Gentleness escrita por U can call me A


Capítulo 16
Rei e rainha (e sua ruína)




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Anne não conseguia tirar os olhos de Ephir desde que ele havia aparecido na escola. Afinal, a última vez que ela tinha visto ele foi depois do beijo, e a reação dele não foi uma feliz... Mas agora ele estava tão animado. Parecia até outra pessoa.
Ele ter faltado tantos dias... era bem a cara do Ephir que preferiu repetir um ano que ela conhecia. Ela esperava uma reação dessas, mas não esperava ver ele iniciando tanto contato físico com aquele rapaz que o seguia pra todo lado. Aquele garoto... Elefante? Montante? Nante. Ele devia ter dado um passo com o relacionamento deles.
Não era que ela não soubesse que ele podia fazer isso, o que incomodava era ter dado certo. Ele nunca entenderia Ephir, como poderia ter sido aceito? Ele não merecia ele.
Ninguém merecia. Nem ela.
Mas ela era a pessoa que chegava o mais perto possível disso, só havia cometido alguns erros. O primeiro foi ter calculado mal entre o que precisava para manter sua vida “perfeita” e a única pessoa que valia à pena.
No que ela tinha que chamar de família, ninguém se importava com ela. Sua presença era desnecessária, com seu pai se casando de novo e tendo filhos com sua madrasta. Ele havia criado uma nova família, e ela era a personificação da que deu errado. Como ela era um peso a ser carregado só por existir, era melhor que não desse trabalho até o dia que saísse de casa.
“Nada de chorar, engula essas lágrimas.”
“Ajeita essa cara e sorri logo.”
“Brincar? Você já terminou todas as tarefas do seu livro? Não importa se não passaram pra casa, você tem que se adiantar pra ganhar a bolsa.”
“Você não precisa de brinquedos, dê isso pra sua irmã.”
Enquanto ela tinha que agir como um robô, as crianças que riam sem preocupação alguma na escola pareciam sem cérebro. Anne detestava ter que se encaixar com gente assim. Ela ficava de canto na turma, e sofria o que seria considerado bullying, mas era orgulhosa demais pra admitir. Eram meros filhotes de cobra imitando os pais. Fazer a tarefa era mais produtivo que se importar.
O ano em que ela conheceu Ephir teria sido como qualquer outro. Era ainda o primeiro dia da volta às aulas, mas já estava com um sorriso falso que fazia seus músculos doerem e olhos mortos. Ela teria brincado com o material escolar novo até a aula começar enquanto os alunos novatos e veteranos iam se conhecendo. Seus olhos não desgrudavam dos adesivos de sua agenda por mais barulhentas que as conversas fossem. Por que iria se importar? Mesmo que fosse tentar falar com algum novato e se iludir com amizade, logo iriam deixá-la de lado por ser uma ninguém.
Uma bolsa estilo carteiro, grande demais pra alguém do tamanho dela, passou pelo canto do olho de Anne e ela pode ouvir o barulho dela sendo colocada na cadeira de trás. Era a segunda cadeira da primeira fila. Lugar para os que prestavam atenção.
Os olhos dela se levantaram pra encontrar com um par de castanhos com a graça de um peixe morto, antes que ela pudesse decidir se não valia à pena. O dono deles era um garoto parecendo muito cansado para a pouca idade, com um cabelo cor de caramelo crescido até metade do pescoço.
Ele não disse nada. Ela voltou a olhar pra agenda, pensando onde iria colar o adesivo grandão.
Anne pensava que talvez tivessem algo em comum, mas não esperava virarem amigos. Tudo o que fazia era prestar atenção quando falavam com ele. Os meninos o chamaram pra jogar no intervalo, mas ele rejeitou pra tirar um cochilo em cima do livro que estava lendo. Depois disso Anne ouviu meninas fofocando com a vista, e não demorou pra puxarem ela pra um canto e perguntarem “Quem ela se achava pra sentar perto do príncipe saído de sonho, fofo e inteligente, que tinha nome saído de livro” e outras baboseiras porque ela não quis trocar de lugar. Por que ela iria abrir mão da primeira cadeira da primeira fila pela paixonite ridícula dos outros? Ela chegou toda arranhada em casa, mas não conseguiram nada dela.
