Lar escrita por MJthequeen


Capítulo 11
Koriand'r


Notas iniciais do capítulo

Uau, isso demorou um bocado! hahaha gente, me desculpem, eu fiquei extremamente ocupada com o vestibular =( mas, finalmente, saiu!! Tô bem ansiosa pro próximo (altas emoções hahaha) e pro capítulo da Ravena, que tem uma capinha bem linda, inclusive hahahaha vcs vão curtir, espero ;D

Muito obrigada a todos os comentários, vocês são demais, me alegram todo dia!! Eu não pensei nuca em abandonar essa história, ouviram?? Eu amo escrever ela e amo ver a reação de vcs!! Vou passar o dia respondendo os comentários do último capítulo e da minha outra história, Sentidos, que ainda não respondi kkk sou mt enrolada hahaa
Enfim, não vou mais segurar vcs, obrigada dnv, por favor continuem comentando! Isso me incentiva muito ;]

O próximo sai essa semana, creio hmmmm talvez até domingo. Se não, semana que vem, certeza, ok? hahaha ele não vai ser tão longo, acredito.

É isso!! Obrigada dnv, gente ;D

Marhaba!



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Lar

 

Komand’r certamente cresceu antes de mim.

Quer dizer, ela é mais velha. É claro que ela cresceu antes de mim. Mas não estou falando disso; estou falando de fases de amadurecimento. Koma certamente amadureceu muito antes de mim. Provavelmente, ela já pensava como uma mulher aos 10 anos de idade quando todos lhe tratavam diferente dentro e fora da corte. Ela aprendeu a lidar com raiva muito antes de mim; para ser sincera, talvez ela só não tenha aprendido muito bem.

Mas não é disso que estou falando. Não é sobre poderes ou obrigações. Estou falando de garotos. De certo, minha irmã amadureceu muito antes de mim. Isso explica um pouco do meu frio na barriga, um nervosismo novo que eu só me lembro de ter sentido com uma pessoa, uma só, e ela não é nesse planeta. Komand’r teria rido. Komand’r riria.

Karras está esperando uma resposta e eu pisco meus olhos. Isso não é bom. Ele deve pensar que sou uma idiota, mas os únicos idiotas são ele e seu pai. Ele, seu pai e esse plano cretino.

Não influenciada pelas memórias, poucas, que tenho de nossa infância, eu semicerro os olhos, engolindo minha atração em seco. Engolindo o fato de ele ter acabado de tocar minha pele. Tenho que me lembrar quem ele é e o que ele quer.  Automaticamente, sinto um contraplano esquisito se formando nas minhas entranhas e sorrio.

— Príncipe Karras! Desculpe-me, é verdade que eu me lembro pouco do seu semblante, mas é bom vê-lo outra vez – digo, me sentindo estranha tendo que ser assim tão formal. Eu podia falar o que quisesse com meus amigos. O sorriso dele diminuiu no rosto e agora é um simples levantar de lábios. Eu me estico para olhar através de seus ombros. – Veio sozinho...? – Pergunto, mesmo já sabendo a resposta. Vou manter essa linha de conversa. Isso vai me ajudar a descobrir quem Karras é, além do bonito e formidável guerreiro de quem as criadas não param de falar...

— Ah, não, não. Meu pai achou que deveria prestigiar sua chegada pessoalmente e me trouxe com ele; mas você já sabe disso. Vocês se encontraram hoje mais cedo.

Não sei distinguir o que é esse tom de voz, mas não é muito amigável. Ele parece tentar entender por que queria esconder dele que já tinha visto seu pai. Estreito os olhos um pouco mais. Comecei errado, tão errado. Talvez eu deva pensar no meu não muito brilhante plano melhor, antes. Hoje é uma festa, afinal. Curvo meus joelhos num cumprimento, ainda sentindo o grogue da bebida no meu terceiro – ou quarto – estômago.

— E eu agradeço a presença de vocês; o Norte e o Sul devem viver em harmonia sob o Grande Governante. Eu espero revê-lo mais uma vez durante minha estadia, Príncipe Karras, porém necessito conversar com o Grande Governante Galfore e os conselheiros. Se me der licença.

E estou prestes a sair, rápido, conversar com Galfore. Quando olho para Karras, porém, ele parece... irritado. Isso me pega de surpresa. Ele se aproxima mais um passo de mim e eu não tenho reação rápida – ou talvez eu não queira ter.

 — Koriand’r – sussurra, só para que eu ouça. – Eu sei dos planos do meu pai. Posso imaginar muito bem o que ele te disse. Quero conversar sobre.  – Sua voz ecoa forte no meu ouvido. – Pelo bem de Tamaran, Kori, me escute. – Pisco com o apelido. Ele sabe que não devia me chamar assim, que não tem intimidade para tal depois que crescemos. Mas também sabe que ninguém iria brigar com ele, pois é um príncipe e, pelo que ouvi de seu próprio pai, se tornou um referencial jovem enquanto eu estava fora e minha irmã surtada.

Finalmente ele se distancia, sério e já não tão jovial. Olhando assim, deve ter a idade da minha irmã. Ainda estou impressionada com a ousadia de ficar assim tão perto de mim. Considerando que sou a atração da noite e que ele é a celebridade, todos devem ter visto e ainda devem estar olhando. A música continua, mas já não ouço o barulho das conversas, a não ser as de lá debaixo. Sem coragem para encarar ninguém, eu finjo um sorriso de canto e digo alto:

— Príncipe Karras, por favor, não é necessário sussurrar para dizer que o assado passou do ponto. Tenho certeza que podemos providenciar outro que agrade o paladar frágil do Sul, não podemos? – Zombo, olhando diretamente para a mesa cheia de comidas e o cozinheiro que fica vermelho, tentando não rir. Ele é o único que ainda finge, o salão cai em risadas e eu rio junto. Em Tamaran, um guerreiro nunca deve reclamar da comida.

A boca de Karras está em linha reta, mas ele olha para baixo rapidamente, levanta a cabeça e volta a sorrir.

— Me desculpe, Princesa, certamente não foi minha intenção te ofender ou ofender aos seus cozinheiros. A comida está ótima.

As risadas e o bom humor com piadas velhas e batidas sobre guerreiros enchem o salão e quase ninguém pode ouvir sua resposta, mas eu aceno com a cabeça.

— Por Tamaran, Príncipe Karras – murmuro, quase não movendo os lábios. Já estou dando passos para trás. Não preciso que o pai dele sinta que estou caindo no truque e pensando nesse casamento.

Ele entende o que quero dizer e acena em afirmativa, se virando e sumindo, em passos lentos, por todas as pessoas. Minha barriga se aperta um pouco, pela fome e pela ansiedade.

 Quero ouvir o que ele tem para falar.

 

 

Quando me dou conta, eu cumprimentei todos os conselheiros e ouvi suas frases de efeito. Todas elas entraram pelo ouvido direito e voaram pelo esquerdo. Sei que eu deveria ter prestado atenção, mas parecem baboseiras antigas que já não servem para mim. Não sou uma Rainha, uma Grande Governante, e nem quero ser. Sou só a Estelar, dos Jovens Titãs. Não preciso de conselhos sobre como gerar Tamaran estando tão longe dela. Galfore fará isso – e nem o Alto Tharras irá impedir. Estou convicta disso.

Ou é só a bebida que acabei tomando demais.

Estou na quarta taça de mur’r – isso não é muito para um Tamaraneano, mas eu não sou acostumada a beber. Encostada com o quadril na mesa e rodando a taça na mão, estou ouvindo alguma história de algum nobre; esforço-me para me lembrar de seu nome, mas nada vem, então só aceno e sorrio como se tivesse qualquer ideia de quem ele é. Entre um gole e outro, vejo uma mão parar em seu ombro.

— Um momento com a Princesa, por favor? – a voz pede e, por um segundo, meus ouvidos entorpecidos fazem com que eu ouça a voz de Karras. Mas não é ele e seus cachos castanho-mel que aparecem. É só Galfore, que me olha animado.

Quando ficamos sozinhos, eu dou outro gole na bebida e sorrio para ele.

— Galfore! Estava te procurando.

Ele arqueia a sobrancelha, contente. Acho que está bêbado, também.

— Koriand’r, você usou a desculpa de que estava me procurando para espantar quantos senhores?

Tento não rir, envergonhada, mas é inútil. Balanço a cabeça e a taça quando ele ri comigo.

— Me desculpe, acho que estou no automático.

— Certamente, Princesa. Não há álcool na Terra? – Ele se serve do mur’r na mesa e bate na barriga quando eu explico que é fraco demais para o nosso corpo. A única vez que Ravena me deixou provar uma cerveja, durante uma viagem de treinamento do Robin, foi como tomar água. Mutano ficou surpreso e sugeriu que eu tomasse vodka, o que ela não aprovou, mas eu fiz de qualquer maneira. Fiquei um pouco enjoada, mas não passou disso. Galfore termina o líquido me encarando de forma interessada. – Karras não estava falando mal da comida, estava?

Eu balanço a cabeça negativamente e Galfore quase ri de alívio, soltando um grande suspiro.

