Black Annis: A Coisa que Nos Uniu escrita por Van Vet


Capítulo 2
Aviões Não Deviam Boiar


Notas iniciais do capítulo

E aí, galera? Tudo tranquilo nesse feriado?

Como hoje é dia de folga, consegui produzir durante a madrugada nosso próximo capítulo. Seguiremos a fanfic intercalando passado e presente, e nesta atualização trazemos um ponto "sinistramente" importante para o desenrolar da história.

Ótimo leitura, aguardo vocês nos comentários!

Beijos!



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21 ANOS DEPOIS…

Gina flutuava na escuridão. Seus braços, suas pernas, seu corpo inteiro parecia pertencer ao vazio, caindo para um abismo negro, interminavelmente. Algo, entretanto, a acompanhava naquele véu sem luz. Ele não se movia, mas estava sempre ao lado dela, não importasse quantos metros a garota perdesse para a altitude. Garota, porque no sonho Gina não tinha mais do que quatorze anos. Sua consciência era atual, seu corpo, contudo, juvenil.

Então aquilo não poderia ser um sonho. Era a coisa acontecendo de novo, tentando mais uma vez. Quem sabe agora, após tantas tentativas, ele conseguisse. Ele… Ela… Isso… Aquilo… A Coisa… O que era, afinal? Por mais que a jovem apertasse os olhos, olhasse ao redor durante sua queda, não enxergava nada. Mas estava ali, ela sabia que sim!

Prometo que não demora” Algo sussurrou em seu ouvido. Uma voz humana? Um conjunto de ruídos que, em uníssono, formavam aquela frase?

“O que? Onde? Cadê você?” ela gritava para escuridão. Nada respondeu de volta.

“RESPONDA! CADÊ VOCÊ?!” exigiu, mais alto.

Entretanto, o silêncio era o único disposto a lhe dar atenção. Continuou descendo e em sua percepção, daquela vez ela encontraria o chão. E então seria o fim do pesadelo idiota e de sua vida também, porque era fato: quando se morre no sonho, se morre na realidade.

Estou aqui”.

O ruído resolveu respondê-la.

“Onde?” girou a cabeça, e o corpo todo para o lado direito como se estivesse numa piscina sem água.

“AQUI!” algo lançou-se sobre a menina num berro apavorante.

 

─ AAH! ─ Gina exclamou, acordando subitamente, os olhos arregalados e o peito arfante. As mãos seguravam firme o braço da poltrona enquanto a mulher ia se situando na realidade ao mesmo tempo que tentava fazer seu coração parar de galopar dentro do peito.

“Apenas a droga de um pesadelo” conscientizou-se, apertando os olhos com força e frustração à constatação daquele ocorrido. Ao abri-los de novo, focou no ambiente ao redor, a sala de estar, iluminada timidamente pelo dia pálido vindo da janela.

A casa estava silenciosa e arrumada, algo que acontecia raramente. A soma desses fatores poderia significar apenas duas coisas: Alvo dormia ou brincava no quintal. Levantou-se devagar, ainda sonolenta, e um fardo de roupas caiu de seu colo diretamente para o carpete velho. Então fora por isso acabou cochilando, concluiu… Cuidar das roupas nunca deixara de ser um tédio!

Com um suspiro cansado, agachou-se sobre a pilha e a apoiou de qualquer jeito no braço da poltrona, indo a procura do filho. Amarrou o laço da blusa e encaminhou-se para o quarto do menino ao fim do corredor.

─ Alvo? ─ chamou entrando pela porta aberta. Ele não estava ali.

Retornou para o corredor, desta vez virando à esquerda, para acessar a porta que dava no terreno dos fundos. Ele gostava de brincar de soldadinhos por lá. Embora fosse final de outono e as tardes estivessem se tornando mais geladas, Gina não negava um pouco de ar puro e criatividade para o menino. Nos tempos de hoje, em que as crianças não saíam da frente do computador ou do celular, era algo para se aproveitar essa predileção de Alvo.

─ ALVO? ─ gritou, levando uma mão à lateral da boca para ampliar o alcance de seu chamado. Nenhum sinal dele ali, embora tivesse vestígios de sua passagem: a terra cavocada para servir de “base” e o mato revolvido para “esconder o exército inimigo”.

Sentindo uma pontada de preocupação no alto do estômago, Gina saiu a passos apressados para a frente da casa. Atravessou o corredor de novo, passou pela sala, alcançou a cozinha e, enfim, girou a maçaneta bruscamente.

─ Alvo… ─ respirou fundo ao vê-lo sentadinho nos últimos degraus da escada, quase na calçada, na companhia de uma pilha de folhas em branco, fazendo sua frota de aviões de papel.

─ Por que veio para cá? Já não disse que não gosto quando fica sozinho na frente de casa?! ─ alertou o filho, a tez zangada, embora não estivesse realmente brava.

─ Só estou brincando de avião ─ o menino justificou-se exibindo seu sorriso auspiciosamente largo.

─ Não importa, melhor entrarmos.

