Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 21
XX. Teaghlach


Notas iniciais do capítulo

Gente linda, gente boa, gente bela! ♥

Eu ia postar este capítulo ontem, que era meu aniversário, mas tive que cancelar (talvez vocês tenham visto) porque o editor de texto não funcionava e enfim, todo o capítulo ficou "feio", sem parágrafos e tudo. Mas o pessoal do Nyah me deu uma mãozinha :3

Boa leitura! *-*



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Março 

— Mas eu não quero — teimou Lucca, frisando os lábios.  

Lisa Clark encarava o garoto de origem indiana do outro lado da mesa metálica, da mesma forma que o fizera da primeira vez que pôs os olhos em Lucca. Toda a cena parecia muito nostálgica, aos olhos da psicóloga forense, apesar do garoto estar menos arisco e já não aparentar ser tão garoto assim. Os cabelos mais curtos e desemparelhados apontavam para direções diferentes, a mandíbula estava um tanto mais proeminente e o franzir entre as sobrancelhas lhe parecia um pouco menos ameaçador. Contudo, a posição na cadeira - sentado sobre as pernas -, já não parecendo tão confortável devido ao tanto que cresceu, permanecia a mesma, assim como os olhos escuros e selvagens. Lisa estava certa de que o sentia era a sensação de dejà-vú. 

Estavam na delegacia de Cherubfield, dentro da sala de interrogatório, sendo observados pelo xerife Henley e alguns de seus homens, e sendo aguardados pela família Walker do outro lado da delegacia.   

Lucca, depois de repetir mais de uma vez, em suas poucas e próprias palavras, que achava desnecessária a continuação dos interrogatórios, deixou claro que não saberia responder nenhuma das perguntas dirigidas à si. Foi obrigado então, à recorrer ao verbo querer, anteposto por um firme não, quando as perguntas tornaram-se fáceis de compreender e resultavam em respostas as quais conhecia. Como, por exemplo, a respeito de sua família. Infelizmente, estas não eram respostas que gostava e, muito menos, que estava disposto a compartilhar.  

— Lucca... — começou Lisa, sabendo que estaria em um beco sem saída se Lucca se recusasse a falar. Não podia obrigar-lhe, afinal. — Você confia em mim, não? — perguntou a psicóloga, analisando o rosto já enquadrado do garoto.   

Lucca vacilou por um segundo, abrindo e fechando a boca. Sua testa vincou ainda mais, se isto era possível, e ele se inclinou até encostar as costas na cadeira. Lisa permaneceu observando-o ponderar, até que os olhos escuros ergueram-se da mesa para o rosto da psicóloga e seus ombros caíram.  

Confia — murmurou, por fim. Abigail havia sido a pessoa que lhe ensinou o que o verbo significava. E confiava em sua nova mãe, assim como confiava em Lisa. 

— Que bom — disse ela, sorrindo com alívio —, porque eu também confio em você, Lucca.   

Era difícil para Lucca acompanhar o raciocínio lógico de todos. Apesar de querer encontrar seu pai, Lucca não compreendia como poderia ajudar nesta missão. Sequer sabia falar o inglês fluentemente, afinal, quem dirá adivinhar para onde o pai se fora ao abandoná-lo. Já estava bem alimentado e bem vestido, já tinha uma família e já estava tendo uma sobrecarga de informações com todas os ensinamentos colegiais que alguém de sua idade devia possuir. Não conseguia entender o porquê de ter que voltar ali tantas vezes, para aquela mesma sala de interrogatório, se ele já estava "à salvo", expressão que teimavam em usar na explicação do porquê tanto o protegiam. Sabia que Lisa queria impedir que coisas ruins acontecessem com outras pessoas, Nathan havia lhe dito que esse era o trabalho da polícia, mas não conseguia entender como falar sobre sua vida ou sua família lhes ajudaria para isto.  

