Adão e Eva, do inferno ao paraíso escrita por Paloma Her


Capítulo 7
Andrei Sergueyovitch (continuação)


Notas iniciais do capítulo

- Mas pai! Você pensa que o que Lênin e Trotski queriam nos dias da revolução de outubro era tudo isto? Que irmão espreitasse irmão, que amigo espiasse amigos, que um homem não fosse livre para viajar, visitar o mundo; acha que eles estavam imaginando que todos nós seriamos escravos de uma prisão? Você crê que isso é o que sonhavam para nós? Cadê o ideal da Internacional comunista?



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E durante essa Olimpíada, Andrei foi destaque em ginástica, que foi a modalidade em que ele estava indicado. Foi fotografado, filmado, festejado como herói do povo russo, mas Dimitry Vladimirovich a seu lado não o deixava a sós sequer para ir fazer cocô. Para cúmulo, Andrei ficava com sono cedo, dormia que nem urso russo, e acordava de ressaca. Os professores o acompanhavam para treinar, e ele caminhava o dia todo em meio de um exército de homens. Metade deles da KGB.

E voltou para União Soviética dormindo, e só acordou quando o avião estava aterrissando na pista. De longe, viu os milhares de pessoas que os estavam espertando, em dia de festas. As medalhas que os atletas traziam eram recordes para eles. E Andrei trazia 8 no peito. Pendurou-as no pescoço, como todos os campeões, e desceu as escadas como herói.

Ludmila chorava tanto, mas tanto, que a imprensa a fotografou como exemplo de uma mãe orgulhosa do filho que retorna. Na verdade ela chorava porque seu filho não conseguira pedir asilo no exterior.

Nos anos seguintes, a vida de Andrei complicou de vez, por causa do assédio sexual que chegara junto com sua fama, tanto de mulheres quanto de homens. Sequer podia tomar banho tranquilo. Após as competições, sempre aparecia um paquerador. E para se livrar de tudo isso, começou a usar seus poderes telepáticos, para denunciá-los aos policiais. Afinal, a telepatia servia para isso. Afinal, a homossexualidade na União Soviética era crime, tanto quanto a prostituição.  Atletas gays transando começaram a ser descobertos no ato, e levados para Sibéria.

Mas se desfazer da mulherada, foi impossível. Recebia bilhetes, cartas, convites para festas, declarações ardentes, pedidos de casamento, ele não sabia o que fazer.

Começou a frequentar festas, beber vodca, fazer piadas, esperando com paciência a próxima Olimpíada para tentar a próxima fuga. Até deu uns beijinhos em algumas amigas. Só para não ganhar fama de gay.

E as Olimpíadas de Tóquio finalmente aconteceram.

Mas as Olimpíadas do Japão começaram tumultuadas desde o princípio. A África do Sul vivia seu pior momento internacional. Uma série de protestos contra o Apartheid, desse país, espalhava-se como uma faísca, e a equipe sul-africana de rúgbi, uma das melhores do mundo, ocasionava no mundo um ódio mortal por não incluir esportistas de cor. E por pressão internacional, toda a delegação da África do Sul foi suspensa das Olimpíadas.

 O Imperador Hiroíto fez uma abertura solene. A inauguração foi no dia 10 de outubro de 1964, onde participaram 5.140 atletas, com 94 países inscritos. Mas, foi a última vez que as duas Alemanhas competiram como uma mesma nação.  

Andrei foi praticamente cercado pela KGB, desde que desceu do avião.

Todos os agentes desta vez eram atletas como ele, mas com a única missão de evitar a fuga de esportistas. Mais uma vez o drogavam, para dormir como pedra, e de manhã cedo o tiravam para os treinos, para se livrar da ressaca.

Regressou a Moscou novamente, derrotado, e começou uma etapa de sua vida de desilusão e de desgosto. Andrei não era nada, além de um esportista, orgulho da nação porque chegava sempre carregado de medalhas. Mas, além disso, ele não podia fazer nada. Qualquer passo em falso, e toda sua família seria castigada. A fidelidade de Sergey Nicolaivitch ao Partido era seu único resguardo.

E esperou pela Olimpíada do México, que foi no ano de 1968.  Mas, nas Olimpíadas o boicote contra a África do Sul foi mundial, e mais uma vez ela foi proibida de enviar esportistas brancos. Embora a equipe de rúgbi Springbok tentasse captar simpatizantes num giro internacional, os protestos contra o Apartheid eram irados. Os esportistas africanos, onde quer que se apresentassem eram recebidos com protestos, ofensas, agressões, fazendo-os voltar ao seu país, humilhados.