─ Ah, mãe! O vento tá bom aqui ─ reclamou, afastando a franja de cabelos castanhos dos olhos ─ Me deixa brincar só mais um pouquinho.

─ Também tem vento lá atrás ─ Gina ofereceu, sorrindo para animá-lo.

Alvo olhou para a mãe nem um pouco inclinado a ceder. Não era um menino teimoso, era um menino sedutor, como ela costumava argumentar sempre que diziam para ser um pouco mais dura na criação do seu filho único. Como ninguém estava no direito de opinar sobre esse assunto, ela fazia o que seu coração mandasse em relação a ele. E, naquela hora, como em tantas outras, ele mandava não ser tão chata.

─ O vento lá no terreno tá fraquinho…

─ Tá bom, tá bom, mas por apenas uns vinte minutos. Não atravesse a rua. Quando terminar de lavar a louça te chamo. Estamos combinados?

─ Estamos ─ concordou de pronto, aceitando a barganha.

Na pia da cozinha, uma pequena louça do almoço aguardava para ser lavada e secada. A mulher ruiva, ainda muito bonita, apesar de o semblante maltratado por diversos períodos de sofrimento em sua vida, pegou a esponja e jogou um punhado de sabão líquido. Dali, conseguia ver direitinho Alvo praticando seu origami e lançando-os para o alto.

Um bom menino, muito bom, se considerar as agruras que teve de presenciar. Gina tinha esperanças que o filho estivesse se esquecendo das lembranças dolorosas, era muito pequeno quando testemunhou-as, e conseguisse seguir em frente livre de traumas. Nada deixava a mãe mais abalada por ser, indiretamente, responsável por causar alguma rachadura na sanidade do filho. Mas ele ia bem. Era um tanto avoado na escola, tinha notas medianas, contudo fazia amigos com facilidade.

A dificuldade de recomeçar existia, e Gina buscava enfrentá-la deixando transparecer para o garoto do jeito mais leve possível. Eles moravam numa cidade pequena, a impiedosa Twinbrook, eternamente povoada, em pleno século vinte e um, por fofoqueiras e inspetores da moral e dos bons costumes. Os olhares tortos para a mãe divorciada e seu rebento existiam quando iam ao mercado, por exemplo. Essa gentinha toda que não estava por perto quando, sangrando vitimada por uma agressão doméstica, teve de se arrastar para o telefone e discar o número da ambulância, a cabeça zonzeando, quase desmaiando.

Seu maior sonho na atualidade era poder ter meios para sair de Twinbrook para todo o sempre. Encontrar uma cidade nova, aonde conseguisse recomeçar de queixo erguido. Entretanto, o risível salário da fábrica sequer cobria as contas de casa. Gina teve de escolher um casebre caindo aos pedaços como aquele, problemas na tubulação e uma infestação de cupins condenando as portas e os móveis, por ser o único aluguel que cabia no seu orçamento.

─ Vai melhorar… ─ murmurou otimista para a panela suja, raspando a sujeira com a esponja impondo força no punho.

Ela precisava apenas ser mais um pouquinho positiva. Abriria uma promoção em breve no setor de montagem e, se tivesse entre os selecionados, de certo o tão esperado dinheirinho extra, surgiria para ser depositado numa poupança. Em oito anos, no mais tardar, teriam o suficiente para embalar as coisas e partir em mudança. Seria bom, pensando bem, Alvo já estaria com os seus quinze anos. A adaptação em outra escola haveria de ser menos traumática. Ele seria um moço ajudando sua mãe quarentona…

Gina sorriu para a torneira, imaginando essas possibilidades. Eles dois bem e felizes num futuro próximo… Um futuro logo ali…

─ Alvo? ─ exclamou piscando várias vezes, olhando pela janela. Abandonando a louça ensaboada foi rumo a porta, escancarando-a ─ ALVO? ─ chamou uma segunda vez, não encontrando o menino na escada como havia sido o combinado.

Desceu as escadas, desviando dos papéis e dos aviões que o filho havia descartado, e se postou no meio da calçada. Olhou para a esquerda e para a direita diversas vezes, as pernas se tornando endurecidas.

─ AAAAAALVO!!! ─ gritou à plenos pulmões, encarando a rua, obstinada por algum vestígio do casaco vermelho que o garoto vestia.

A rua estava deserta, apenas um carro ou outro estacionado junto ao meio-fio. Era dia de semana e grande parte dos moradores trabalhavam àquela hora. Como resposta ao seu chamado desesperado, obteve apenas o ladrar dos cachorros da vizinhança.

─ Oh, não… ─ a mulher levou uma mão a testa, a boca ressecada, entrando em pânico ─ Alvo, cadê você?

E saiu correndo para um dos lados da rua, numa escolha puramente aleatória.

─ AAAAAAAAALVOOOO!!!

 

***

Alvo viu seu melhor avião alçar voou direto para o córrego. Vez ou outra aquela água barrenta vinha descendo pela rua, paralela a calçada, e sua mãe reforçava o aviso “Não ponha a mão que é sujeira”.