Tanto Lisa e seus agentes de Dobleville quanto Gerard já haviam explicado para o garoto mais de uma vez a importância da investigação. Tentaram explicar-lhe que a vida que Lucca tinha com os Walker devia ter sido a vida que tivesse desde que nascera, e que as pessoas que o impediram disto, que o deixaram viver por anos desprovido de recursos em meio à uma floresta, estavam erradas e deviam ser encontradas para que isso nunca mais acontecesse com ninguém. Tudo havia sido contado à Lucca nas palavras dele, para que ele pudesse entender. E haviam tido sucesso nesta parte.  

Entretanto, é claro, para Lucca não havia nada pior no mundo que ser obrigado a reviver todas as suas piores lembranças em busca das respostas que a polícia precisava e que ele tinha certeza que não as continha. Lucca não queria pensar mais vezes na vila ou na forma como tudo acabou e certamente não queria compartilhar isto com mais ninguém.

No entanto, ali estava ele, encarando os olhos azuis e sinceros de uma pessoa confiável e que, como tanto haviam frisado, precisava de sua ajuda.   

— Você não precisa, especificadamente, responder as perguntas que faço — pronunciou-se Lisa, quando percebeu que o silêncio perdurou. — Você pode simplesmente me contar alguma coisa que talvez seja útil para mim, alguma coisa que você se lembre. Qualquer coisa, Lucca.   

Lucca remexeu-se na cadeira, ajeitando as pernas embaixo de si, e contorceu as mãos em cima dos joelhos. Engoliu em seco, pensando que esta mesma situação se repetiria mais vezes, e que o melhor fosse falar para que pudesse ficar em casa com Sassenach e sua família de uma vez, em paz.   

— Papá juntava coisas — murmurou por fim, recordando-se do rosto magro do pai e o sorriso desprovido de alguns dentes amarelados.   

Detrás do vidro reforçado, o xerife levantou de sua poltrona entediante e quase grudou o rosto no vidro com curiosidade. Semelhantes reações foram as de seus homens: Robert, Tony e Bea. Ninguém esperava que Lucca falasse qualquer coisa que fosse, porque, além de saberem que Doubleville havia empacado na investigação, sequer tiveram a chance de ver Lucca em interrogatórios onde, de fato, dizia algo. Lucca havia sido transferido para a capital, afinal, antes que tivessem tido a oportunidade de ouvir-lhe perfeitamente a voz. Entreolharam-se rapidamente antes de vidrar os olhos em Lucca e na psicóloga surpresa à sua frente.   

— Juntava coisas? — perguntou, inclinando-se na mesa, com curiosidade.   

— Montava — corrigiu-se, lembrando de quebra-peças. — Instrumentos — acrescentou, recordando-se do que havia usado em sua casa da árvore, com Nigel e Nathaniel.   

Lisa quase suspirou de alívio ao ver que Lucca não empacara no que contaria, lhe proferindo uma dúzia de "nãos". Franziu o cenho, anotando o que o garoto dizia em uma das folhas, na velocidade da luz, antes que isto ocorresse. 

— No Acampamento? — perguntou, encarando os olhos confusos de Lucca. — No lugar onde vocês viviam? — corrigiu-se, sem desviar o olhar do menor. Lucca assentiu. — E que tipo de instrumentos ele montava, você sabe me dizer?   

Lucca girou o rosto para o vidro, sabendo que haviam mais policiais por trás. Voltou os olhos para Lisa, sentindo-se um pouco culpado por falar de seu pai, mas não sabia de onde e o porquê do sentimento.   

— Sim — respondeu, descendo os olhos para o crachá de polícia de Lisa. — Armas.   

O corpo inteiro de Lisa retesou, ao passo que piscava algumas vezes. Ergueu os olhos da folha para Lucca, enrugando a testa.  

— Armas? — perguntou, pensando em como diabos imigrantes ilegais no país haviam aprendido a montar armas. E mais, como diabos Lucca lembrava disso. Lucca assentiu mais uma vez, em silêncio. — Você tem certeza? — reforçou, vendo Lucca assentir mais uma vez. Lisa levou a mão à arma que havia em sua cintura, e que sempre estava ali desde que conseguiu autorização para tal. — Como esta?   

Lucca pensou por um momento, encarando o revólver bem construído e negou, os olhos presos no objeto entre os dedos magros de Lisa.   

— Diferente — falou, os olhos no instrumento. — Maior.   