Fofo não era a melhor palavra pra descrever Ephir. Quando puxavam assunto, embora ele respondesse educadamente, não tinha interesse na voz nem se esforçava pra continuar a conversa. Qual era o sentido nele ser amado e ela detestada?
Ela entendeu quando eles tiveram o primeiro trabalho em grupo. “Faça dupla com a pessoa mais próxima”, o professor disse. Ephir poderia ter se virado pra quem sentava atrás dele, mas em vez disso cutucou o ombro de Anne. Na cabeça dele, era uma questão de lógica não deixar a pessoa na frente sobrar. Ela entendeu isso. Ainda assim, não ficou menos surpresa.
Ephir não tinha interesse nos outros, mas também não fazia ninguém se sentir mal. Ele fazia a parte dele, sem menosprezar ninguém. Sua expressão era sempre uma de cansaço, sem torcer o nariz ou sorrisos falsos. Ela se lembrou de uma das conversas que puxaram com ele, em que ele disse que estava sempre cansado por sua mãe lhe buscar depois do trabalho e da faculdade na casa dos outros tarde. “E seu pai?” “Nunca conheci”, depois disso ficaram com pena, disseram que ele podia conhecer e ser amigo todo mundo na sala e nunca ficar sozinho. Anne sabia que ela não estava incluída no “todo mundo”, ainda assim olhara feio pra ela.
Ephir fazia as pessoas quererem ser úteis pra ele. Passar pelo muro em que ele se cercava. Mas naquela vez ela tinha conseguido ver uma brecha nesse muro.
— Ei. – a pequena Anne disse, fazendo os olhos de Ephir se levantarem da atividade e se fixarem nela. – Você já está cansado disso, não é?
— Sim. – Ele laçou um olhar para o trabalho. – Quero acabar logo.
— Não isso. – Anne sussurrou, mesmo que não precisasse com o barulho de conversas soltas pela sala. – Das pessoas. De ter que fingir que você não se importa.
O lápis na mão de tremeu. Anne conteve um sorriso.
— Mas eu não me importo.
— Não, eu vi sua cara naquela conversa sobre seu pai. Você até quis dizer algo quando falaram pra você ser amigo de todos, menos eu. É como se... você sufocasse seus sentimentos.
Ephir ficou em silêncio, suas orelhas se avermelhando lentamente. Ane teve paciência, e depois de alguns segundos ele disse:
— Você estava me observando?
— Eu achei que tínhamos algo em comum desde a primeira vez que te vi. – Ela arriscou um sorriso.
— Mas as meninas te tratam muito mal. – Ele desviou o olhar. O que Anne ouviu foi uma confissão: “Eu estava te observando também”, o que a deixava muito satisfeita, mas por outro lado ela registrou o que ele disse e quis perguntar de quem ele achava que era a culpa.
— Elas devem se sentir ameaçadas com alguém melhor que elas que não podem controlar. Tipo animais pequenos soltando veneno num predador. – A garota resmungou. Ephir riu, chocando os dois. Ela acompanhou com um riso leve, e então ficou um silêncio entre eles pra ser preenchido.
— E se eu me importar? Por que eu deveria confiar em você? – O garoto sussurrou. Anne pôde ver confusão em seus olhos antes dele abaixá-los.
— Porque eu te entendo. Eu faria a mesma coisa se já não tivessem me tratado tão mal que eu não queira me esforçar em fingir. - Ela baixou os olhos também, deixando algumas mechas de cabelo loiro cobrirem sua face. – Podemos ser uma equipe, não acha?
— Uma equipe? – Ele ecoou, interessado. Sua colega levantou a cabeça e sorriu.
— Uma equipe. Discutindo planos do que fazer em situações chatas, lutando contra as pessoas que não nos entendem, ajudando em coisas que são mais difíceis de fazer sozinho, soa divertido, não acha? Muito melhor que melhores amigos. Tipo espiões.
Os olhos de Ephir estavam brilhando, e mesmo estando um pouco desconfiado, isso só lhe fez se controlar pra não assentir repetidamente. Anne deu um murrinho no ombro dele e concluiu:
— Vamos ver se dá certo. Se der, eu nunca vou desistir de você.
“Se você for a pessoa que eu precisava esse tempo todo, eu nunca vou permitir você me deixar”.
