Caminho Incerto escrita por Clarinesinha


Capítulo 4
2 - A Fuga




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Estava neste meu "Regresso ao Passado 1" quando o meu telemóvel toca (neste momento tenho a música do Ed Shereen "Photograph", não sei explicar mas é como se estivesse a ter uma conversa com a minha mãe...só eu e ela, sem interrupções...é como se lhe tivesse a dizer que sempre estará comigo). Quando olho para o visor, dou um sorriso quase que involuntário, mas que para quem supostamente está na missa de mês de falecimento da própria mãe não deve ser muito bem visto. Sabem que mais, nem quero saber, deslizo o dedo e afastando-me um pouco atendo. Não quero que ninguém ouça as minhas conversas com ela, são nossas e pessoais. Eu conto a Magui tudo, mas mesmo tudo.

— Magui!!! Nem imaginas o que eu daria para estar aí­...tudo isto aqui é horrí­vel...

— Ei! Podes parar já de te lastimar. Pensa antes que podes encontrar aí o teu príncipe encantado no meio desses "sapos" todos. Já que o último afinal saiu-te um príncipe mascarado de sapo.

— Margarida! Só tu para me fazeres rir, mas estou a falar a sério...odeio isto tudo, e ainda nem comecei escola...

— A sério que sorte, nós já começamos e tipo olha só a minha sorte: fiquei na turma da Erica e do Ricardo, o Guga ficou noutra isto sim é motivo para lamentações...

— Mas podes vê-lo nos intervalos, e ficaste com mais alguém da nossa turma?

— Sim com a Bia e com a Gabi, pelo menos tenho com quem falar...

— Já eu, tenho que passar por toda aquela cena de fazer amigos de novo. Que raiva...

— Mas não estás na mesma escola dos teus primos? E a tua prima não anda no mesmo ano?

— Anda, mas...bem digamos que a minha relação com a minha prima Ana é tão má como a minha relação com a Erica...

— A sério...então amiga não vai ser fácil, mas vais ver que tudo vai correr bem...

— Não, nada vai ser igual nunca mais. Perdi a minha famí­lia, e tiraram-me o pouco que ainda me restava: os meus amigos, de certa forma o Richi e principalmente a ti...

— Primeiro Mada estás muito melhor sem aquele "sapo"...

— Nisso tens razão. Livrei- me de boa...

— Depois ninguém me tirou de ti, estamos apenas um pouco mais longe, geograficamente falando. "And don't worry" nunca, nunca te vou abandonar. Vamos ser para todo o sempre as inseparáveis e imparáveis M&M nada e nem ninguém nos vai separar.

— Prometes pelo Guga?- O Guga era o namorado da Magui, e meu amigo. Sempre que tí­nhamos que prometer alguma coisa uma é outra jurávamos pelos nossos namorados, assim tínhamos a certeza que não quebrarí­amos a promessa.

— Prometo pelo Guga...se bem que, temos que rever toda esta coisa de prometer pelos nossos boys, porque tu já não tens...- e alguém muito sem noção interrompe a conversa, (o melhor momento que tive neste dia...) viro-me e quem é? Claro só podia...o meu querido irmão...

— Madalena estou à tua procura há mais de dez minutos...anda a missa vai começar.

— Magui tenho que ir, o chato do Pedro está a chamar-me. Falamos mais tarde?

— Sim, claro...se conseguires, vai ao Whatsapp para falarmos, vou dizer ao Guga e podemos falar os três...

— Ok...beijos. Adoro-te Magui...- desliguei o telemóvel...

Quando olho para o meu irmão, está com cara de poucos amigos (é impressionante como ele se parece com o avô Carlos e com o pai quando se zanga, ou está para o fazer) mas nem liguei, estava a precisar de falar com a Magui só ela me conseguia tirar deste estado de fúria, de infelicidade e de tédio.

— Para a próxima pelo menos avisa que te vais afastar, o avô está furioso e a avó estava preocupada...

— Como de costume, agora tudo o que faço parece que o chateia...já não aguento mais...ele mudou, e foi só comigo.

— Não digas isso, o avô só está preocupado com o pai...

— E eu não estou? E nós não estamos? Ele é nosso pai, a única pessoa que nos resta depois da mãe...

— O pai é filho dele...e depois nada disso justifica o que fizeste agora nem de manhã...bolas Madalena...

— Pedro, eu não fugi, o que não deixa de ser uma boa ideia, mas mesmo que quisesse não podia. E só vim atender o telemóvel, não quis perturbar ninguém...