Claro que ele sabia que era sujeira, cheirava mal. Ainda assim, fora seu melhor avião de papel e ele precisava pegá-lo apenas para conferir como o dobrara exatamente e refazer um igual. Alvo olhou para a mãe da janela da cozinha. Ela estava cabisbaixa, parecendo travar um diálogo mental. Franzia a testa e remexia os lábios, prestes a falar sozinha como tantas vezes ele a flagrara fazendo. Com ela naquele nível de concentração, o menino tinha certeza de que conseguiria dar uma pequena corridinha adiante sem ser notado.

Se levantando do degrau, deu alguns passos incertos até a extremidade limite da casa e agachou-se sobre a sarjeta, esticando o braço na direção do avião e tentando pegá-lo pela asa. O papel, boiando na água fétida, escapuliu por entre seus dedos e avançou mansamente junto ao limiar da próxima residência.

Irritado por sua lerdeza, caminhou mais rápido, mas o objeto almejado acompanhou sua ligeireza navegando longe. O menino correu mais, indignado com aquilo, e o avião apenas tomou mais distância, ajudado pela leve inclinação que a rua fazia quando chegava próxima à esquina. Dali, o papel fez a curva e tomou a travessa seguinte.

O cabelo farto de Alvo tombou sobre seus olhos e, auxiliado por sua mãozinha de sete anos, afastou as madeixas de pronto concentrando-se novamente no brinquedo fujão. Ele já estava muitos metros a frente, mas seu perseguidor não perdeu tempo. Correu o máximo que pôde para conseguir alcançá-lo. Sem se dar conta, a criança percorrera duas quadras inteiras do seu ponto de partida, sequer ouvindo a voz da mãe, que acabara de notar sua ausência, a gritar seu nome.

Finalmente o avião encontrou um caminho onde Alvo não poderia segui-lo. Um bueiro largo acabou por ser a próxima parada do papel, engolindo-o por inteiro. Desolado, agachou-se sobre a fenda no exato momento em que ela acabava com suas esperanças de resgate.

─ Porcaria… ─ ele bufou o único palavrão que a mãe permitia.

Experimentou olhar para o lado de dentro da estrutura e apenas o breu do esgoto vinha lhe cumprimentar. Então se lembrou, alarmado, de que se afastara demais de casa, uma bronca daquelas o aguardando.

─ Alvo-ô ─ uma voz animada cantarolou.

Alvo se levantou, olhando para os lados, curioso. Não encontrou um ser humano sequer, ao alcance dos seus olhos.

─ Alvo-ô… Aqui ó! Aqui embaixo ─ a voz insistiu, tomada por uma reverberação atípica.

O menino resolveu abaixar a cabeça, exatamente na direção do som. Seus olhos azuis, da mesma cor dos da mãe, focaram numa movimentação vinda do buraco de onde o avião sumira. Tinha alguém chamando do bueiro? Se questionou, curiosíssimo.

Alvo se agachou de novo, de início ressabiado, mas então mais confiante quando viu que era apenas uma pessoa. Um homem, aliás.

─ Por que está vestindo assim?

─ Assim como, Alvo? ─ o homem perguntou divertidamente, os olhos ocultos na penumbra.

─ De palhaço ─ disse com um quê de obviedade.

Para uma criança de sete anos a questão de porquê havia um homem fantasiado dentro da valeta, alguém que o conhecia pelo nome, não era nada importante quanto descobrir porque ele estava vestido daquilo, simplesmente.

─ Gostou? ─ o homem perguntou, sorrindo. Seus dentes eram pontudos e um pouco escuros.

─ Hã, não sei ─ respondeu evasivo. Na verdade, detestava palhaços, mas não queria ser mal-educado.

─ Oh, venha cá, Alvo. Venha só um pouquinho, deixa eu te contar uma coisa ─ o palhaço o chamou ao perceber a tentativa de afastamento dele, fazendo o gesto com a mão, seus dedos excessivamente compridos e finos dentro de uma luva branca ─ Está procurando seu avião?

─ Estou sim ─ voltou a se agachar sobre o bueiro, interessado.

─ Que bom. Desce aqui e venha pegar, que tal?

─ Não posso, moço… Minha mãe vai me matar… Mas você poderia me passar… não?

─ Poderia sim ─ o homem trauteou, e o menino notou que sua voz não era exatamente masculina, tão pouco feminina ─ Acontece, Alvo, que outras crianças deixaram cair aviões aqui também. E barcos, e bonecos e carrinhos. Tem uma quantidade enorme de brinquedos aqui embaixo, seria bom você vir dar uma olhada.

─ É que… não sei… ─ avistou a esquina, pensando no tamanho de sua enrascada.

─ Olha, é rápido. Você desce, vê o que quer pegar e eu te levanto de novo para rua. Vamos, vamos!

─ Tá bom ─ concordou finalmente, imaginando que tipo de carrinhos poderia ter por lá ─ Mas tem que ser rápido.

─ Ah, sim… ─ o palhaço corroborou, e enquanto Alvo passava as pernas para dentro da fenda a figura convidativa avançou um passo à frente, revelando seus olhos, diferente de qualquer olhar humano.


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