— Há, eu sabia! Esse garoto não iria me decepcionar assim, não, não.

Estou surpresa com sua reação de felicidade. Galfore fala de Karras como se eles fossem próximos – Galfore nunca criaria uma falsa intimidade, eu o conheço. Ainda não o contei sobre a ideia de Tharras de nos casar, mas sinto vontade de fazer agora. É a bebida.

— Gosta dele? – murmuro, curiosa. Meu Grande Governante sorri.

— É um bom homem, um ótimo guerreiro e grande diplomata – explica, soando orgulhoso. Seu olhar fica triste um pouco depois. – Um pouco como seu irmão seria, tenho certeza.

Crispo meus lábios. Sim, mil vezes sim. Ryand’r seria um homem, um guerreiro e um diplomata esplêndido. Muito melhor diplomata do que eu, muito melhor humano do que minha irmã, muito melhor guerreiro do que nós duas. Nunca duvidei disso. Galfore percebe meu olhar baixo e bota uma das mãos sobre a minha livre.

— Sei que não devo me intrometer na sua vida pessoal, ainda mais no seu dia e na sua festa, Kori, mas estou feliz que você esteja falando com o Príncipe Karras. Eu te prometo, ele é justo. Não se parece em nada com o pai dele. 

Acho graça no jeito que ele diz isso. É diferente o modo como ele me direciona para um homem e como todos os outros fazem. Galfore sabe que é uma escolha minha, apesar de todas as recomendações.

—Você sabe que meu coração...

— Está na Terra – completa, ainda sorrindo, e eu concordo com um aceno, pensando em Richard e seus doces olhos. – Eu sei. Acredito em você. E se Karras é tão justo quanto eu acredito que ele seja, acreditará também.

Balanço a cabeça, constrangida.

— Por favor, K’norfka. Não é como se o Príncipe Karras estivesse me propondo qualquer coisa... – Não estou mentindo. Karras não propôs nada; ainda. Seu pai, sim.

Galfore ri mais alto e chacoalha seus enormes ombros.

— Por favor, Koriand’r, eu já tive sua idade! E estava aqui quando seu pai teve a dele. Você é jovem, Princesa, e Karras também é. As noites em Tamaran são mais quentes que os dias. – Ele pisca para mim e eu imagino se são os drinks falando por ele, enquanto rio. – Mas não estou aqui para te dar conselhos. Devemos descer e comemorar com os demais. E então você é livre, Kori.

 

 

Eu agradeço mais uma vez à X’hal, pontas dos dedos unidas defronte à minha testa, minha capa cobrindo toda a parte frontal do meu corpo, uma vez que estou curvada. Agradeço pelo Fogo. Agradeço pela oportunidade de ser uma princesa em Tamaran. Agradeço por ter Galfore ao meu lado. Agradeço por ter conhecido meus amados amigos na Terra. Minhas sobrancelhas se juntam e não consigo conter um sorriso quando agradeço pela oportunidade de beijar o homem que eu amo.

Há várias coisas que eu gostaria de pedir; gostaria de pedir que meu irmão voltasse. Que Komand’r se arrependesse. Que o Alto Tharras e todos que concordam com ele desprendessem suas mentes do passado e seguissem para o futuro. Que a paz se instaurasse sobre o Sistema Vegas, sobre a Terra.

Mas o Wlothog não é tempo de pedir, senão agradecer. E é feliz e grata que eu acendo a única vela no castiçal, com uma starbolt tão pequena que só sai do meu dedo médio, e o levanto para que todos vejam a luz e a prova de que sou tão filha de X’hal quanto ela é minha mãe. Não é fogo comum; é fogo da cor do meu fogo. É verde como meus olhos.

 A noite de Tamaran é muito escura e a única coisa que brilha, além da vela, é meu cabelo e seus olhares sobre os meus olhos de falsa serpente. Eu aproveito o som agudo da flauta, as ondas dos tambores que vem percorrendo meu quadril, a bebida que ainda está gelada na minha garganta, e danço a minha cintura e danço meu quadril e danço meus ombros e pés até a próxima vela.

É uma parede só delas e, com o castiçal, no ritmo da música que eles cantam dos seus pulmões, eu acendo a primeira fileira devagar. Ela acende a próxima, que acende a outra, que acende a de trás. É assim que eu continuo com meu balançar, acompanhando os sussurros amorosos de um antigo hino. Nunca fui boa dançarina; nunca tão boa quanto minha mãe tinha sido ou quanto Komand’r era. Mas eu dou o meu melhor e sou entorpecida sob suas orações.

E, ainda dançando, eu caminho no meio das pessoas e posso ver em seus rostos muita felicidade. Provavelmente, é a bebida. É isso que preenche os seus lábios, não eu. Mas eu sorrio de volta e toco as mãos de todos que as estendem, aproveitando o distanciamento dos guardas. Galfore tinha me garantido isso, afinal. Quando percebo, estou murmurando o hino junto deles. Música é contagiante, não importa o planeta.


Oh, honorável e grande governante
A herdeira do trono... Que você sempre permaneça segura 
Não temos palavras para descrevê-la (para amá-la), você é o orgulho de Tamaran
Tamaran é sua vida, você é a vida de Tamaran
Então seja bem vinda

Em cada cidade, em cada terraço e em cada astro
O amor por você existe em todo coração
Nos seus atos de benevolência reside nossa vitória
Em nosso planeta, sopram os ventos da felicidade
Oh, honorável e grande governante 
Então seja bem vinda

E todas as vozes, como uma oração, estão dizendo isso
Ela é linda como Vegas, a filha de X’hal
Onde quer que você vá, por qualquer estrada que você passe
Haverá uma chuva de puro brilho, como as estrelas
Então seja bem vinda

Oh, honorável e grande governante
Sua crença é a compaixão; e
 por mais que dissemos que a adoramos, não é o suficiente
Você é a razão principal de todas as nossas ações
Aqui e lá, em todo o lugar, há um clamor por você 
A filha de X’hal 
Então seja bem vinda


 

— “E todas as vozes, como uma oração, estão dizendo isso...” – Eu me viro para onde a voz vem, repetindo a letra sem cantar. Depois de alguns minutos onde eu fui a atração principal e eles cantaram para mim, finalmente a música e o meu show acabaram. Observando a festa de um local mais alto, eu aproveito o fato de eles terem enfim esquecido um pouco de mim. Juntos, as pessoas nobres e os súditos brindam, dançam e gritam alto. Eu achei que estava sozinha. Até agora. – “Ela é linda como Vegas, a filha de X’hal”.

Eu não precisava me virar para ver que é ele. Karras, ainda com a capa nos ombros – eu já perdi a minha –, sorri para mim com uma taça na mão. Seus olhos, no entanto, parecem sérios. Eu não me levanto do pequeno espaço entre a vegetação que encontrei. Eu não o respondo. 

— Parece que foi escrito para você – explica, depois de perceber que eu não o responderia. Balanço a cabeça para o elogio.

— Agradeço, Príncipe Karras, mas eu não me superestimaria à esse ponto – murmuro, olhando-o sem sorrir. – E nós dois sabemos que é só um hino antigo e que não representa nada. Eles o cantaram para a minha irmã quando ela tomou, ilegitimamente, o trono. Cantaram que a amavam, mas ninguém nunca realmente a amou.

— Ilegitimamente? – ele repete, se aproximando. Na Terra, eu não teria falado tanto assim. Em Tamaran, eu devo. Talvez, seja um pouco da bebida e do clima de festa. Mas não posso deixar que Karras ache que me intimida. Ele negou, mas duvido que o casamento tenha sido puramente ideia só do pai dele. – Sua irmã era a filha mais velha, não há nada de ilegítimo nisso – me lembra, mas não há julgamento na sua voz. Nem duvida. Ele sabe minha resposta e é por isso que junto as sobrancelhas.

— O Rei Myand’r e a Rainha Luand’r deixaram o trono em meu nome – respondo, ainda sem entender. Karras sabe disso.

 — E por que exatamente eles teriam deixado o planeta para uma guerreira menos habilidosa que a irmã? Para a criança que preferia brincar de esconde-esconde com o irmão, ao em vez de procurar entender as regras de uma boa Grande Governante?  Para a filha do meio?

Estreito meus olhos. Ele está à um passo de mim e estende sua mão para que me levante de onde estou sentada. Sua voz não zomba de mim. Só me faz pensar. Eu encaro sua mão, volto para o rosto. Posso sentir o cheiro salgado de seu suor na ponta do meu nariz – estranhamente, é um odor agradável.

Não posso negar nada do que ele disse.

— Onde quer chegar, Príncipe Karras?

— Em uma resposta; ela é mais simples do que parece – ele mexe os dedos, olha para a própria mão e volta para meus olhos. Também não posso negar que ele é atraente e que minha visão está levemente turva. Eu enfim coloco minha mão direita sobre a dele e ele me puxa para cima quase como se eu fosse uma pluma, quase pelo meu pulso. – A resposta para que eu esteja segurando sua mão agora, e não a da sua irmã.