E em meio aos tumultos, os jogos no México se realizaram.

Mas Andrei, mais uma vez, sequer conseguiu caminhar sozinho. Era um penitenciado como os africanos. Podia competir, mas teria que regressar a casa. Sempre cercado pela KGB.

Sua última tentativa de fuga foi nas Olimpíadas de Munique em 1972.

No dia em que a delegação russa chegou ao aeroporto de Munique, Andrei calculou quando demoraria correndo, pulando a cerca, entrando nas ruas, até chegar ao Ministério do Exterior alemão, a pedir asilo. Falou para ele mesmo: - longe demais!

Entrou na fila de migração, mas seu passaporte ficou com o chefe da delegação. Como sempre acontecera. Subiram num ônibus, e conheceu o que era a cultura ocidental da Alemanha, bem diferente da Alemanha Oriental, que era comunista como a União Soviética.

A Alemanha Ocidental estava se reerguendo das cinzas com velocidade espantosa. Em menos de 26 anos Munique era uma cidade maravilhosa, limpa, elegante, paisagens exuberantes, e mulheres muito bem vestidas.

Todo o povo alemão do ocidente era lindo. E com o passar dos dias, Andrei percebeu que eram muito mais inteligentes que seus amigos. Ninguém falava bobeiras, trabalhavam com ardor, e atendiam as visitas com carinho. Era como se os alemães pedissem desculpas ao mundo, pelos erros do passado. Andrei nunca foi tão paparicado, tão bem atendido, como naqueles dias em Munique.

Infelizmente, foram dias também de terrorismo, que deixaram o mundo aos prantos. Após o assassinato dos atletas israelenses, os responsáveis pela delegação russa entraram em pânico. Os dirigentes isolaram os atletas, e a KGB fez guarda de dia e de noite, para não permitir nenhum contacto, nem com imprensa, nem com ninguém.

Andrei, cada vez que estudava uma forma de sair correndo, calculando distâncias, possibilidades, encontrava uma fileira de espiões olhando-o, dentro e fora da Vila Olímpica.   Como sempre, havia mais espiões da KGB nessa olimpíada do que atletas. E o russo mais vigiado era ele mesmo.

Em meio de tudo isso, Andrei teve que competir e ganhar suas medalhas, enquanto tentava em vão uma fuga. A única coisa que conseguiu fazer foi pensar na sua amada, e gritar para ela, usando a telepatia em várias ondas. Após as últimas medalhas, Andrei foi mais uma vez sedado, e a delegação russa partiu antes de tempo, com ele desmaiado. Acordou no avião, tonto, quando já estavam chegando a Moscou.

Depois dessa viagem horrível, Andrei teve uma conversa com seu pai de homem para homem:

— Eu gostaria de entrar no partido, pai...

— Para quê? Soube que tentou fugir na Alemanha... Os camaradas estão envergonhados... Você é o orgulho do povo, filho... Como é que quer deixar-nos? Sua mãe ia morrer. E eu, bem, morreria duas vezes. Terminaria na Sibéria e seria acusado de conspiração.

— Mas havia mais agentes da KGB do que atletas, pai... Eu fui praticamente espionado dentro do dormitório... Não há como fugir numa viagem dessas...

— Eu sei! Mas de qualquer forma o partido está o esperando desde que entrou nessa escola de criancinhas! Eu não sei o que sua pessoa significa para a União Soviética! Eles acham que você sabe mais do que mostra. Isso é verdade?

— Eu só não quero que o governo me force a espionar gringos, ou que me coajam a fabricar armas. Eu sou da paz, pai... Essa guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética é a maior estupidez que existe neste planeta... As armas deste país poderiam acabar com a vida de toda a humanidade, umas 100 vezes. Isso é coisa inteligente? Enquanto a mãe e todas as mães da Rússia enfrentam fila para comprar pão, o governo gasta metade da riqueza em armamentos... Eu tenho tanto nojo disto tudo...

— Filho, guarde tudo isso só para você! Nunca, ouviu bem, mas nunca repita isso para alguém, sequer seus irmãos. Eles já foram espionados pela KGB, em demasia por sua causa! Oscar vive em sistema de terror. Sempre o interrogam... Eles sabem até quantas vezes defecamos dentro de casa...