— Lucca, eu preciso que você seja um pouco mais específico. — Suspirou, desmontando a própria arma em cima da mesa, tendo a certeza de que não havia balas dentro da mesma. Assim que desmontou, tendo os olhos curiosos de Lucca em si, montou-a outra vez, da forma como aprendera em Doubleville. — Seu pai montava as armas assim? — Lucca franziu o cenho, incerto. — Ou você quer dizer que eles as construía até tomarem uma forma parecida com esta? — Mostrou-lhe a arma inteira, segurando com as duas mãos. 

— Construía — respondeu, sentindo aquele alívio estranho que sentia quando encontrava a palavra certa para algo que queria dizer.   

Lisa franziu o cenho, ficando preocupada com a situação. Lucca não estava mentindo, e sabia disso. No entanto, também tinha uma ideia do que estas informações significavam e não era nada bom.  

— Apenas seu pai fazia isto, ou haviam mais pessoas que também construíam armas? — perguntou, sentindo o corpo vibrar com a informação nova.   

— Mais — respondeu o garoto, de forma rápida. — Muito homens.   

— Muitos homens? — perguntou, corrigindo a concordância, já de forma automática. Lucca assentiu.   

Lisa apoiou as costas na cadeira, perturbada.   

Se Lucca estava certo, isto significava que os armamentos encontrados no que um dia fora o Acampamento não eram apenas contrabandeadas, eram construídos de forma caseira ali, assim como as drogas. A teoria de Hemming tinha uma probabilidade imensa de estar certa, ainda mais com as informações que Lucca lhes fornecera.   

Luke tinha uma certeza instintiva de que os habitantes, ou pelo menos boa parte deles, não eram os vilões, mas as vítimas. O loiro acreditava que a maior parte dos imigrantes estavam sendo escravizados por outras pessoas. Lisa pensava que a teoria de Luke era mais do que viável, mas agora não conseguia pensar em nada mais além disso. Luke não podia estar certo, Luke estava certo. Afinal, por qual motivo eles produziriam drogas e armas em quantidades absurdas se jamais eram usadas? A população de Amoran jamais ouviu sons de tiros na floresta e nenhum dos nove corpos do local continha traços de drogas no organismo, informação inicialmente ocultada pela polícia da cidade. Se eles produziam drogas e também armamentos para serem contrabandeados e gerar uma renda que era inexistente no local, então eles os faziam para outra ou outras pessoas, provavelmente em troca da suposta liberdade de viver no país. 

Focou os olhos azuis nos negros de Lucca, e sentiu o coração diminuir um pouco. Como psicóloga, sabia que o garoto lembrava de mais do que deixava transparecer. No entanto, agora também sabia que as lembranças dele eram o suficiente para causar um trauma de uma vida inteira, talvez ainda maior do que viver perdido em uma floresta de forma solitária. 

Talvez, pensou, viver sozinho tenha sido o melhor que acontecera com ele. Melhor do que viver no meio de armamentos e drogas. 

— Lucca, você pode me dizer o nome do seu pai?   

Ao invés da cara brava que a psicóloga esperava encontrar no rosto jovem, como certamente encontraria alguns meses atrás, Lucca esboçava uma expressão neutra. E indecifrável, como sempre. 

— Se eu dizer... Você vai encontrar papá?   

Lisa ponderou por um instante. Incapaz de dizer se encontrar o pai era de anseio ou não, Lisa arriscou dizer a verdade. 

— Se eu souber o nome dele, vou fazer o possível para encontrá-lo. 

Lucca assentiu, tão silencioso quanto uma múmia. 

— Se eu dizer, posso ir embora? — volveu a perguntar, obtendo um sorriso de Lisa.   

O garoto era genioso, afinal. Estava cada vez mais esperto, e honestamente, a psicóloga não saberia lidar com ele todo crescido. Sorriu mais largo com o pensamento.   

— É claro — respondeu, relanceando a porta. — Sua família está te esperando lá fora.   

Lucca assentiu, levantando da cadeira e virando o corpo em direção da porta, ato que fez com as sobrancelhas de Lisa arqueassem. O garoto olhou por cima do ombro antes de alcançar a maçaneta, erguendo ambos os ombros. 