De pé, eu consigo ignorar a barulheira da comemoração. Seus olhos brilham como o de um gato na escuridão e só posso vê-lo por causa de toda a iluminação do paredão de velas que acendi um pouco mais cedo. Ele é mais alto do que eu. Eu sei a resposta.

—Komand’r... Koma nasceu com uma deficiência – murmura, sentindo o gosto amargo dessas palavras. Eu odiava pensar nisso. Meus olhos encontram o chão. – Ela não conseguia voar quando pequena. Ela não conseguia usar o Fogo como nós fazíamos.

— O Fogo. Não é essa a resposta, sempre? – ele parece um pouco crítico. Outra vez, eu não respondo. Ainda não soltou minha mão. – Você disse que podíamos conversar; eu estava esperando.

— Podemos.

— Acredita que eles estão bêbados o suficiente para não sentirem nossa falta? – pergunta bem humorado, apontando com o queixo para a festa que continua acontecendo lá embaixo. Sorrio.

— Seria demais pedir que eles sequer lembrassem os próprios nomes.

Karras sorri para mim.

— Ótimo. Tem um lugar que eu gostaria de te levar.

E, quando percebo, ele está voando. Pisco em choque por um momento. Ele realmente está voando. Karras parece confuso com minha reação e eu a engulo rapidamente – algo no meu coração se aperta. É claro, Kori. Você não está na Terra. Ele voa também, ele pode explorar o topo dos prédios como você faz; sentir a água do mar na ponta dos dedos como você faz. Ele não é o Robin. Ele não é o Robin.

Ainda assim, Karras não solta minha mão enquanto voamos pelo finito céu de Tamaran. Enquanto observo as coisas ficando pequenas, pequenas. Relaxo meus dedos, mas ele ainda não me larga e eu deixo; não tenho vontade de lutar. Sinto falta do cheiro de sal da Terra. Sinto falta do ar pesado. Se Karras percebe qualquer anormalidade, não comenta. Sequer me olha; permanece focado no caminho. Quando tenho tempo de pensar que sua mão é quente, as coisas vão ficando maiores – estamos pousando em algum lugar longe do pátio de festas.

Eu reconheço o local um pouco surpresa, agradecendo que eu não esteja com minha capa – se eu cortar essa calça, a roupa quase parece meu uniforme Titã. Nós entramos numa espécie de ginásio, cujo teto é aberto. Eu abraço meus próprios braços, cobertos pela camiseta, quando meu pé finalmente toca o chão. Posso ouvir Karras pousando pouco atrás de mim – ele me soltou.

— O ginásio de treinamento – murmuro, sem conseguir esconder minha felicidade. – Uau, parece que faz tanto tempo.

— Pensei que iria gostar – Karras passa do meu lado, sua capa flutuando por causa do vento. Ele se direciona até uma das extremidades, onde sei que estão as armas, e se senta em um pequeno banco, de frente para mim. – Assumi o treinamento das crianças.

Deixo de observar o ginásio para olhá-lo, ainda surpresa.

— O quê? – murmuro, dando passos lentos até onde ele está. Karras não parece ofendido pelo meu tom de voz.

— Galfore me escolheu.

Eu me sento ao lado dele. Estou impressionada. Pouco antes de Komand’r trair o reino, eu tinha sido autorizada à treinar as crianças de Tamaran com tudo que aprendi em Okaara – isso era muito importante, era o meu reconhecimento como uma guerreira. Não a principal, mas com certeza foi uma das motivações de Koma. Ela lutava melhor que eu, e, ainda assim, eu tinha ganhado aonde ela se destacava. Na Terra, eu pensei que o próprio Galfore teria assumido essa parte, ou o atual General, afinal o treinamento era muito importante e tinha um grande peso de responsabilidade. Era o futuro militar de Tamaran em jogo.

Ter confiado isso à Karras... O quão bom guerreiro ele é? Vendo meu rosto perplexo, ele sorri tristemente.

— Quando tivemos o castelo repentinamente invadido, nossas defesas perdidas como pó, seu irmão desapareceu. Quando os Gordanianos te levaram em troca de paz e Koma sumiu pouco depois, seus pais adoeceram rapidamente com a perda de três filhos. Eles morreram quando descobrimos que Komand’r tinha sido a traidora que nos levara à praticamente derrota; depois de anos em luta, sem nunca abaixar as armas, tivemos que entregar nossa Princesa para que não fossemos dizimados. Nosso príncipe, o mesmo. Foi nessa sociedade destruída que meu pai encontrou uma brecha, Kori.

 Ele repete minha história com um respeito imenso. Não a faz parecer menos pior. Eu mantenho meu rosto firme. Estamos sozinhos, só a luz das estrelas iluminando meu local de treinamento. Eu teria sido uma boa professora? Richard era.

— Uma brecha? – repito, para que ele continue. Eu sei o que isso quer dizer. Karras suspira e olha para o alto, para o universo.

— Nós, do Sul, visitamos o Norte logo após a mensagem sobre o falecimento da sua mãe e pai; foi pouco depois disso que Galfore confiou-me o treinamento. Até então, tudo parecia que iria se resolver. Parecia que Ryand’r aparecia da grande estrela Vegas. Parecia que você pousaria em nossas terras e mataria sua irmã com as mãos nuas. Meu pai tinha inveja do trono, sim. Tinha inveja do Fogo, sim. Mas ele respeitava o seu pai, Kori. Ele gostaria que Myand’r continuasse no poder, por que ele tinha o Fogo e assim deveria ser.  Nada se resolveu, no entanto. Rei e Rainha, imortais, morreram. Suas mensagens não chegaram por um longo tempo e pensamos que tinha sido escravizada. Quando você finalmente voltou, depois da loucura da sua irmã, pensamos que estaria tudo bem, pensamos que você assumiria o trono que era seu por direito. Mas você não o fez. Você colocou Galfore como Grande Governante.

— Galfore é totalmente capa...

Karras ergue a mão, me interrompendo.

— Não me entenda mal. Eu o adoro. Mas ele não tem o Fogo. O que o faz diferente da sua irmã, então? Se Galfore, que nem da família real é, pode assumir o poder, por que sua irmã não pôde?

Eu abro a boca para responder, mas nada vem. Franzo o cenho. Não é um pensamento errado; eles julgaram Koma incapaz logo em seu nascimento. Eles a criaram como uma incapaz.  

— Os tempos são outros – digo, enfim.

— São – concorda, voltando a me olhar. – Tempos onde o Sul e o Norte não precisam ficar separados. Onde eles podem se juntar em um só, finalmente. Kori, você volta e quer as coisas como as quer, mas não pergunta a quem vive aqui. Não pergunta à população se eles querem Galfore, ou se não o querem.

Crispo os lábios.

— Você concorda com o casamento, então? Para unirmos de vez o Norte e o Sul.

Karras pisca duas vezes, pensativo.

— Não, eu não vim para pedi-la em casamento. Vim para pedir outra coisa. Eu quero o que é justo para Tamaran, o que é o certo. Não posso dizer que meu pai está em todo errado com essa história de casamento, mas é algo que deveríamos estar eu e você, incluídos nesse plano, dispostos. – Ele olha profundamente dentro dos meus olhos e eu mergulho em um mel grudento e doce. – Eu te prometo, Kori. Não vou deixar essa história ir adiante; não se você não quiser.

Um alívio toma conta do meu peito. O tempo todo, honestamente, eu tive medo disso. Posso até mesmo relaxar nesse banco. Karras não quer casar; ou pelo menos não quer se eu não quiser. Isso teria sido tão mais complicado se ele apoiasse o pai. Mas ele ainda não completou a fala. Volto a ficar séria, respirando fundo, me preparando. Se não é casamento, X’hal, deve ser pior.

— O que, então?

— Quero sua autorização para um projeto. Eu acredito que o que poderia trazer a paz para Tamaran é, sem dúvidas, um Grande Governante legítimo. Como o hino diz, filho de X’hal.

Sem entender muito bem, deixo que minha cabeça caia de lado.

— Você quer o trono, é isso?

Karras ri pelo nariz.

— Ah não, não. Eu não seria um bom Grande Governante.

— Não é o que as outras pessoas acreditam – corto-o, sendo honesta. – Estou ouvindo histórias sobre suas grandes habilidades a todo o momento.

 Karras me olha de forma engraçada, um sorriso pequeno surgindo no canto dos seus lábios, por onde ele passa a língua delicadamente.

— Grandes habilidades, hein? – Só então eu percebo que a forma “engraçada” é na verdade maliciosa e sinto minhas bochechas mais quentes que o normal. X’hal, o que está acontecendo comigo. Príncipe Karras mexe com uma parte diferente de mim. Lembro-me das criadas contando sobre a vasta experiência sexual dele e agora é minha barriga que está quente. – As pessoas dizem muitas coisas, Princesa.

Balanço a cabeça, tentando não transparecer o quão inexperiente eu sou. Foco, Kori.

— Imagino – desconverso. – Mas você queria me pedir algo...?

Karras fica sério mais uma vez e olha para o céu. Pergunto-me como anda a festa.