Por mais autossuficiente que fosse, ela queria alguém que lhe fizesse companhia e se importasse com ela. E essa pessoa ideal precisava se destacar entre os outros como ela, e não ser melhor nem pior que ela, pra poderem andar lado a lado, se ajudando a subirem os degraus da vida. Alguém que se importasse com ela, que a entendesse... Ephir foi essa pessoa. A classe não gostava deles andando juntos, então eles planejaram situações pra ganhar simpatia. Anne escrever um diário falso e deixar cair sem querer perto de alguém que Elhir já havia sondado pra que essa criança sentisse pena dela e contasse aos outros... Anne estar sempre com olhos como se fosse chorar, quando ela só estava esfregando eles enquanto ninguém percebia... O único verdadeiro foi ela perdendo peso por não querer comer, mas Ephir pensava que era planejado também. Eles discutiam os planos e rolavam de rir de como dava certo. Os olhares de desgosto na direção de pena, e então admiração de como ela conseguia tirar notas boas apesar de tudo. No final daquele ano, ela e Ephir viraram o “centro” da sala. As pessoas que os outros queriam se tornar mais próximos.
As meninas a invejavam, mas Ephir dizia que ela entendia suas dificuldades melhor que ninguém. Os meninos passaram a falar mais com Anne, mas bastava ela forçar seus olhos a marejarem um pouco e dizer que ele ficou do lado dela quando ninguém mais quis que eles sentiam um aperto no coração.
E esses dois monstrinhos trocavam um olhar cúmplice e sabiam o quanto o outro estava rindo por dentro.
Eles passaram um bom tempo governando esse mundinho. Ambos se tornaram mais sociáveis, mas mantinham uma distância dos outros muito bem respeitada. Uma parede que separava o resto do mundo deles dois que os outros tinham bom-senso de não ultrapassar. Mas o rei cometeu um erro terrível. Ele não andou lado a lado com a rainha.
Ele ser melhor que ela estava fazendo o mundo deles desmoronar. Ela precisava das bolsas estudo por sua situação em casa, em que queriam gastar o mínimo possível com ela. Ele precisava porque seria um peso a menos nas costas de sua mãe. Os dois estudavam juntos, mas não havia bolsa pra todo mundo. Se eles tivessem conseguido revezar a bolsa integral a cada ano, as coisas poderiam ter se mantido...
A família dela com certeza não era mais importante que Ephir, mas se as coisas continuassem assim, iriam destruí-lo também. Anne precisava mandá-lo embora, mas isso era como arrancar um pedaço dela fora. Ela chorava e chorava nos braços dele quando tinham algum tempo sozinhos, pelo abuso contínuo em casa, pelo quanto precisava de um futuro, deixando o garoto desesperado sem saber o que fazer. E ao mesmo tempo ela queria estrangulá-lo, o odiava pelas coisas terem saído de controle.
Não, não ainda. Ainda havia controle. Dela sobre ele. Foi assim que ela o sabotou com um sorriso radiante.
As coisas que ela gritou pra fazer ele se afastar não foram mentira, mas ela esqueceu em meio a suas emoções que ela tão raramente sentia de jogar sua âncora. Esse foi outro erro. Um “eu te amo” não teria deixado ele se envolver com outra pessoa pro resto da vida. Mas ela pensou que poderia tê-lo de volta quando quisesse, então ela decidiu que o faria quando saísse de casa.
Por que ele não esperou?
Ela sofreu tanto sozinha. Ela se esforçou tanto pra que pudessem ficar juntos de novo, noites em claro estudando. Quantas vezes ela não xingou aqueles amigos dele, mas não foi separá-los porque ela não podia ir atrás dele, não ainda, e eles estavam cuidando dele pra ela nesse meio tempo? Talvez um diálogo com ele durante todo esse tempo tivesse colocado a situação nos trilhos, e esse foi mais um erro, mas não podia falar sobre o que aconteceu com ele estando incompleta, e não fazia sentido pedir pra ele esperar sem enterrar o passado.
Ela até conseguiria tolerar que ele seguisse em frente enquanto isso. Se relacionar? Sem problemas, qualquer coisa que ele construísse ela poderia destruir depois. O laço deles era muito mais forte.
Mas ela encontrou com ele e não resistiu. Se ele pensava que poderia esquecer ela, estava enganado.
Então por quê? Por que ele parecia ter esquecido...? A última coisa que ela queria era ser a pessoa que saísse machucada, mas aqui estava ela. Na saída, esperando por ele.


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Notas finais do capítulo

Eu amo muito a Anne, fight me



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