Nós escrita por Matheus Gama


Capítulo 4
Eu sei se eu caso ou se compro uma bicicleta


Notas iniciais do capítulo

Olá?

(POV Leonardo)



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Depois que Carla contou algumas histórias sobre seu casamento e a adolescência de Beto, ele a interrompeu para avisar que o almoço ainda tinha de ser preparado.

Ela desconfiou que ele estava cortando o assunto por puro constrangimento dos relatos de seu passado. Mas, embora eu não estivesse certo se isso podia ter realmente influenciado em sua interferência, ele estava certo.

Beto e eu fomos para a cozinha, seguidos por seus pais.

 — Muito cedo pra eu perguntar o que você achou deles? — Beto sussurrou em meu ouvido para que eles não ouvissem.

— Muito cedo, sim — respondi.

— Ah…

— Mas eu juro que você vai ser o primeiro a saber, ok? — brinquei, referindo-me ao fato de um de seus ex-namorados da época da escola ter feito um textão nas redes sociais para compartilhar como fora seu primeiro encontro com os pais de Beto e o que tinha achado deles, antes mesmo de dizer qualquer coisa diretamente ao Beto.

— Besta. — Ele riu, enquanto era afastado de mim pela sua mãe, que prontificou-se a ajudar no almoço e recusou ter sua ajuda dispensada.

A primeira coisa que reparei nos pais de Beto foi o quão diferente eles são, como casal, de nós dois.

As personalidades deles eram bem opostas. Era interessante ver a interação que acontecia porque havia um contraste muito grande no jeito de cada um. Com as histórias contadas, também era engraçado imaginar as situações constrangedoras em que o pai do Beto havia passado devido ao comportamento exuberante de sua própria esposa.

Apesar de muita gente considerar que casais desse tipo têm momentos mais vívidos e marcantes, acho muito pouco provável que eu conseguisse viver em um relacionamento assim. Gosto das coisas como acontecem entre mim e Beto, da tranquilidade, da plenitude, de momentos mais minimalistas, por assim dizer; e não acho que essas características tornam as coisas entre nós menos memoráveis.

Aquela coisa de "os opostos se atraem, mas só os semelhantes conseguem viver juntos" é o jeito da minha mente trabalhar. Embora existam diferenças bem perceptíveis entre mim e Beto, eu tenho para mim que somos bastante parecidos. Talvez até seja por isso que nós sempre nos demos tão bem: somos opostos a ponto de garantir a atração e semelhantes o suficiente para vivermos bem juntos.

Para eles, entretanto, as coisas pareciam funcionar muito bem mesmo com a diferença gritante entre as personalidades de cada um.

Joaquim, o pai de Beto, aparentava ser bastante quieto. Se eu não tivesse ouvido tanto sobre ele antes, até pensaria que ele não tinha gostado muito de mim ou que talvez ele não estivesse confortável com o fato do filho estar num relacionamento homoafetivo. Carla, por sua vez, tinha um jeito de ser bastante peculiar — em suas próprias palavras, era como uma drag queen caricata por natureza —, era extremamente comunicativa e até mesmo intimidadora, até porque ela era uma mãe como qualquer outra — e como tal, não hesitava em dar uma bronca no filho, com direito a chamá-lo por nome e sobrenome caso achasse necessário.

— Humberto Garcia Fonseca, que porra de legumes são esses? — questionou, analisando com desgosto os itens que ele havia comprado.

Beto não gostava muito de ser chamado de Humberto e gostava menos ainda quando citavam seu último nome, Fonseca. Achava um desprazer ter de carregar esse sobrenome consigo, como se ainda estivesse preso de alguma forma àquela parte da família que o tratou de maneira bem desagradável após ele sair do armário.

— É Beto Garcia — corrigiu. E em sua defesa, explicou à Carla que não sabia mesmo comprar nenhum legume ou verdura, mas que tivera de ir ao mercado para ganharmos tempo porque eu estava ocupado e, caso eu ainda tivesse que ir depois, demoraria muito mais porque, segundo ele, tenho passos de tartaruga e pra piorar eu não sabia andar de bicicleta. — Mas o bacana nisso é que aquele ditado “não sei se eu caso ou se compro uma bicicleta” nunca vai acontecer aqui, porque ele não tem dúvidas disso. Tô salvo de ser rejeitado quando fizer o pedido, eu acho.

Se a intenção dele era aquilo ter soado como uma provocação, deu bastante errado porque não vejo problema algum em ser comparado a uma tartaruga. Elas são fofas, não são apressadas e, quando se sentem ameaçadas de alguma forma, escondem-se no casco. Embora essa última característica não seja exatamente positiva, sei que sou um pouco assim. Tenho o hábito de evitar conflitos sempre que possível, talvez por ser muito tímido, não sei. Sou aquele tipo de gente mais retraída, observadora e calculista – afinal de contas, sou de exatas.

Com esse jeito diferente da maioria dos garotos da escola, acabei por ter uma infância mais solitária, totalmente caseira; nunca fui de ficar brincando na rua e talvez seja por isso que eu não sei andar de bicicleta. Inclusive, outra coisa que não sei até hoje é o porquê das pessoas ficarem tão abismadas ao descobrirem que algum adulto não sabe andar de bicicleta.

Quando contei ao Beto que eu não sabia, logo nas nossas primeiras conversas, ele apenas deu risada e achou que eu estava brincando. Na semana seguinte me levou para passar uma tarde com ele, em um grande parque da cidade.

Num determinado momento, passamos em frente a uma plataforma de bicicletas de aluguel, disponíveis para quem quisesse pedalar por ali, e ele perguntou se eu não queria dar algumas voltas com ele, acredito que na inocência mesmo. Respondi que só iria se ele me arranjasse uma bicicleta com rodinhas e reafirmei que não sabia andar de bicicleta. Mesmo surpreso, percebendo que eu estava falando sério, ele ainda riu como da outra vez.

Depois disso, aproveitei a primeira brecha para ir embora. Como eu ia continuar saindo com alguém que não demonstrava o mínimo de respeito pelas particularidades dos outros? Contudo, antes que eu chegasse à saída do parque, ele surgiu com uma bicicleta de rodinhas emprestada e disse que sabia que era meio infantil, mas esperava que eu gostasse mesmo assim.

Fiquei na dúvida se ele estava falando da bicicleta ou de si próprio, mas não pude deixar de sorrir. No final das contas, ele não era tão ruim como cheguei a pensar.

E após conhecê-lo mais e mais, dia após dia, tenho que dar razão a ele: definitivamente não haviam dúvidas na escolha entre casar e comprar uma bicicleta.


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Notas finais do capítulo

Apareci! Afinal, quem é vivo sempre aparece, né?
Mas e vocês, ainda estão vivos? ❤



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