— Sim. Quando eu falei sobre o legítimo Grande Governante, não me referia a mim. Eu não sou o filho de X’hal da canção. Você é. A legítima Grande Governante é você. – Antes que eu o interrompa, Karras continua. – Mas eu sei que você já repetiu diversas vezes que não pretende ficar em Tamaran e respeito, apesar de não concordar, sua escolha. Não podemos obrigá-la a servir um planeta com tanta devoção. Porém, na sua falta, só temos uma escolha legítima.

Brava, eu o encaro de mal humor. Não estou gostando desse assunto.

— Minha irmã não é uma escolha, Karras.  Nunca foi. Eu prefiro uma Guerra Civil a entregar o poder nas mãos dela.

Repentinamente, sinto seus dois dedos, o indicador e o médio, sobre meus lábios. Ele me olha quase carinhosamente, parecendo se divertir comigo. Não sei dizer se gosto disso ou se odeio.

— Cuidado com o que deseja, Princesa. Suas palavras são ordens para X’hal – murmura numa voz rouca de conselho. Afasta lentamente os dedos da minha boca logo depois. – Mas eu não estava falando de Koma. Ela não é a sua única irmã, Kori.

E, numa epifania, eu entendo. Pisco três vezes, processando a informação rápido demais. Meus olhos se enchem de algo entre carinho, pena, felicidade, esperança e tristeza. É tudo tão rápido que eu quase me sufoco nas minhas próprias emoções. Provavelmente, Príncipe Karras percebe, mas seus olhos são cúmplices aos meus e sei que ele deve ter pensado muito sobre isso.

Em silêncio, eu me levanto. Em silêncio, volto a abraçar meus próprios braços, perto dos ombros. Tento imaginar se vale a pena. Tento imaginar a dor do sim – seria mais pesada que a dor do não, a qual já tenho? Seria leve? Queria que Robin estivesse aqui e me respondesse. Que me aconselhasse.

Karras quer procurar meu irmão, Ryand’r. Karras quer que ele volte. E, X’hal, como eu quero também.

 

 

Alguma criada arrumou a minha cama – deixou travesseiros demais e em todos os cantos. Sentada no chão, eu me inclino com os braços sobre o colchão. A única luz no meu quarto agora é o leve rubor do amanhecer; foi até onde a festa durou. Na verdade, até onde eu durei.

Depois das palavras do Príncipe Karras, eu me vi flutuando devagar até que ele me acompanhasse, em silêncio, de volta para a comemoração. Não me pressionou para ouvir minha resposta. Honestamente, eu não queria discutir nada daquilo enquanto ainda estou alta da bebida. Se ele sabia disso, só sorriu para mim e sumiu entre as várias garotas que sorriam para ele. Eu passei o restante do tempo bebendo e rindo das coisas bobas que as pessoas da corte tinham para me dizer, a maioria uma grande baboseira.

Quando percebi que elas já não me davam tanta atenção, chamei um guarda para me acompanhar até meu quarto – ele alertou uma criada que o arrumasse enquanto estávamos vindo. Me livrei da coroa, mas deitei na cama sem tirar as roupas suadas; me revirei na cama e tentei dormir, não tenho ideia se tem a ver com os raios de Vegas através da minha cortina, mas o sono nunca chegou. Eu senti falta de algo

Sabendo muito bem o que era, me levantei. Foi assim que acabei sentada no chão, sobre minhas pernas, com meu hsuw’ws em mãos. Não há nenhuma convocação desprezada, o que significa que ele não tentou me contatar de nenhuma forma – não sei se isso é bom ou ruim. Crispo os lábios. Tudo bem, Kori, você não tem ideia de quantas horas passaram na Terra. Talvez Dick estivesse dormindo? A última vez que falei parecia de manhã, 7hrs30min, talvez? Era uma segunda-feira, com certeza. Se só se passaram três ou quatro horas lá, ele não teria motivos para me ligar ainda.

Ansiosa, eu aperto seu nome no ar. A ligação está sendo feita enquanto meu coração parece pular até a boca. O símbolo de loading continua girando. X’hal, isso é demais para os meus nervos.

 Junto as sobrancelhas. Dick não atendeu. Provavelmente é cedo demais. Depois de tentar mais uma vez, só para ter certeza, eu largo o aparelho de lado e pego meu T-comunicador. Quando liga sua tela, porém, tenho três chamadas perdidas. Eu sorrio até ver que não é do Robin – é da Torre. Balanço a cabeça. X’hal. Eu deveria estar feliz, meus amigos me ligaram. Rapidamente, eu os ligo de volta, sem me importar que meu cabelo esteja um pouco bagunçado.

 — Star! Cara, como é bom te ver de novo! – é Mutano quem atendeu e eu sorrio conforme ele fica mais longe da câmera, dando passos para trás. Tem um grande sorriso no rosto e posso ver o que parece ser um sanduíche de Tofu na mesa de centro. – Gente, a Star tá aqui! – grita, provavelmente para os outros membros. Eu arrumo alguns fios do meu cabelo que parecem voar.

— Saudações, amigo Mutano. É resplandecente vê-lo também! – O inglês é confortável na minha voz. Como é bom voltar a falá-lo depois de um dia inteiro de um tamaraneano grunhido da minha garganta.

— Ei, Estel... Uau, Tamaran entrou em guerra de novo? – Ciborgue ri, bem humorado, olhando para o meu rosto suado, brilhante e borrado da maquiagem. Aposto que ainda tenho comida ou bebida nos lábios; talvez até nos cabelos e roupas. Sorrio amarelo, ao mesmo tempo em que vejo a figura de Ravena também aparecendo de um dos cantos, flutuando com o chá na sua frente.

— Se os barris de bebida secarem e eles não tiverem matado Gurdonocks o suficiente para o banquete, receio que sim, meu amigo, Tamaran entrará em guerra em poucos instantes – rio, ainda tentando pentear meu cabelo embaraçado. Devo tê-lo bagunçado assim quando pulei na mesa para pegar comida. Sinceramente, acho que prefiro o jeito simples dos humanos de simplesmente deslizar a vasilha com salada pela mesa, uns para os outros. 

Os dois meninos riem e Ravena até levanta um pequeno sorriso, também.

— Que bom que ligou, Star. Vocês tiveram uma festa para sua chegada? – ela pergunta e eu aceno a cabeça positivamente, sorrindo. – Boa, presumo.

— É um pouco cansativa, no geral, mas acho que tirei proveito dela de uma forma agradável – explico, pensando sobre as palavras de Karras. – Peço desculpas pela minha aparência. Acabei de me retirar para os meus aposentos e pensei em falar com vocês.

— Nada para se desculpar, se quiser saber minha opinião – ouço a voz familiar, mas não esperada, e arqueio a sobrancelha. Aqualad acabou de aparecer, braços cruzados e um pequeno sorriso de cumprimento no rosto. Eu sorrio também, contudo confusa. – Se você comemorou entre amigos, a aparência não importa! Em Atlântida nós...

 É, ok, ok, ninguém quer saber da Nova-Déli-d’água a não ser que você seja o Aquaman — Mutano interrompe, revirando os olhos enquanto come um sanduíche. Vejo Ciborgue segurando o riso e Ravena fingindo que não escutou nada. Uma veia pulsa na testa de Aqualad, mas tento amenizar as coisas antes que ele diga algo.

— Aqualad! Eu não esperava te ver, sinceramente, mas é venturoso. – Estou intrigada com a aparição dele, que esquece BB por um momento e me olha como se entendesse minha confusão.

Posso perceber Ravena e Ciborgue trocando olhares por um minuto e isso me faz franzir os lábios.

— Ah, nada para se preocupar. Não que eles precisassem, mas eu vi que os Titãs estavam sem você e o Robin e como já iria nadar até Atlântida para uma visita, resolvi parar por aqui – Parece que é verdade. Mas meia verdade. Ravena bebe o chá, sem olhar a câmera e Ciborgue parece um pouco aliviado.     

Minha cabeça cai para o lado quase automaticamente. Uau, só se passaram algumas horas, tenho certeza que ele não precisava ter parado na Torre – nada de anormal podia ter acontecido em tão pouco tempo.

— Que coincidência você estar... nadando... por perto algumas horas depois de eu e Robin termos saído – sorrio, imaginando que eles vão me falar mais. Isso é estranho. Ravena junta as sobrancelhas, porém.

 Algumas horas? — repete, um tom de confusão na voz. Eu pisco. – Star, hoje é quinta-feira. De tarde.

Arregalo os olhos, realmente surpresa. X’hal. X’hal, eu me esqueci completamente. O dia aqui dura muito mais que os dias de lá – as madrugadas, então? Eu sinto o tempo passando de forma diferente na Terra e em Tamaran por conta das horas que o lado Norte de Tamaran passa virado para vegas em comparação à Terra virada para o sol. Como os raios ultravioletas dão meus poderes e fornecem energia, eu posso ficar acordada e muito bem enquanto tiver luz. Na Terra, eu ficava cansada mais rapidamente por esse mesmo motivo. Como sou idiota. Como esquecer algo tão simples?!

Eu abro e fecho a boca, pronta para explicar minha confusão e pedir desculpas, quando minha cabeça move automaticamente de um lado para o outro.