— Gorakh — respondeu, sabendo o nome a partir dos lábios da pequena população. Sua mãe o chamava de Gora, e era tudo o que se pensava se lembrar da relação dos dois.   

Deu as costas para Lisa ao abrir a porta da delegacia que se tornara tão familiar para si, encontrando, como era de se esperar, o xerife e seus homens observando tudo através do vidro espelhado. Pasmos com a ação do garoto, limitaram-se a encará-lo. 

— Nathaniel? — perguntou, encarando a segunda porta da sala, tendo a certeza de que o médico e a família estavam lá, sentandos nos sofás estofados.   

— Ali fora, Lucca — indicou o xerife, apontando para a porta que o garoto encarara. — Pode ir, está liberado por hoje — contou, embora não soubesse o porquê. O próprio Lucca havia decidido ir embora por conta própria.  

Assim que Lucca caminhara em direção da família, Lisa apareceu no cômodo com o celular em mãos.  

— Acredito que nunca vi o garoto falar tanto quanto hoje — disse Gerard, sorrindo com humor para a psicóloga. Lisa não pôde deixar de sorrir de volta, também satisfeita com o resultado.  

— Nem me fala — comentou Bea, atrás de Gerard, bastante intrigada. — E eu que pensava que o garoto sequer falava inglês?  

— Ele se atrapalha um pouco com as palavras e com os idiomas, mas já está pegando o jeito — respondeu Lisa, alternando o olhar entre os quatro policiais e seu celular.  

— Suponho que tudo dito aqui é confidencial, apenas entre nós — falou Robert, encarando mais o próprio chefe do que a psicóloga responsável pela investigação. O xerife assentiu, sério.  

— Literalmente — disse Lisa, sem conseguir impedir o tom meio arrogante da própria voz. Arqueou as sobrancelhas. — Se o seu chefe — falou, indicando Gerard — confia em vocês três para estarem aqui, então eu também confio. Mas apenas um deslize de vocês e eu garanto que isso vai custar mais do que seu emprego.  

Robert franziu o cenho, e Tony e Bea se entreolharam de forma rápida. Gerard retesou no lugar, preparado para defender seus homens e deixar claro que o único que podia demitir alguém ali era ele mesmo, mas Lisa não havia finalizado.  

— Sinto muito se estou soando como meus colegas — acrescentou ao perceber a postura dos policiais, referindo-se à Grace e Luke. — Mas essa investigação está realmente me tirando o sono, e não pelo trabalho em excesso, mas pela extensão que está tomando. Sejam cuidadosos com o que falam por aí — concluiu, séria. E então, focando os olhos azuis no xerife que viera a gostar, suavizou as expressões minimamente: — Por favor.  

O xerife suspirou, dando uma olhada em seus homens, antes de volver os olhos para Lisa. Então, sorriu de canto, acenando positivamente com a cabeça.  

— É claro.  

Lisa assentiu e levou o celular ao ouvido ao perceber que Collins retornava suas ligações, saindo da pequena sala.  

— Gorakh — respondeu à agente depois de contar-lhe o que ocorreu, repetindo o que o garoto dissera. — Não estou certa de como se escreve, mas procure nos nomes da lista — falou, apoiando o celular no ombro e observando os rabiscos que fizera durante a sessão de interrogatório. — Grace? — chamou, enquanto a outra provavelmente digitava em seu computador. —  Creio que a teoria de Luke está correta.  

— Eu também — respondeu ela, com um suspiro, do outro lado da linha. — Isso é ótimo para o desenvolvimento do caso, mas você percebe que isso vai além do péssimo, não é?  

Lisa anuiu em silêncio, esquecendo-se que Collins não a podia ver pelo celular. Sabia do que ela estava falando.  

— Colarinho branco* — murmurou sozinha, perdida em pensamentos.  