— Madalena...

— Madalena o quê? Porque é que não me dão alguma folga? Não sou uma teenager inconsciente como a Luísa, ou uma miúda como a Sofia e muito menos uma "bebé" como a Clara...tenho quase 15 anos. (vou fazer anos daqui a dois meses e seria bestial se estivesse em Lisboa com os meus amigos...mas não estou aqui, sem amigos o que significa que provavelmente vou passar o dia dos meus anos na cama).

— Às vezes tenho as minhas dúvidas se não és mais infantil que a Clara. Vamos mas é entrar para a missa que já deve ter começado...depois falamos disso...

E assim entramos os dois, o Pedro à frente, e eu atrás dele...nessa altura apercebi-me que os meus avós e as minhas três irmãs estavam sentados nos bancos da frente, e quando digo frente quer dizer o da primeira fila. A sério era preciso ser mesmo ali à frente do Padre? Que nervos...não se podiam sentar cá atrás e tipo não dar nas vistas?

Quando cheguei o meu avô olhou-me com um ar de quem me quer arrancar alguma coisa (como por exemplo as orelhas de tanto as puxar), o que vale é o facto de estar na Igreja e no iní­cio da missa, mas não vou safar-me de ter uma "missa cantada" assim que chegar a casa e essa vai ser bem pior. Enfim acho que vou ter que habituar-me, porque desde que vim para Coimbra tudo o que faço o chateia, ou não está de acordo com o que ele acha que deve ser. Antes do acidente não era assim, antes eramos inseparáveis, rí­amos das coisas mais idiotas que nos lembrávamos...

Finalmente começou a missa e o Senhor Padre entra, chama-se Ricardo (sim, o mesmo nome que o meu Ex-Exelentissímo namorado. Coincidência ou não? Não sei, no entanto, tem a sua ironia, a sua graça o que quiserem chamar...) neste momento não gosto nem do meu Ex nem do Senhor Padre. Quer dizer, na verdade nem tenho nada contra o Padre Ricardo, a não ser o estar enfiada nesta Igreja contra a minha vontade, mas a culpa não é dele.

O Padre Ricardo foi colega de escola dos meus pais, e apesar de terem seguido caminhos diferentes, ele para o Seminário e os meus pais para Lisboa, continuaram bons amigos. Tanto assim foi que os meus pais vieram casar-se aqui em Coimbra, para que fosse o Padre Ricardo a celebrar o matrimónio, e mais tarde também nós os cinco fomos batizados por ele, aqui em Coimbra. Por isso ele é quase como um "Tio" conhece-nos a todos desde que nascemos...

Nunca gostei muito de ir à missa, apesar dos meus pais nos levarem. Íamos á catequese, porque era algo que os meus pais não abdicavam. Porém no momento em que a minha mãe percebeu que eu gostava de cantar, e depois de falar com a Maestra do Coro da Igreja, comecei a ir cantar...foi nessa altura que toda a liturgia começou a ser muito mais leve.

Mas neste momento nem que o coro dependesse de mim, queria estar bem longe dali. Por isso peguei no telemóvel para ver se me entredia a falar com a Magui ou com o Guga no Whatsapp. Mas, como nunca posso ter um minuto de descanso naquela cidade, alguém que de vez em quando tem mania de se armar em meu pai, tirou-me o telemóvel das mãos. Irrita-me tanto quando o Pedro se arma em irmão mais velho e responsável (tudo bem até é verdade é mais velho, já tem dezoito anos, e tenho que admitir que até é responsável...), mas nada disso lhe dá o direito de me fazer coisas destas, como tirar-me o MEU telemóvel.

Assim que levanto os olhos vejo o avó a olhar para mim com um ar...sabem aquele ditado que diz "se o olhar matasse já estavas morta" foi mais ou menos isso que senti. E se chegar atrasada à missa, mais toda aquela cena da roupa não bastasse, agora com mais esta do telemóvel, bem vamos dizer que estou feita e que a missa em casa não vai ser só cantada, vai ser: cantada, rezada e muito "aplaudida". Desviei depressa o olhar para o chão e cruzei os braços, não havia nada a fazer tenho que ouvir a missa, e passo a redundância, rezar aos santos para que a bronca em casa não seja tão má como isso.