— Não, não é possível. Já fazem três dias, então. Eu jurei que eram horas, por isso não entrei em contato com vocês. Mas... Mas Robin não me contatou nenhuma vez...

As quatro pessoas na sala deixam de encarar o monitor. Aqualad olha para o lado, parecendo um pouco incomodado de participar de algo de um time que não é o dele. Ciborgue coça a nuca, enquanto Ravena respira fundo. Mutano estava levando o lanche até a boca e permanece com o a mão parada no ar por alguns segundos.

Eu olho de um rosto para o outro. Ciborgue encara Ravena por um instante, mas não parece que ela vai responder seu olhar e ele estala a língua. Parece chateado.

— Star, ele não têm falado com a gente também. E ligamos mais para ele do que para você; nós esperávamos isso de você por causa da sua diferença de dias, talvez, mas daqui para Gotham... – ele abana a cabeça e instala a língua outra vez.

— Cara, nem uma mensagem de texto sequer. O Duas Caras não ia explodir a cidade enquanto ele digitava algo – Mutano murmura, parecendo bravo, e volta a morder seu lanche.

Olho para Rae, em busca que ela desminta isso. Que diga que para ela ele mandou alguma mensagem. Porém, ela só suspira e mexe a cabeça negativamente.

Estou séria como um cadáver. Cy tem razão – eu tenho uma desculpa. Qual é a de Robin? Eu aperto minha mão esquerda em punho. Tento pensar, sem olhar para a câmera do T-comunicador. Encaro qualquer coisa no quarto, buscando uma resposta.

Eu a encontro nas minhas entranhas. No fundo da minha mente, coberta pelo manto da raiva, da dúvida e do esquecimento. Robin... Não, Richard. Richard me deu seu nome. Deu-me seus olhos. Fez-me uma promessa – a promessa de não me deixar ou deixar o time. E eu tinha acreditado nele, não tinha? Eu tinha visto no seu olhar, não tinha? Eu confiava nele. Confiaria minha vida, se fosse preciso.

Ergo o rosto, volto a olhar meus amigos e volto a ficar feliz só por vê-los.

— Estou certa de que há uma razão para isso. Uma boa razão para isso – enfatizo, quando vejo o rosto duvidoso de Ciborgue. – E ele nos dará sem demora, assim que puder. Sobre o que falávamos? Aqualad, você pretende permanecer por algum tempo? Talvez você queira tomar cuidado com as pegadinhas do Mutano e não estar perto dele quando ele disser qualquer besteira na frente da Ravena. Ele sempre acaba preso no teto ou algo assim...

 

 

— Conselheira Delhel, você me chamou?

Odeio essas capas. Elas são pesadas, grandes, chamativas e pouco úteis. Honestamente, não sei me movimentar direito com uma. Crianças não precisam usar capas em Tamaran, mesmo as princesas, e eu acabei não me acostumando com elas.

De qualquer forma, minha capa se arrasta no chão enquanto me movo, até que eu pare em frente à mesa da conselheira – ela está sentada do outro lado e examina um livro cuidadosamente com um monóculo. Os guardas estão pouco atrás de mim e eu mantenho a cabeça erguida e uma expressão amigável.

Mesmo após ouvir minha voz, Delhel não se move um minúsculo sequer dos seus afazeres. Continua sentada, examinando o livro como se eu não estivesse ali. Junto minhas mãos na frente do corpo e cruzo os dedos. Galfore estava de ressaca, muito provavelmente. O salão estava sendo limpo. Teoricamente, após acordar de tarde por causa da minha própria ressaca, eu poderia fazer o que bem entendesse no dia de hoje. Conselheira Delhel não pareceu concordar com essa opinião e insistiu em mandar criadas para me banhar e que eu fosse visitá-la em sua sala.

Considerando que sou uma princesa, é esperado que eu fosse chamada em um lugar o outro. Mas, X’hal, porque eu preciso permanecer em pé por tanto tempo?! Ela deveria ter me chamado mais tarde, então. Já estou a alguns minutos em pé e começo a suspirar e chutar o ar levemente. Os guardas nem se mexem. Sei que sou uma autoridade, porém não é como se eu pudesse simplesmente desmandar na dela. Delhel tem uma autoridade maior não só por ser conselheira, mas também por ser mais velha.

 Ela finalmente tira os olhos do seu monóculo e me olha, arqueando uma de suas sobrancelhas extremamente finas. Seus olhar dourado e julgador cai sobre mim e isso faz com que, automaticamente, eu deixe de chutar o chão. Ela suspira, deixa o monóculo de lado, fecha e o livro e enfim se levanta, segurando a saia longa entre os dedos nesse momento.

— Princesa Koriand’r. O álcool te faz bem. Veja só, velhos guerreiros como Galfore bebem algumas taças e ficam caídos por horas. Você bebe quase uma fonte inteira, e está bem aqui, de pé sob meus olhos.

Eu tusso.

— Eu não tinha notado que bebi quase “uma fonte inteira”... – repito, confusa, imaginando de onde ela tirou isso. – E tenho certeza que meu K’Norfka, nosso Grande Governante, bebeu mais que uma taça ou duas – Hel ri de forma forçada, pelo nariz, e abana a mão.

— Ora, vamos. Você não notou que bebeu muito e ninguém notou sua saída com o nosso querido Príncipe Karras – ela diz isso com um tom amigável que eu não posso deixar de pensar que é falso. Está sorrindo, mas há algo no seu sorriso. E ele com certeza não combina com sua pele esticada.

Minha garganta seca na hora. Não, eu não esperava que ninguém notasse. Mas esperava que eles estivessem bêbados o suficiente para não acharem que isso era nada demais. Tento pensar rápido em uma desculpa, quase cambaleando nos meus pés. Maldito momento em que concordei em ficar sozinha com ele – maldita bebida.

— Eu garanto que eu e Príncipe Karras não somos nada além...

Delhel me interrompe de repente, sorrindo quando passa uma das mãos pelos meus ombros. Dois dos quatro guardas que nos acompanham e fingem que não estão ali ou que não estão ouvindo a conversa, tremem em seus lugares – mas nunca chegam a atacá-la. Ela passa a outra mão carinhosamente pelo meu outro ombro, pouco acima do peito.

— Princesa Koriand’r, deixe-me ser sincera com você. Quando você esteve aqui da última vez, quando Komand’r fez coisas horrorosas, sim, abomináveis, como toda àquela história de casamento arranjado – ela vai me movendo pela sala, andando, enquanto fala e não deixa de acariciar meu ombro. Estamos indo em direção à janela. – E trouxe seus amigos com você, X’hal perdoe tais criaturas, todos nós podíamos notar a... grande afeição... de um de seus colegas em sua direção. É claro, Kori, posso te chamar assim? Kori, combina com você. Luand’r gostava que eu a chamasse de Lur. Não é bonito? Sim, sim, Kori. Não me entenda mal. Eu sei que você nunca corresponderia a uma paixão de um homem de outro planeta.

Ela para nós duas de frente à janela. Eu não respondi em nenhum momento. Arqueio a sobrancelha.

— Sabe? – pergunto, incentivando-a, imaginando até onde ela vai. Sinceramente, estou curiosa.

— Oh, claro que sei, menina. É certo que hoje sou só uma velha, pobre de mim, mas eu já fui jovem como você. E tive esse corpo esbelto de mocinha. E, é claro, eu aproveitei os homens de outros planetas... – ri de forma maliciosa e eu tento não imaginar a cena. – Como sua mãe também tinha aproveitado, e até sua irmã. É normal que você durma com eles. É o assunto principal entre as criadas, não é? Quando elas dormem com um homem estrangeiro. Eles... veem as coisas diferentes. Pensam diferente. Agem diferente. Fazem amor diferente. Eu entendo como isso pode ser desafiante, instigante! Então eu me preocupei com você quando trouxe esse menino tão, tão afetuoso contigo. Preocupei-me que talvez você estivesse sobre influências erradas. Influências ligadas puramente aos seus... prazeres. Eu tive a mesma preocupação com Koma, sabe, não pense que é pessoal. Mas ontem, quando eu vi você falando com Príncipe Karras... X’hal, Kori. Eu sei que não devo mais me preocupar.

Olho pela janela. Essa sala também fica em uma parte alta do castelo e posso ver muitos terraços daqui. Posso ver o mercado lá embaixo. Mas o que chama mesmo minha atenção são os pássaros que voam livremente, sem muito que pensar – não é a época em que seus predadores chegam. Teremos uma estação infestada desses animais até que os predadores apareceram. É sempre assim.

Volto a olhar para Hel, rosto em branco.

— Sabe? – repito, embora dessa vez eu preferisse não ouvir mais nada. X’hal me ajude.