— Shhh! — reclamou Grace do outro lado da linha, um tanto quanto irritada. — Não fale em voz alta, Clark, está maluca? — Bufou algumas vezes, enquanto Lisa, influenciada pela alteração da outra agente, olhou em volta da delegacia para checar que não havia ninguém perto o suficiente para ouvir. — Olha, eu sei que você é nova no corpo policial, ainda mais aqui no Departamento, mas isso não é algo que... — Bufou mais uma vez, a voz soando como se houvesse aproximado a voz do celular: — Isso não é simplesmente um crime, Clark. Não sei como posso explicar, mas isto — sussurrou, referindo-se ao crime — é praticamente um pecado para um policial. Ainda mais tendo sido formada aqui, neste departamento, com o ensino que o bom exemplo de meus superiores me proporcionaram. Não fale em voz alta algo tão horrível, se sequer temos certeza de que algo de esta proporção realmente está acontecendo — concluiu, um tanto alarmada e irrequieta, em forma de sussurros.  

— É claro, perdão — disse a psicóloga, percebendo que Grace realmente estava temerosa de todo o caso. — Terei mais cuidado. — Collins suspirou do outro lado da linha, recomeçando a digitar no computador de forma lenta. — Collins? — chamou a psicóloga, ouvindo um murmúrio em resposta. — Iremos solucionar isto, e não irá tardar. Tudo sairá bem, você verá.  

Já havia indicado um psicólogo para a agente e também Hemming, mas é óbvio que nenhum dos dois aceitou colocar para fora suas preocupações. Estavam todos muito paranoicos com a própria sombra, e como ela não podia agir como uma psicóloga com eles, mas como uma parceira, Lisa limitava-se a tentar acalmá-los de vez em quando com palavras gentis e conselhos úteis, mas ignorados. 

— Sim, tem razão — murmurou Grace, e algo lhe disse que a agente forçava um sorriso. Quando se trabalha tanto com alguém, acaba-se por adivinhar a próxima reação do outro, sem perceber. — Obrigada, Lisa.  

Assim que a ligação foi dada como encerrada, Lisa passou uma das mãos pelo pescoço, tentativa falha de aliviar-lhe a tensão. Olhou em volta e percebeu que a família Walker já havia se retirado. Ponderou, então, que de certo devia aceitar o convite de Gerard para uma cerveja depois do horário de trabalho, com seus novos companheiros de Cherubfield. 

Duas coisas eram certas para Lisa: o mistério se resolveria e até lá, sua dor de cabeça permaneceria.  

 

Já passavam das onze da noite, e depois de uma longa tarde na delegacia e no parquinho da cidade, em família, Nathan sentia-se exausto. Teria que voltar para Wingloush e para seu trabalho no hospital na manhã seguinte, o mais cedo possível. Era incrível, pensava, que toda vez que abandonava a pequena cidade onde crescera para voltar para seu trabalho, seu coração apertava até o momento em que estivesse de volta. Sempre foi assim, mas o sentimento havia apenas aumentado desde que Lucca se tornara parte de Cherubfield também.  

Pensando em como a vida era uma caixinha de surpresas, Nathan fechou os olhos, tomado pelo cansaço. Sentia o corpo já flutuar em direção aos sonhos, quando o movimento em seu colchão o tirou do túnel da inconsciência.   

— Lucca? — perguntou, piscando os olhos para acostumar-se com o escuro do quarto.   

Desde que Lucca se mudara para a residência Walker, toda vez que Nathan visitava a família, dormia no colchão de Gabe ao lado de sua antiga cama, já pertencente ao garoto peculiar. Era como um ritual que se alegrava em fazer. 

Desta vez, no entanto, Lucca não estava na própria cama e Nathan sequer percebeu que ele havia levantado. O garoto, sentado nas próprias pernas, na ponta lateral do colchão alheio, encontrava-se tão silencioso quanto a rua do lado de fora. 

— Está tudo bem? — perguntou novamente, com a voz rouca pelo sono não dormido, apoiando o peso nos cotovelos ao perceber que o menor continuava mudo.  

— Você não vai embora mesmo?   

Tentando enxergar melhor o rosto do garoto com a precária luz de fora, Nathan percebeu, não com muita surpresa, que era incapaz de decifrá-lo. Franziu o cenho com a pergunta estranha, perguntando-se por um momento se não havia adormecido e estava sonhando no momento.   