O tempo foi passando, a missa seguia o seu rumo com todos os seus rituais e...bem comecei a cantar para mim. Cantar era algo que adorava, pois para além de me acalmar, é uma forma de me liberta da tristeza, da frustração, do sofrimento que muitas vezes sinto. Ao cantar tanto posso chorar que nem uma "Maria Madalena" como posso dar uma gargalhada de ficar sem fôlego. Assim, e sem o meu telemóvel, estava a fazer o que ninguém me podia tirar, nem podia perceber...cantar. Inesperadamente durante a homilia o Padre Ricardo decide falar da minha mãe, a sério? Qual era a necessidade? Eu digo-vos NENHUMA...

— Caríssimos irmãos, muitos de nós estamos aqui por uma razão muito especí­fica, faz hoje um mês que perdemos alguém muito especial nas nossas vidas: uma esposa, uma mãe, uma filha, uma nora, uma irmã...uma amiga. A Maria era isto e tantas outras coisas. Ela nasceu nesta cidade, aqui cresceu, se formou, se enamorou e se casou.

Mas haveria necessidade de fazer uma homilia sobre a minha mãe? Eu digo-vos NÃO HAVIA. Ela era filha e irmã de alguém que nem estava ali, era esposa do meu pai (logicamente porque de outra forma não seria minha mãe...desculpem estou um bocado DAHl!)...era minha MÃE. Porque é que ele estava a falar dela assim, como se todas aquelas pessoas que estivessem naquela igreja gostassem dela mais do que eu e os meus irmãos...porém ele continuava...

— Construiu a sua famí­lia longe da sua terra, é verdade que sim, mas sempre voltou para os momentos importantes como para baptizar os cinco filhos aqui presentes. E apesar de trabalhar bastante nunca descuidou a famí­lia, sempre foi uma mãe presente. Porém o Senhor decidiu que tinha chegado a sua hora e levou-a para junto de Si. Muitos de vós podeis pensar que é injusto, que tinha ainda muito a fazer, que tinha estas cinco crianças lindas ao seu cuidado e se perguntam, porquê?

Esta era uma das mil e uma perguntas que eu me fazia tantas vezes, (sem contar com as que fazia a mim mesma sobre o dito "acidente", que por mais que tentasse não me lembrava...era como se alguém tivesse apagado aquele dia do meu cérebro...) porque é que Ele a levou? Porque é que ela não se salvou? Nada disto era justo...nós precisávamos dela, como é que podia ser a hora dela? Como é que alguém, seja Ele Deus ou outra entidade qualquer, pode decidir que chegara a hora de alguém morrer? Era nossa mãe, era alguém de quem dependí­amos e de quem precisávamos. Como é que se decide de um dia para o outro levar uma pessoa?

A minha mãe para mim era muito mais que uma mãe, era minha amiga, minha confidente, minha luz...minha vida. Sem ela sinto que perdi algo que não consigo descrever, é como se faltasse alguma coisa dentro de mim. E apesar de não querer ouvir mais nada porque sentia de novo as malditas lágrimas a quererem sair, o Padre Ricardo continuou...

— Muitos de vós se perguntam como é possí­vel o Senhor ter levado a Maria e ter deixado estas cinco crianças órfãs de mãe? Como é possí­vel o Senhor deixar estas crianças na espectativa de puderem perder também o pai? Bem irmãos a resposta é simples: os mistérios do Senhor são inexplicáveis mas misericordiosos...porque Ele nunca faz nada mal feito, apesar de para nós que apenas ouvimos a nossa razão acharmos que tudo isto está errado...

Eu estava no meu limite...ele não podia estar a falar a sério, já não estávamos a sofrer o suficiente? Não era preciso alguém lembrar-nos da dor que sentíamos. Olhei para as minhas irmãs: a Luísa e a Sofia estavam a olhar para o Padre com um olhar triste e com lágrimas nos cantos dos olhos, o Pedro chorava bastante discretamente (ele é daqueles que acham que os homens não choram...), os meus avós estavam ambos com lágrimas nos olhos e a minha bonequita, a Clara, essa brincava com a sua barbie completamente envolta no seu pequeno mundo de fantasia.

Mas o Senhor Padre continuava a falar: que os desígnios de Deus eram misteriosos, que a minha mãe estava nos braços de Deus e a gozar a vida eterna, que a dor que sentíamos não era mais que a demonstração da nossa saudade. Foi neste momento que "flipei", simplesmente não aguentei mais. Levantei-me e corri porta fora, e se bem se lembram os meus "queridos avós" tinham-se sentado na fila da frente, ou seja, tive que correr aquela nave enorme (para quem não sabe chama-se naves aos corredores das igrejas, normalmente tem três duas laterais e uma central) já que a dita Igreja era dessas enormes.