— Sei, sei sim, querida – ela aperta levemente meu ombro e enfim sai de perto de mim, de volta para sua cadeira, que é do outro lado do cômodo cheio de livros e esculturas de antigos ancestrais meus. Eu olho para cadeira outra vez, desejando experimentar como deve ser voar com asas de verdade. – Eu não vou me intrometer nas suas escolhas, é claro, Princesa Koriand’r. Nunca. Só deixe-me dizer que me agrada muito o caminho que você tomou. O Alto Tharras é, com certeza, grosseiro e fanático, nós sabemos, eu nunca concordaria com seus juízos tolos; mas o homem é convincente, não podemos negar... E é claro que a Senhorita é sábia o suficiente para ter pensado na ideia de juntar o Sul e o Norte sozinha, claro, mas se Tharras iluminou ainda mais suas ideias, então só por isso esse homem é merecedor do cargo que tem. – Ela relaxa as costas na cadeira, posso ouvir, e volta a falar poucos segundos depois, a voz um tom mais baixa do que antes. – Você é uma menina inteligente, Koriand’r. Você não escolheu qualquer um, escolheu Karras. Príncipe Karras. Estou certa de que muitos guerreiros de nosso planeta são merecedores da sua mão, mas ele não é um guerreiro qualquer, é?

Pisco meus olhos algumas vezes. Crispo os lábios. E então me viro, apoiada na bancada da janela, um único suspiro passando como uma dança da minha garganta até o nariz.

— Não, sem dúvidas. 

Delhel sorri misteriosamente para mim, porém eu não retribuo. Ela passa a palma das mãos pela saia, pelo cabelo, e volta a abrir o livro, o bom humor sumindo da voz como se tudo o que tivesse para falar com ele fosse sobre Karras.

— Não se preocupe, Kori. Eu não a chamei para falar da sua vida romântica. Agora que você está aqui, tem alguns deveres políticos. Creio ser a hora de começá-los.

Ela empurra uma folha de papel com horários marcados a tinta e eu ando lentamente até lá, pegando o papel e lendo-o rapidamente. São assuntos do reino, como terrenos que devem ser aprovados para serem usados de outra forma, exportações entre os planetas, decisões jurídicas que eu devia fazer. Balanço a cabeça.

— Conselheira Delhel, com todo respeito, creio que esse é o trabalho do Grande Governante, não meu – digo, sincera. Galfore está aqui para isso, não está? Eu pensei em passar os dias tentando me encontrar, como Galfore tinha dito, e não resolvendo problemas tediosos.

Delhel me olha como se eu fosse só uma criança perguntando por que o céu tem a cor que tem.

— É trabalho de Galfore, sim; quando não há ninguém da família real para fazê-lo. Mas cá está você, como eu disse, em pé sob meus olhos.

— Eu não...

Hel deixa de olhar o livro para virar-se para mim, novamente arqueando sua sobrancelha fina demais.X’hal. Eu me calo na hora.

— Desculpe, Princesa Koriand’r, talvez você queira me dizer como conduzir meu trabalho como uma de seus conselheiros? – Eu balanço a cabeça negativamente, muito rápido. – Foi o que eu pensei. Você me lembra muito seu pai; sua mãe era um pouco mais... determinada. Agora vá, Princesa, Dyrsor precisa de ajuda para decidir o nome da sétima ou décima filha; X’hal sabe que eu perdi a conta na quarta.

Olho para o papel e depois para a mulher, que continua a examinar o livro como se nunca tivesse saído de lá. Suspiro de descontentamento. Não. Eu não posso deixá-la se impor dessa forma. Eu sou a princesa, não sou?

— Conselheira Delhel, eu...

Sou interrompida por ela.

— Ah, você continua aqui? Desculpe, Princesa, mas eu estou examinando às últimas contas da colheita desse semestre. Não, espere, creio que me esqueci de algo – ela bate duas vezes na própria mesa e eu ouço passos extremamente rápidos vindos de outro corredor, que é um dos corredores secretos, esses que ligam a cozinha com os quartos, banheiros, etc. Ainda estou brava quando a porta desse corredor se abre e revela uma menina da minha altura, cabelos negros caindo até sua cintura. Ela me lembra... Koma. – Princesa Koriand’r, essa é Mar’i. Ela vai te acompanhar durante seu dia, eu pensei que alguém da sua idade deixaria o trabalho mais... interessante.

A garota me olha um pouco assustada e abre um sorriso nervoso.

— P-Princesa Koriand’r eu...

— Aqui não, Mar’i. Acompanhe-a até lá fora.

Antes que eu fale qualquer coisa, Mar’i realmente pega a folha e me acompanha até lá fora – os guardas a seguem automaticamente eu sou praticamente obrigada a ir. As portas de Hel se fecham atrás de mim e eu finalmente respiro de verdade. E tenho tempo para ver Mar’i de verdade. Ela também é magra como eu, e usa roxo – roxo do Norte, mais claro. É um body de mangas longas com uma mini saia agarrada em suas pernas, botas pouco abaixo do joelho. As joias no seu cinto e protetor de peito é um tom bonito de lilás. Seus olhos são da mesma cor e eu junto minhas sobrancelhas. Ela realmente me lembra Komand’r, se não fosse seu rosto e corpo mais gordinhos.

— Princesa Koriand’r! Deixe-me dizer que é uma honra finalmente conhecê-la. Você é... Você é tão bonita quanto eles diziam, muito mais!  Sou afortunada em poder servi-la. Por favor, me chame de Mar’i. Ou de como quiser, é claro. A Senhorita pode escolher á vontade.  

Levo uma mão até o rosto, tentando me acalmar. Vamos lá, Kori. A menina está sendo gentil, ela não tem nada a ver se você detesta Delhel e todas as baboseiras que ela disse.

— A senhorita está se sentindo mal? Por favor, deixe-me saber, eu também sou boa com medicações, estou estudando para ser uma curandeira, sabe...

— Curandeira? – digo na hora, quase sorrindo. Ela fica vermelha e aperta o próprio braço. – Isso é muito legal. Eu tenho uma amiga que também consegue curar as pessoas; mas ela usa poderes, não medicamentos – explico, pensando em Ravena. Estou mandando mensagens para os Titãs á todo momento por causa da diferença de horários.

Mar’i parece um pouco surpresa com o que eu disse e seu rosto perde o vermelho rapidamente.

— Isso é um fato interessantíssimo, Princesa. Eu ouvi sobre você ter visitado infinitos planetas enquanto estava longe de Tamaran, mas receio que eu não saiba usar poderes curadores como sua amiga. – Ela faz um pequeno bico, contudo pensa rápido e volta a sorrir, como se uma lâmpada tivesse iluminado seus pensamentos. – Porém eu sei usar ervas para parar uma gravidez, se a Senhorita precisar!

— Uma gravidez? – repito, achando engraçado. – Ah não, não, eu não vou precisar de algo assim tão cedo – digo, tentando não pensar que eu só queria ter um bebê (ou tentar fazer um) com Robin. Eu mandei mensagens para ele também. Estou com meu hsuw’ws no cinto, esperando que ele ligue à qualquer momento.

Mar’i cora outra vez.

— Oh, me desculpe. Me desculpe, Princesa, sua vida privada com certeza não me interessa... – o rubor aumenta ainda mais e ela segura o ar. – Digo, claro que me interessa! Eu adoraria ouvir qualquer coisa que a Srta tenha a dizer, é claro, é claro! Eu quis dizer que não é da minha conta. Mas se você quiser compartilhar qualquer coisa comigo, Princesa, por favor, sinta-se à vontade. Eu não direi nada a Delhel ou a ninguém.

Eu balanço a cabeça. Os guardas ainda estão aqui e continuam a fingir que não. É fácil ignorá-los. Eu começo a andar e todos me acompanham.

— Me desculpa, Mar’i, mas eu tenho ideia de que a Conselheira só a indicou para ficar de olho em mim. Não se preocupe, eu não a culpo. Sei que você não deve ter escolha – Com certeza é isso. Delhel quer que Mar’i saiba detalhes do que eu posso estar conversando com Karras. Isso é o que mais a interessa.

— Ah, não, não, Princesa, creio que a Conselheira Delhel não foi clara. Eu não fui escolhida especificamente por ela para acompanhá-la. Nosso Grande Governante, Galfore, sugeriu que você tivesse uma acompanhante feminina enquanto estivesse aqui; “agora ela é uma mulher e precisa de uma”, ele disse. Creio que eles queriam uma... diferente... de mim – Mar’i parece distante nesse momento e anda sempre olhando os detalhes do corredor, sem me olhar. Sua voz é animada, no entanto. – E também mais experiente. Sabe, em outros assuntos. Para poder aconselhá-la. Mas eu já ajudei a Conselheira Delhel e outros por muito tempo e sei como funciona toda essa parte política. Também tenho experiência médica, como te expliquei, e Galfore achou que isso seria útil para a senhorita – ela para de andar e, não sei por que, eu o faço também. Os guardas param no mesmo instante. Mar’i me olha, séria. – Acredite, Princesa Koriand’r, eu fui explicitamente proibida de retalhá-la ou contar seus segredos a qualquer um. O risco é minha língua, nosso Grande Governante Galfore disse – tento não rir da seriedade dela quando fala isso. Galfore com certeza não arrancaria a língua de uma menina da minha idade, porém ele deve ter sido bem convincente que sim. Os olhos liláses de Mar’i ficam mais determinados. – Mas mesmo sem a ameaça, Princesa Koriand’r, eu nunca diria nada a ninguém. Confie em mim.