— O quê? — perguntou, confuso e sonolento. — Agora? Não, eu não vou... Agora, não. — Agora eu vou dormir, concluiu mentalmente, se é que já não estou dormindo. 

— Agora?   

A voz baixa que soou em seguida acabou despertando completamente o médico intrigado. Sentou-se de vez, percebendo que Lucca permanecia estático. Estava com a mente inquieta, percebeu.   

— Do que está falando? — perguntou, tentando entender, com esforço. — Você quer dizer... Você está se referindo à nossa conversa daquele dia?   

Mesmo com a escassa luz do quarto, provinda da janela, Nathan pôde ver Lucca relutar antes de assentir em silêncio.   

O médico suspirou de forma pesada, pensando que o interrogatório de horas antes havia sido uma péssima ideia. Aliás, todos os interrogatórios das últimas três semanas foram uma péssima ideia, e se sentia um imbecil por haver concordado com eles. Sentiu-se forçado a socar aqueles agentes federais pela segunda vez no dia, por forçarem as diversas perguntas incômodas para Lucca, sem importar-se com o que estas causariam nele. Não era de se questionar que Lucca ainda estivesse pensando que, em mais de dez anos de vida, seja lá com quem conviveu ou com quem esbarrou-se no caminho, havia acabado sozinho em mais de cinquenta hectares de floresta.   

— Não, não irei embora jamais — respondeu de forma mansa, da mesma forma como o fizera semanas antes, tateando o colchão até encontrar a mão alheia, juntando-a com a sua.  

Como se esperasse o toque físico do mais velho, já acostumado a mania do médico de invadir seu espaço pessoal, Lucca puxou sua mão quase instantaneamente. No entanto, Nathan segurou-a com mais força, mantendo-a com a sua. Isso causou, automaticamente, um franzir entre as sobrancelhas escuras do garoto.   

— Lucca — chamou, desviando a atenção do menor das mãos para seu rosto. Sentia o corpo de Lucca retesar com o toque forçado, embora não o estivesse machucando e ele não estivesse tentando afastar-se uma segunda vez. — Você é da família agora, e família permanece unida. Nós te amamos, pequeno. Todos nós — afirmou, tentando passar a mesma segurança que sentia. Então, sorriu ao dar-se conta do fato pela primeira vez de forma concreta, completando: — Eu te amo.   

Lucca, com as sobrancelhas unidas em uma tentativa constante de tentar compreender o médico, manteve os olhos presos no rosto do mesmo, muito mais acostumado com o escuro que o maior.  

Embora as últimas três palavras do médico tivessem-no atingido, por conta das falhas memórias dos pais que teimavam em queimar sua mente, Lucca manteve a atenção focada nas outras palavras. Segundo o que sabia, amor era algo nada extraordinário e nada significativo. Tentava decidir se o médico falava a verdade ao dizer que nunca o abandonaria e se podia confiar no mesmo, apesar de nunca tê-lo pego em uma mentira.   

Lucca era incapaz de compreender, mas devido ao pouco tempo que dedicou a pensar no assunto, sabia que a ideia de ter Nathaniel longe de si para sempre não lhe agradava nem um pouco. Era uma sensação parecida com a que sentira quando Sassenach fugira aquela vez de si, levando-o à loucura e sumindo por meses, de forma com que ficou sozinho. E talvez tão parecida com a sensação que sentira ao dar-se conta de que Abigail e Nigel já possuíam cabelos brancos e rugas, e que pessoas com cabelos brancos e rugas não demoravam muito a perecer.   

No entanto, a sensação que sentia ao pensar em perder Nathan, como perdera Sassenach, lhe parecia ainda pior. Trazia um embrulho no estômago que, ao contrário do que ocorria em certos momentos que Nathan sorria, era tremendamente ruim. 

Depois de encarar fixamente a mão grande do médico que cobria a sua por tempo indeterminado, puxou-a devagar, sabendo que Nathan não o impediria uma segunda vez. Ergueu os olhos para o médico assim que suas duas mãos estavam caídas ao lado do próprio corpo, de forma segura. Ainda sentado sobre as pernas, percebeu, com a visão acirrada de anos de costume com o escuro, que Nathan continuava a lhe sorrir com carinho.   