— Nossa! Dimitry Vladimirovich também é espião?

— Sim! E a maioria dos atletas também é... Na verdade os esportistas que fogem, é porque são da KGB. São os nossos espiões mais eficientes...

— Mas pai! Você pensa que o que Lênin e Trotski queriam nos dias da revolução de outubro era tudo isto? Que irmão espreitasse irmão, que amigo espiasse amigos, que um homem não fosse livre para viajar, visitar o mundo; acha que eles estavam imaginando que todos nós seriamos escravos de uma prisão? Você crê que isso é o que sonhavam para nós? Cadê o ideal da Internacional comunista?

— Beba um gole de vodca, filho! Eu fiz essa mesma alocução um dia, e meu pai me disse: - Beba um gole, pois é assim que um russo enterra seus sonhos!

Em seguida, Sergey Nicolaivitch saiu e o deixou só.  Andrei, que nunca bebera mais de uns goles, bebeu a garrafa toda.  Logo estava dormindo, por cima da mesa. Seu pai o carregou para a cama, e quando Ludmila entrou em casa, ele desatou em choro com a cabeça enterrada entre os braços. Ela correu para abraçar o marido:

— Que foi, meu velho? O que está passando?

— É o Andrei! Estou com tanto medo, minha velha... Se a KGB descobre seus ideais, ele vai morrer em menos de 24 horas...

— Eu sei disso! Mas ele é inteligente, vai saber enganar a todos... Confie nele...

— Mas ele quer entrar no partido! Vai ser obrigado espionar para a KGB! E é ali que vai ser torturado, ou preso. Você me entende?

— Claro que não! Ele vai fazer um acordo, não por ele, senão que por todos nós... Venha... Você necessita tomar um banho... Confie em nosso garoto, ele não é gênio?

— Gênio nada! É apenas um construtor de sonhos impossíveis...

Ludmila tirou a roupa do marido, ajudou-o adentrar na banheira, e em seguida ela entrou nessa água junto. Beijou-o, abraçou-o, pois seu homem era sangue quente, e costumava fazê-la feliz nessa banheira até cinco vezes seguidas.  E naquele dia, dormiram abraçados, e fizeram amor, mais uma vez, ao amanhecer.

E foi assim que Andrei passou a ser membro do “Partido Comunista Russo”. Frequentava reuniões de camaradas, onde se discutia o futuro de humanidade. Falava-se sobre o movimento Francês, sobre os camaradas da Itália, problemas da América do Sul, da perseguição aos comunistas nos Estados Unidos, mas jamais sobre o futuro da União Soviética, pois para os camaradas a União Soviética era um exemplo para o mundo.

Depois de mais três anos, ele finalmente chegava onde queria estar. No círculo privilegiadíssimo da KGB. Os homens mais temidos, mais famosos, figuras lendárias, capazes de dominar o mundo através da espionagem internacional.

Andrei conheceu o Kremlin por dentro, suas salas secretas, os melhores parapsicólogos, e entrou a fazer exercícios de telepatia. Enquanto no Ocidente se espionava escrevendo bilhetinhos, os melhores espiões russos se comunicavam com telepatia, e era por isso que eram tão bem-sucedidos. E Andrei desta vez deixou à mostra toda sua capacidade psíquica.  Podia se comunicar com outros espiões numa distância da Sibéria a Moscou, dando detalhes como nome de pessoas, lendo listas, fazendo exercícios diários, enfim.

E numa tarde, numa reunião de altos chefes do Kremlim, Andrei sentou junto de Dimitry Vladimirovich, e ouviu como num sonho perfeito, a um líder do partido se dirigir para ele pessoalmente:

— Vamos cooperar com os camaradas da Itália. Temos que nos infiltrar na Máfia. Descobrir onde estão os grandes chefões, os responsáveis pela distribuição das drogas, e você com Dimitry Vladimirovich foram designados para essa importante missão. No próximo torneio pela Europa, com a delegação de atletismo, vocês vão pedir asilo político, e depois irão trabalhar pela causa do proletariado... Seus contatos já estão na Itália os esperando.

Andrei sorriu feliz, pois havia conseguido a realização de seus sonhos. Mas outro agente secreto lhe deu um envelope fechado, e perguntou-lhe:

— Mas antes de partir, queremos que nos fale destas pessoas! O que é que elas têm a ver com você?