Eu sorrio, feliz. Não sei por que, mas acho que confio. Essa garota parece ser... boa. Crescendo, eu nunca pude ter amigos próximos e estava sempre cercada dos guardas. Meus amigos tinham sido, por muito tempo, Komand’r, que na verdade não gostava de mim, Ryand’r, que era meu irmão e amigo por obrigação assim sendo, meus pais, que não contavam mesmo como amigos, e Galfore.  Agora, de repente simplesmente ganhar uma acompanhante... Eu não iria reclamar. Ver os guardas já estava me deixando enjoada.

— Eu confio, Mar’i. Por favor, só Kori está bom. Não precisa do “Princesa” ou do “Senhorita”, nós temos a mesma idade – estou rindo e Mar’i fica um pouco constrangida, mas sorri também.

— Se você preferir, Kori.

Estou prestes à dizer mais alguma coisa, quando ela tira o papel que guardou no cinto. Eu quase suspiro.

— Mas Kori, creio que precisamos nos apressar ou você estará extremamente atrasada. Elry e Dolp’h desejam a ajuda do Grande Governante para decidir a quem um Gurdonock pertence; aparentemente o animal foi alimentado até que ficasse grande pelo Elry, mas ele esteve nas terras de Dolp’h pela maior parte do tempo. Depois disso, nós devemos visitar a Sra. Thargya e ajudá-la com a colheita de daiarberry, ela é idosa e ainda acredita na antiga tradição de que o Grande Governante deve cuspir sobre a grama para que ela esteja então pronta para ser colhida. Devemos fazer isso rapidamente, pois depois o Sr. Kraptar requisitou a sua presença na...

 

 

 Eu desprendo a capa das minhas costas, com certo alívio, e a estendo no chão.

— Princesa, eu... – Um dos guardas tenta falar, já desprendendo sua própria capa. Eu ergo minha mão para ele e sorrio.

— Está tudo bem. Vamos, Mar’i, sente-se – e me sento sobre meus joelhos, segurando um suspiro de alívio. Mar’i olha para o guarda, que volta lentamente para sua expressão séria, em pé com os outros.

— Não é necessário, Princesa, eu...

— Kori. E eu insisto.

— Obrigada, Kori.

Relutante, Mar’i se ajoelha sobre minha capa e finalmente se senta. Estamos em um celeiro com esterco de Syda, uma espécie de cavalo, e o trabalho que vamos fazer não seria adequado de pé, ficaríamos cansadas logo. De qualquer forma, eu precisava sentar – e me livrar dessa capa, só que incomoda meus movimentos.

Mar’i puxa as duas cestas para mais perto de nós e começamos. Uma delas está vazia, é a que temos que encher. A outra tem plantas de Siandro, que são como as vagens da Terra – nossa missão é retirarmos as sementes uma por uma de seus casulos. Ravena teria chamado isso de “trabalho de formiga” e eu suspiro só de ver como a cesta deve ter umas 500 plantas dessas. X’hal me ajude.

— Por que mesmo estamos fazendo isso? – pergunto quando o silêncio começa a me incomodar. Mar’i está bem concentrada, mas ergue o rosto quando falo e sorri.

 — Superstição antiga. É dito que se a Grande Governante, ou uma mulher relacionada ao Grande Governante, como sua esposa ou filha, colher as sementes de Siandro, a colheita do ano que vem será duas vezes maior. Algo a ver com a fertilidade da família real – explica, acolhedora. Bem, isso faz sentido. Eu me lembro vagamente de ter feito isso algumas vezes com minha mãe. – E como nosso Grande Governante Galfore não tem uma esposa, os agricultores estão felizes de ter você por aqui.

Balanço a cabeça e sorrio. O trabalho é chato, mas estou feliz em ser útil.

— Fico feliz de poder ajudar – digo e ela sorri para mim também. – Mas, para ser sincera, fico feliz que você possa me ajudar também. Eu demoraria o dobro sem você aqui.

Mar’i me olha agradecida.

— A felicidade é minha, Princesa. Quando nosso Grande Governante Galfore permitiu que eu fosse sua acompanhante... – Ela volta a olhar para as sementes e suspira de felicidade. O sorriso no meu rosto aumenta.

Já é meu segundo dia com Mar’i. Ontem a conselheira Delhel me apresentou ela e passamos o dia juntos, fazendo todo o tipo de atividade que algum cidadão pedia – X’hal sabe como foi extremamente cansativo. Eu pensei que hoje eu teria uma folga, mas ela bateu logo de manhã no meu quarto, com criadas que trouxeram meu café da manhã e me banharam e vestiram. Eu mal vi Galfore, que riu da minha cara de cansada – só um dia sendo princesa e já estava daquele jeito? Eu acabei rindo também e sorrimos um para o outro toda vez que nos encontrávamos nos corredores.

E cá estamos, Mar’i e eu. Passamos mais um dia sozinhas, só com os guardas, e ela me guiava para cada próxima atividade. Ocupadas, não tivemos essa privacidade de conversar assim e eu não pude conhecê-la muito bem. Agora já é fim de tarde e logo a Vegas irá se por; estou feliz de estar sentada aqui com ela, fazendo algo mais tranquilo do que convencer o Sr. Dyrsor que “Xoacha” não é um nome bonito para sua próxima criança.

— Gosto de como você fala de Galfore – murmuro, feliz, as sementes deslizando das minhas mãos para a cesta. Nós duas ignoramos o cheiro forte de esterco. – Não te importa que ele não seja parte da família real? Quer dizer, que não tenha o Fogo? – pergunto, só por curiosidade. Seria bom ouvir a opinião de uma cidadã comum, acho.

— Não, não, de jeito nenhum! O Grande Governante Galfore é um homem bom. E Delhel também, sabe? Apesar de seu jeito... – posso ver sinceridade em seus olhos. Mar’i realmente gosta dos dois. – Eu não ousaria reclamar deles, Princesa. Eles permitiram que eu estivesse aqui com você hoje. Galfore permitiu que eu trabalhasse na enfermaria. Que eu tocasse em medicamentos para todos do reino, mesmo que eu seja... – ela se cala na hora. Eu tinha parado de olhá-la para me concentrar na planta, mas ergo o rosto devagar quando ela para tão abruptamente. Mar’i está branca e tira seus olhos de mim rapidamente, voltando a tirar as sementes com as mãos trêmulas. – Nada, nada, Princesa. Estou falando muito de mim, desculpe – sussurra, parecendo com medo.

Não entendo seu comportamento anormal tão repentino. Fiz algo errado?

— Não se preocupe, Mar’i. Está tudo bem. Eu gosto de escutar – ela abre um pequeno sorriso, mas que some logo depois. Suspiro. O que aconteceu? Talvez eu deva mudar de assunto. – Mar’i... é um nome bonito. A estrela principal na constelação do arqueiro, não é?

— Fico feliz que goste. Minha mãe que escolheu esse; quando não estava na enfermaria, estava observando o céu.

— Sua mãe também é uma curandeira?

— Era, sim. Ela atendeu sua mãe, sabe? Todas as vezes que esteve grávida. Atendeu sua irmã... – o olhar de Mar’i volta a ficar perdido. Pergunto-me se é medo de ter falado da minha irmã na minha frente. O assunto não me incomoda tanto quanto eles pensam; não quando vem de alguém que eu gosto. Ela balança a cabeça, sem me olhar. – Enfim, por isso eu fiquei muito contente quando a Conselheira Delhel permitiu que eu fosse uma curandeira como ela.

— Desculpe, Mar’i, eu não me lembro dela. Sei que mamãe tinha uma enfermeira especial, mas o rosto me é muito vago – so honesta, me sentindo um pouco mal. Eu devia lembrar. – Ela deve ter sido uma pessoa incrível, se minha mãe confiou-a todas as gravidezes.

Creio que Mar’i me respondeu algo, mas eu não ouvi muito bem. Acabei de pegar meu hsuw’ws e olho para ele. Outra vez, nada. Nenhuma chamada. Eu devo ter ligado umas dez vezes desde ontem. X’hal. Num suspiro insatisfeito, eu volto a grudá-lo no meu cinto e fazer o que devo fazer. Não posso ficar pensando nisso, X’hal sabe que não posso. Meu estômago se revira.

— Princesa Koriand’r... Kori. Eu não quero ser curiosa, me desculpe por falar sobre isso, mas... A senhorita pega seu hsuw’ws muitas vezes. Toda hora. Está esperando uma chamada? Talvez... esteja quebrado? Nós podemos pedir que alguém olhe; eu arranjo alguém em um minuto, se você precisar – Mar’i tenta. Parece que ela reuniu muita coragem para me dizer isso. Sem expressão, eu olho para ela. X’hal, estou cansada. Ela pisca um pouco assustada e sua pele dourada passa do branco para o vermelho. – M-Me desculpe, Princesa. Eu fui intrometida , é claro que isso é um assunto pessoal, eu...