Decidiu, em um impulso, que devia saber se Nathan faria coisa pior do que o abandonar de propósito, como Sassenach. Decidiu que devia saber se o maior o abandonaria sem querer, como sua mãe o fizera.   

— Você vai morrer?  

O sorriso do médico não demorou em sumir, sendo tomado de forma contínua por um sentimento que Lucca desconhecia: compaixão. O médico sabia e entendia a insegurança do menor em deixar pessoas entrarem em seu coração, e lhe atingia o próprio que o deixasse tão angustiado a respeito.  

— Bom, todos nós... — começou, mas interrompeu-se para reformular a frase de maneira melhor. — Só quando eu estiver bem velhinho — concluiu, segurando o impulso de tocar o rosto de Lucca de forma afável. Sentia-se irritado, às vezes, com essa necessidade que tinha de tocar, afagar, beijar e abraçar quem amava, em excesso. — Até lá, você já vai ter desejado se livrar de mim — completou então, com uma nota de humor.   

Lucca negou com a cabeça de forma instantânea, confuso pelo médico pensar isto. Podia ser que o garoto não tivesse certeza de muita coisa, mas disto ele tinha: jamais gostaria de se livrar de Nathan, como se livrara de alguns gambás incomodativos ao longo dos anos.   

 Mamá morreu antes... de... ela..   

Lucca suspirou, subitamente irritado por debater-se tanto com as palavras quando haviam muitas delas ou quando falava rápido demais. Às vezes, não podia crer que fosse tão difícil fazer algo tão simples quanto falar seu idioma sobressalente como todos o faziam. Compreendia quase todas as palavras em inglês e, quando não entendia, bastava deduzir. Era bom nisto. Já havia aprendido o dobro do que sabia na base da dedução e na maneira como todos pareciam usar as mesmas frases.   

No entanto, era difícil pôr em prática tudo o que sabia, já que havia de se lembrar da forma de uso e das pronúncias ao mesmo tempo que havia de controlar todos os outros idiomas estrangeiros que teimavam em surgir, já que ninguém os parecia entender.  

"Eu te amo", havia dito Nathan. No entanto, apesar de não lembrar como havia aprendido a frase em inglês, repercutia em sua mente o "te quiero" de sua mãe, seguido de "cariño mio" que tanto dizia.   

— Antes de... ficar bem velhinha — completou, nas palavras do maior, ao perceber o silêncio do médico.   

Ambos sabiam que, no momento em que o passado do menor era mencionado por ele, o médico tendia a tornar-se bastante cauteloso, com medo das próprias palavras. Tornava-se curiosamente complacente, como o fizera no momento, esperando que Lucca terminasse sua linha de raciocínio.   

Quando o tempo em silêncio havia se tornado um incômodo, visto que ele apenas era aceitável e habitual provindo de Lucca, Nathan abriu a boca para soltar um "oh" quase mudo.   

— Bom — começou, após pigarrear, com cautela —, eu não vou embora antes disto — afirmou mais uma vez, obtendo um estreitar dos olhos negros, mesmo sem poder ver. Lucca sabia melhor que isto. — Eu sou médico, lembra? Eu salvo vidas, incluindo a minha. Se eu ficar doente, saberei cuidar de mim mesmo — completou, ignorando a voz em sua mente que o lembrava de não ser imortal. — Sua mãe estava doente? — perguntou, incapaz de conter-se.  

Pela primeira vez desde que conhecera o garoto selvagem, observou uma sombra de tristeza passar por seu rosto. E se o podia ver no escuro, a ideia de ver tamanha desolação no rosto de seu pequeno em plena luz fez um nó formar-se em sua garganta.  

Lucca balançou negativamente a cabeça.  

— Lucca... — sussurrou Nathan, tentando pensar em uma forma de lhe fornecer consolo. Ergueu a mão instintivamente e logo a baixou.  