Senti o Pedro a tentar agarrar-me o braço e vi o meu avô a olhar para mim com aquele ar fulminante, capaz de matar-me, mas consegui ver-me livre do braço do meu irmão e corri, saí­ porta fora. Deixei-me estar durante uns segundos parada ali na escadaria da igreja até conseguir algum ar que parecia faltar para respirar com alguma facilidade.

Passado uns minutos, que pareceram horas, corri dali e nem pensei para onde iria, o que a bem da verdade, e pensando friamente nisso, não era importante pois eu não conhecia muito bem aquela cidade...por isso fosse para onde fosse iria perder-me, mas acham que aqui a Madalena se lembrou desse pormenor? Não. (e já agora porque é que existe uma expressão como "a bem da verdade" tipo existe o mau da verdade, ou o bem da mentira ou mau da mentira? A verdade é a verdade e a mentira a mentira não há bem nem mau).

Nem me ralei com o que o avô me pudesse fazer...ele que castigasse, batesse...não quero saber, ali é que não conseguia mais ficar...vida eterna? Desígnios de Deus? De que raio é que o Padre Ricardo estava a falar. Quero lá saber dos desígnios de Deus...será que ele acha que esta dor que tenho cá dentro se alivia ao saber que a minha mãe está "a gozar a vida eterna".

O que queria mesmo era a minha mãe aqui...comigo. Queria poder dizer-lhe: que me dá aqui dentro da alma, do coração; que todo este caos em que se transformou a nossa vida é insuportável; contar-lhe que o Richi me tinha trocado assim de um dia para o outro, sem pensar duas vezes; queria poder sentar-me ao colo dela, à espera que ela me dissesse que tudo iria ficar bem; que iríamos conseguir passar por toda esta confusão juntos, e que não me vou sentir uma estranha e sozinha; que o meu pai vai ficar bem e que não o vou perder também. Em vez disso a resposta era "que a minha mãe estava nos braços de Deus e a gozar a vida eterna..." a sério? Era tudo menos o que me apetecia ouvir.

Quando dei por mim estava junto a um miradouro (não faço ideia onde estava, já vos disse que não conheço bem a cidade...) mas tem uma vista magnífica. Também não sei quanto tempo estive ali e sinceramente nem quero saber. Neste momento a única coisa que quero é...silêncio, não quero ver ninguém, nem falar com ninguém...só quero chorar até que as lágrimas acabem de vez, até que os meus olhos sequem...quero acordar deste pesadelo, porque só posso estar a sonhar...

Finalmente ao fim do que pareceu uma eternidade consegui parar de chorar, e reparei que estava a escurecer...fui buscar o telemóvel para falar ao meu irmão e pedir que me viessem buscar, mas...não o tinha comigo porque aquele "otário" do Pedro o tinha tirado. Boa Madalena! Estás, não sabes onde, sem dinheiro, sem telemóvel e sem saber para onde ir, já que nem sei a morada do meu avô...

Olhei à minha volta, à procura de alguém que me pudesse ajudar: um polí­cia, um guarda...sei lá alguém, mas a única coisa que vi foi uma Igreja. A sério uma Igreja? Será que Ele lá em cima está a brincar comigo, eu fugi de uma e quando quero ajuda o que é que eu vejo...uma Igreja. Como não tenho outra alternativa, uma vez que parece que a rua resolveu estar deserta, dirigi-me até lá. Dei a volta à dita Igreja mas estava tudo fechado, encontrei uma porta mais abrigada e sentei-me no degrau...

Estava a anoitecer, estava com fome e cansada, decidi tentar dormir o que era difí­cil porque só me vinha à cabeça o meu avô, era desta que ele me matava; a minha avó devia estar preocupada e ao mesmo tempo a tentar acalmar o meu avó. E os meus irmãos? O Pedro devia estar pronto para dar um dos seus sermões de irmão mais velho que se faz de pai, e as meninas deviam estar assustadas sem saber onde eu estava. Pensei na minha mãe e no meu pai, o coração começou a apertar de novo. Será que o vou perder também?

Não sei quanto tempo demorou, o que sei, é que acabei por adormecer...com fome e sem saber onde estava...mas por incrível que pareça à medida que ia adormecendo comecei a sentir-me cada vez mais calma e serena.

E pela primeira vez desde há um mês atrás, adormeci sentindo-me em paz...será que é isto que sentimos quando estamos prestes a morrer? Será que foi isto que a minha mãe sentiu? Será que estou a morrer?

 


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