Já sei onde me vais deixar, nesta cidade grande.

— Não estou a gostar disto… – murmurou John.

— Vamos assaltar o Banco Central!

O anúncio de Ringo fez John estremecer. Paul quedou-se boquiaberto de perplexidade.

— O que estás a querer inventar? – protestou indignado. – Vamos? Nós não somos nenhum bando de assaltantes! – Voltou-se para John. – Esse “vamos” é contigo? Disseste que eram amigos.

— Não, esse daí não é meu amigo – explicou John, por fim, impaciente.

— Esse daí? – estranhou Ringo.

— Estou a ser assaltado… Entrou no meu carro no parque de estacionamento da empresa e só me apercebi que levava um clandestino quando estava a meio do caminho da cidade e sem hipótese de pedir ajuda. Tem uma arma, como viste!

— Estás a ser assaltado? Tens alguma coisa para roubar?

— O carro estava destrancado – explicou-se Ringo.

— Continuas a deixar o carro destrancado? – perguntou Paul.

— Quem é que quereria levar este carro velho?! – disse John.

— Criaste esta… situação por não trancares o carro – esclareceu Paul irritado. – E agora também eu estou metido nisto! E a minha reputação? Trabalho num escritório de advogados.

— Ninguém mandou que te metesses no meu carro!

— Não sabia que estavas a ser assaltado!

— Nem te podia avisar. Levava com um tiro!

— Ei, ei! – cortou Ringo agitando a arma por cima da cabeça dos outros dois. – Querem parar com isso? Não vai adiantar nada.

Paul afundou-se no assento, cruzou os braços, fungou amuado. Ringo prosseguiu:

— Temos um plano e é isso que interessa agora. Para o Banco Central!

John rebateu:

— Isso fica no centro.

— Acho que o nome refere esse pormenor, muito obrigado.

— Estou a evitar o centro. Podemos encontrar muita gente.

— Passas pelo centro e diriges-te para o banco, sem parar. Existe um atalho em que não vais encontrar semáforos. Também os estás a evitar, não é? A esta hora a rua do banco está praticamente deserta e sem guarda policial.

— Parece que já tens um plano todo alinhadinho, não é? – ironizou Paul a olhar para a sua janela.

— Sou um bandido previdente e tenho vários alvos em vista. O Banco Central era um deles.

— Então não vais precisar de nós.

— Agora que vos tenho, são um trunfo que me vai garantir o sucesso do roubo. – Esticou o queixo na direção do condutor. – Já que este aqui é um pobre diabo que não tem onde cair morto… Tive azar ao escolhê-lo para ser roubado, agora vai até ao fim para me compensar.

John rosnou.

— Tu também não me pareces muito abonado ou não estarias com essa ideia de assaltar um banco – afirmou Paul com algum azedume.

— Abonado?

— Sem dinheiro! Deves estar desesperado também.

— Para além de advogado também és psicólogo?

— Não sou advogado – corrigiu Paul –, trabalho num escritório de advogados. Quero ser… Bem, estou a estudar administração, penso abrir uma empresa minha em breve.

Ringo pensou no que tinha acabado de ouvir.

— Quer dizer que tu serias um tipo interessante para assaltar?

— Eh… Não, não foi bem isso que quis dizer.

— Tens aí a tua carteira?

— Calma aí, Ringo! – cortou John. – Se vamos assaltar um banco, não vamos assaltar o meu amigo.

— Existem essas opções? – admirou-se Paul, formando dois arcos com as sobrancelhas. A sua cara era engraçada e John mordeu os lábios para não sorrir. A situação era séria.

— Não, não existem – esclareceu Ringo. – Vamos assaltar o Banco Central e essa é a minha decisão final!

— Isso foi uma decisão só tua. Nós podemos não concordar.

— Eu tenho a arma. Eu sou o chefe.

— Ah, pois…

Paul mostrou as mãos em sinal de rendição.

— Não estamos a ser razoáveis.

— E desde quando esta situação, a transportar um criminoso armado no banco de trás de um carro, classifica-se como razoável? – declarou John com um suspiro irritado. – Vamos lá para o Banco Central!