Andrei abriu o pacote com mãos trêmulas, e viu a foto de Eva, a mulher de seus sonhos, sua amada idolatrada de toda uma vida, abraçada com uma filha, dentro de uma clinica psiquiátrica, curvada como uma velha. A seguir, examinou outra foto que a apontava na forma de “estátua”, olhando fixo para o nada, com a filha chorando abraçada nela. Também havia fotos do marido dela bebendo, com orgias de homens, e fotos de Pierre nessa mesma sala, perguntando por ele.

Depois abriu as cartas. Eram mais ou menos 50 cartas de Marta, pedindo-lhe que as procurasse, pois Eva estava morrendo.

A memória de Andrei sobre suas vidas passadas voltou como num raio de luz, e soube, naquele instante, quem é que ele era de verdade, e porque estava nesse lugar.

Em seguida Andrei sentiu uma pontada no peito, forte, depois todo seu braço esquerdo ficou duro, doendo muito, e soube que estava enfartando. Caiu ao chão e começou a se concentrar no seu coração e a se falar para si mesmo:- Calma, Andrei, calma, calma, já vai passar, vai, vai, calma...

Uma voz vinda do outro lado da vida, falou-lhe a mesma coisa:

— Calma, pai, que estou controlando esse coração... Daqui a uns cinco minutos, a dor vai passar...

— Jesus? O que você faz aqui, filho?

— Voltei por causa da mãe! Senti os gritos dela a caminho de ALPHA! E fica calmo, que estou cuidando dela e da Marta... Já lhe fiz uma cirurgia e ela ficou ótima... Nossa! Tive que limpar o cérebro dela, pai. Uma parte ficou danificada para sempre. Mas a outra metade já assumiu as funções. Ela está sem nenhum remédio, e recuperando o sorriso...

— Mas o que se passou?

— Bem, assim que a mãe viu você na televisão, ela enlouqueceu... Quando a encontrei estava literalmente morta em vida com uma medicação que a deixou transtornada... Nossa, a mãe parecia um zumbi... A irmãzinha nunca chorou tanto... Elas sofreram muito, pai...

— O que a Marta está fazendo agora?

— Preparando um concerto para tocar no teatro mais chiquérrimo de Paris. Ela é gênio da música nesta encarnação, pai... Nossa! Toca piano de arrepiar os cabelos...

— Deve estar uma mulher culta, elegante, fina, ou não?

— Que nada! Imagina que entrou numa igreja, chamou para falar comigo e me disse: - Como é que é, Jesus, tu és mesmo capaz de fazer milagres? Como é que é... Imagina, pai, uma criatura deste mundo falando dessa forma para um Santo iluminado como eu.

Andrei começou a sorrir aliviado. Depois, caiu num sono profundo. Esses eram seus garotos. Seu orgulho. Seus heróis. E ele não era Andrei coisa nenhuma. Era Adão, um doido apaixonado por uma única mulher. Apenas isso.

 Quando Andrei abriu os olhos, estava na UTI de um hospital, e na sala de espera estava Sergey Nicolaivitch abraçado a Ludmila, os três irmãos de Andrei chorando, pois todos achavam que a KGB o havia torturado.

Ludmila foi a única que foi autorizada a entrar para ver seu filho. Vestiu roupas especiais, máscara no rosto, e escutou um médico lhe dizendo:

— Seu filho teve um enfarte. Durante um mês tem que fazer repouso, caminhadas leves, e comer uma dieta alimentar especial. Depois, pouco a pouco, vai voltar a correr como uma lebre...

Em seguida, ela olhou para seu menino, que estava sorrindo, tentando acalmá-la.

— É verdade, mãe! Foi só um enfarte! Não pense besteiras... Só vou necessitar colo... Só isso... Dá-me um beijinho...

Ludmila deu-lhe um beijo no rosto, sem acreditar em nada disso. Tortura com eletricidade sempre causava “enfartes” na União Soviética. Sempre.


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Notas finais do capítulo

Em seguida, ela olhou para seu menino, que estava sorrindo, tentando acalmá-la.
— É verdade, mãe! Foi só um enfarte! Não pense besteiras... Só vou necessitar colinho... Só isso... Dá-me um beijinho...
Ludmila deu-lhe um beijo no rosto, sem acreditar em nada disso. Tortura com eletricidade sempre causava “enfartes” na União Soviética. Sempre.



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