— Tudo bem, Mar’i. Obrigada pela preocupação. Não, não está quebrado. X’hal sabe como eu gostaria que estivesse – volto a olhar as sementes. Elas são escorregadias, já enchemos ¼ do cesto. – Eu... Estou esperando uma ligação, sim. Não consigo parar de pensar nisso – desabafo, sentindo meu peito se apertar. Droga. Eu tinha falado para mim mesma que não ia pensar nisso.

Mar’i parece acuada. Ela solta o casulo que tinha pegado e limpa os dedos na saia curta.

—É por isso que não dormiu? – murmura, me olhando compreensiva. – Eu posso preparar uma infusão com ervas, Princesa. Vai acalmar sua ansiedade.

Eu sorrio tristemente, também com as mãos paradas no colo.

— Dá para ver no meu rosto? – também falo baixo, aproveitando o silêncio do estábulo e o vento leve lá fora. Podemos ouvir barulho de crianças brincando, a respiração leve dos guardas que fingem não estar ali, mas estão. Acaricio minha bochecha, sem me preocupar com o cheiro das sementes nos meus dedos. – Eu lavei meu rosto com água fria tantas vezes...

— Seus olhos estão um pouco inchados, sim, mas tenho certeza que todos atribuíram isso a todo seu trabalho ontem. Aqui, acho que posso fazer algo para que você passe o jantar sem problemas – ela acena para um dos guardas, que rapidamente pega uma maleta que estava carregando desde que conheci Mar’i. Não tinha visto-a dando a ele, mas talvez isso tenha sido missão de Delhel. Ele entrega a maleta de madeira para ela e volta ao seu lugar; é menor que minhas duas mãos abertas, como uma pequena caixinha. Mar’i a abre num clique e posso ver alguns fracos de vidros, a maioria fosca. – É pomada de Acenanina, geralmente a usamos em...

— Em ferimentos, ela é uma ótima anti-inflamatória – completo baixinho e Mar’i sorri com meu conhecimento. Ela fica de joelhos, segura meu queixo delicadamente com a mão livre de pomada; passou o dedo médio e indicador da outra no medicamento. – Mas eu não tinha ideia que podia ser usada para olheiras.

— Se você acrescentar óleo de tunem, pode – explica, passando os dedos levemente sob meus olhos. Eu tento olhar para cima, para não atrapalhar seu trabalho. Mar’i é extremamente delicada e não posso evitar sorrir agradecida, mesmo com meu peito incomodado. Eu não queria ter lembrado.

— É uma ligação muito importante – digo, mesmo que Mar’i não tenha exigido uma elucidação. Só quero falar. X’hal, cuidando assim de mim, ela me lembra Ravena. Acho que meus olhos vão se encher de lágrimas. – Ele... Ele disse que ligaria – murmuro. Não é medo que os guardas escutem, eles não podem falar de nada que me ouçam falando, mesmo que eu esteja planejando a morte de outra pessoa da corte. É medo de eu mesma ouvir.

Estou preocupada com Richard. Por que ele não liga? Ele disse que ligaria. Eu sei que lhe disse que esperaria que ele ligasse e não tentaria falar com ele, mas não dá. Estou me remoendo. Ele prometeu que entraria em contato sempre que pudesse. Mas não está; nem comigo, nem com os Titãs. Seus amigos. Seus próprios amigos.

— Você confia nesse homem? – Mar’i sussurra, olhando somente para minhas olheiras.

— Minha vida.

— Então aguarde, Princesa. Ele irá ligar.

 Fecho os olhos, tentando concordar. Tentando absorver isso. Dick irá ligar.

Quando termina seu trabalho, Mar’i se afasta, fecha a maleta e volta a tirar as sementes dos casulos. Eu inclino a cabeça para frente, deixando que meu rabo de cavalo caísse pela minha face. Ela não diz nada, me dando um tempo para voltar aos meus sensos. Kori. Estou ocupada agora, posso chorar depois ou ficar triste ou tentar falar com Ravena sobre isso. Depois.

Lentamente, eu deixo que minha mão pegue outra planta e volto a abri-la. Eu e Mar’i continuamos com nossos afazeres que, X’hal, é extremamente demorado. Já sem sentir a ponta dos meus dedos, volto a falar.

— Ontem... Você ouviu minha conversa com Delhel, não ouviu? – Mar’i me olha, um pouco surpresa que eu tenha voltado a dizer qualquer coisa. – Se é que se pode chamar aquilo de conversa.  

—Eu não me atre... – Eu a olho compreensiva e Mar’i suspira, sorrindo timidamente. – Ouvi sim, Kori.

Eu jogo mais sementes na cesta e dou uma olhada nela – ainda falta muito.

— Quando eu fui embora de Tamaran, ainda não tinha passado pela Transformação. Quando eu voltei durante a crise da minha irmã, ninguém realmente teve tempo de sentar e conversar comigo. Mas eu não pensei que ter algo com um... estrangeiro, seria tão errado assim. – Confesso, imaginando se Mar’i já ligou os pontos e sabe que o homem de quem eu espero uma ligação não é Karras. Na verdade, sequer é um Tamaraneano. X’hal. Não consigo olhá-la mais, um pouco envergonhada.

Ela faz um som com a boca, mexendo a cabeça de um lado para o outro.

— Não é que seja errado, Kori. Não para nós, cidadãos comuns. O problema não é ser um estrangeiro... O problema é que você é uma Princesa – diz, um tom de voz de quem pede desculpas. – E a última com o Fogo. Um casamento com um estrangeiro não seria bem visto pelos outros planetas de Vegas; isso poderia atrapalhar o mercado. Pior ainda, a procriação de Tamaraneanos com outros seres da galáxia não é muito bem documentada; dependendo da espécie com quem você estivesse, seria duvidoso se vocês sequer poderiam ter uma criança. E se pudessem...

— Se teria o Fogo – completo em um tom de voz vulnerável. Eu tentei não pensar sobre isso. Eu e Richard somos novos para termos filhos. Nós nunca... Nem mesmo... Fizemos aquilo.

Mar’i concorda acenando a cabeça. Ela me encara em silêncio por um momento, como se pensasse se deveria me contar algo. Morde o lábio inferior e então segura uma das minhas mãos. Eu tento dizer com os olhos que tudo está bem.

— No passado, Tamaraneanos tiveram filhos com Kriptonianos. A ideia era juntar dois planetas fortes por questões estratégicas de guerra, então um dos herdeiros veio para Tamaran e se casou com a nossa princesa mais velha. Eles conceberam rápido; todos esperavam que a criança fosse ser um dos seres mais fortes que já tinham visto. Toda a resistência Tamaraneana e o poder que os Kriptonianos conseguiam liberar quando estavam de frente ao nosso grande astro, Vegas.

— Radiação ultravioleta... – completo num sussurro; era por isso que Superman tinha poderes na Terra, também. Mar’i concorda.

— A gravidez foi documentada como calma e próspera. Nada de anormal para uma gravidez Tamaraneana. Até que a criança nasceu. As crianças, na verdade; era um casal de gêmeos. – Franzo o cenho, tentando imaginar o poder de uma criança dessas. Kriptoniana e Tamaraneana, um todo assustador. Como eu não soube de tal existência? Mar’i parece menos impressionada do que eu. – Eles... Eles não conseguiam voar, Princesa. Não conseguiam usar o Fogo. Sequer os poderes Kriptonianos, raios de calor ou sopro de gelo do seu progenitor. Nada.

Eu sinto minha mão escorregando da dela, agonia no peito. Komand’r. Era exatamente o que Komand’r tinha. Nós chamávamos de Damtwi’X’hal’s — “A Agonia de X’hal”. Um título horroroso que acompanhava o sono de minha mãe enquanto ela esteve grávida de mim e Ryand’r.

— Então... A Agonia de X’hal... Veio de uma prole de duas espécies diferentes...? – repito, sentindo meus estômagos revirarem enjoados.

Mar’i olha para baixo, fugindo do meu rosto, e só concorda com a cabeça.

Eu me viro, levando minhas duas mãos ao rosto, tentando me acalmar, tentando muito. Minhas mãos soam gelado, minha mente parece nublada. X’hal. Eu nunca tinha pensado nisso.  Eu nunca pensei que se eu e Richard tentássemos algo, se nós dormíssemos juntos, poderíamos dar à luz a uma criança... à uma pobre criança deficiente. Uma criança que poderia não ter espaço na Terra por conta da aparência, como eu mesma tinha sido julgada muitas vezes, e nem em Tamaran, pela falta ou insuficiência de poderes, como minha infeliz irmã.

X’hal. 


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Notas finais do capítulo

A música que eles cantam é essa: https://www.youtube.com/watch?v=6jT1BLnd6YQ (é claro que eu fiz algumas diferenças básicas na tradução, mas o sentido da música é realmente dar boas vindas a um imperador, então tudo bem né kkkk) A tradução em inglês, para quem quiser dar uma olhada: http://www.bollynook.com/en/lyrics/11010/azeem-o-shaan-shahenshah/

É isso, gente, espero que tenham gostado ;) acho que nosso Principe Karras ainda vai ter um papel muito importante......... mas isso é segredo :P

Até o próximo, por favor me deixem saber oq vcs acharam! ♥
e onde está o Robin?? :O



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