— John, não precisamos de fazer isto.

— Temos alternativa, Paul?

Ringo segurou a pistola com as duas mãos.

— Não, não têm alternativa – respondeu com um meio sorriso. – Segue para o Banco Central e continua a evitar as ruas principais. Estás a ser inteligente ao proceder dessa maneira. De certeza que não queres abraçar esta profissão? Tens jeito!

— Não, ele não quer abraçar esta profissão! – contestou Paul cruzando novamente os braços.

— Não te zangues, advogado. A partir deste momento também fazes parte… deste respeitável bando de ladrões.

— Que absurdo!

— Se a polícia nos apanhar não tens defesa possível. Como vais justificar a tua participação neste carro?

— Neste carro estão pessoas inocentes. Seremos duas testemunhas contra ti… Ringo! Existe uma história que pode e vai ser contada, por mim e pelo meu amigo. Conseguimos provar a nossa inocência, perfeitamente, de como estamos a ser coagidos para atuar ao teu lado nesta aventura idiota que poderá ter consequências graves. 

John apertava os dentes, conduzindo o automóvel na direção do centro, aproximando-se devagar do seu objetivo. Ele conhecia o Banco Central, era um edifício austero, construído em tijolo vermelho, com grandes portas encimadas por arcos perfeitos e janelas estreitas de vidraças espelhadas. A marcha lenta, casual, anónima do velho Renault era para despistar possíveis suspeitas pois não desejava alertar ninguém e muito menos as autoridades para o que estava a acontecer. Era ligeiramente embaraçoso admitir que estava a ser coagido quando o seu carácter tinha um cunho orgulhoso. Não se podia livrar daquele convidado indesejado dando-lhe um murro no meio da testa, deixando-o inconsciente? Havia sempre a questão da arma, mas e se fosse apenas um brinquedo e se não existissem balas na câmara? Perguntas pertinentes que ele começou a considerar.

Ringo fingiu um bocejo.

— Esse teu discurso é tão aborrecido… Paul!

— Não te quero cativar com as minhas palavras, só preciso de convencer a polícia. Quando chegarmos ao Banco Central…

— Não vais fazer nada de estúpido ou de precipitado – avisou John preocupado.

— Nós vamos ter de reagir, John! Perante a polícia, vais fingir que estás combinado com este… com este…

— Eu sei, Paul… Acalma-te. Por enquanto faz o que ele mandar.

— Escuta o teu amigo, ele está a ser bastante sensato. Não queria que isto acabasse mal.

— Segundo a tua opinião, isto está a correr bem?

— Bastante bem. A esta hora da tarde, o assalto vai correr às mil maravilhas.

Paul abriu a boca para protestar, não conseguiu dizer nada porque o carro deu um solavanco quando abrandou e teve de se agarrar ao banco para não bater com a cara no tabliê.

— Chegámos – anunciou John sem qualquer entusiasmo.

O edifício do Banco Central encontrava-se à direita, um bloco compacto e grandioso que ocupava um quarteirão daquela rua larga. A sua forma de cubo vermelho assemelhava-se a um gigantesco cofre-forte, atulhado até ao teto de notas, moedas e barras de ouro. Claro que apenas uma parte do prédio estaria ocupada com esse cofre-forte, mas a imaginação e os nervos faziam-nos inventar cenários despropositados. Ringo agitou-se, Paul congelou. John, contraído, travou o carro, desligou o motor, estacionando junto ao passeio que dava acesso à instituição bancária.

— E agora, o que fazemos?

O plural naquela frase arrepiou Paul McCartney até ao tutano.


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Notas finais do capítulo

Paul McCartney entrou na hora errada no carro de John. Agora também ele é refém de Ringo Starr que, a partir de uma frase inocente proferida numa conversa de nervos, tem a ideia de ir assaltar o Banco Central.
A situação começa a complicar-se e a tornar-se mais perigosa. Ringo continua armado - e será uma arma verdadeira, como pensou John? - Paul está a provocá-lo e John começa a aborrecer-se com aquela situação...

Próximo capítulo:
Outro refém.