Lucca era uma tortura para médicos, e deu-se conta disto apenas então. Seu maior instinto era o de proteger e o de curar, de fornecer ajuda e consolo. Mas não podia tocar-lhe, nem abraçar-lhe, nem beijar sua testa. Algumas vezes podia afagar-lhe os cabelos, mas apenas quando o pegava desprevenido. Não era o caso.  

Lucca, não gostando nada da visão abalada do médico, fixou os olhos em algo que lhe incomodava profundamente. As rugas que as sobrancelhas escuras faziam ao juntar-se, formando uma expressão nada agradável em Nathaniel. Ergueu a mão antes que pudesse se conter, deslizando os dedos magros pelo cenho franzido do mais velho, com o objetivo que desvanecesse. Nathaniel espantou-se pelo toque do menor, arqueando as sobrancelhas com surpresa. Percebeu que tão logo fez contato, o garoto se afastou, inclinando a cabeça levemente para a direita. Sua ideia havia funcionado e tratou de observar atentamente o médico para ver se a expressão retornaria.  

Nathan piscou algumas vezes, logo deixando-se sorrir largamente ao perceber o que Lucca tentara fazer. Ponderou se contava a Lucca o que o garoto não via no espelho: as próprias sobrancelhas, sempre juntas. Ah, se ele soubesse o quanto Nathan gostaria também de fazê-las desvanecer.  

Abriu a boca para dizer alguma coisa boba, como sempre dizia para amenizar o assunto, mas a expressão de Lucca mudou subitamente. Nathan calou-se, percebendo que Lucca não havia terminado, intrigado com a súbita vontade do menor de conversar.  

— Você vai saber se cuidar se... — começou Lucca, interrompendo os pensamentos melancólicos do médico. Precisava saber se perderia de Nathan, e precisava saber agora. Parou por um instante, pensando em como descrever o que queria. — Se atirarem em você?  

— O quê? — perguntou Nathan, mais automaticamente do que pensado. Do que o garoto falava? — Atirarem em mim?  

— Ja — respondeu, olhando fixamente nos olhos amêndoas. — Com armas.  

O espanto de Nathan apenas aumentou com o rumo da conversa. Não sabia do que Lucca falava, porque não podia estar presente nos interrogatórios da delegacia. Sabia vagamente sobre os armamentos no local, por conta da boca da população e do pouco que o Departamento de Doubleville deixou escapar na imprensa, mas jamais conseguia relacionar este tipo de coisa com a criatura encantadora à sua frente. Sequer sabia o rumo da investigação e o que, de fato, eles ainda estavam procurando. Neste quesito, o médico estava no escuro e Lucca tinha a luz.  

Nathaniel não havia gostado nada do garoto falando em armas, e muito menos de saber que este tipo de coisa estava em sua mente a ponto de pôr em palavras.  

— Por que alguém atiraria em mim? — sussurrou, sequer percebendo o porquê de estar sussurrando. 

— No sé — respondeu Lucca, também em um tom baixo. Nathan franziu o cenho, mas já sabia que quando Lucca deixava escapar alguma palavra em espanhol, tendia a enroscar-se em outras. — Atiraram em mamá.  

Nathaniel arregalou os olhos antes que pudesse se impedir, e Lucca franziu ainda mais o cenho. Com o coração no estômago, ou ao menos era essa a sensação que tinha, Nathan aproximou ainda mais o rosto de Lucca, chocado. Se pensava que todo o mistério em torno do garoto beirava o horripilante, agora então sentia os pêlos do braço arrepiarem.

Estava horrorizado, e não por si. Por Lucca.  

— Como você sabe disso? — perguntou, temendo pela resposta. — Alguém te contou? Quem falou isso para você? Quando?  

A pele de Nathan vibrava com a ideia de alguém dizer tamanha atrocidade para uma pessoa como Lucca, tão peculiarmente amável e cativante. Sentiu tanta raiva por um momento, e tanto horror com o que ouvia, que sequer soube como continuava aparentemente calmo. Talvez por causa de Lucca. 

No, Nathaniel — respondeu ele, balançando a cabeça com o cenho franzido. E Nathan teria achado graça na junção do próprio nome com a palavra espanhola e o som da mesma, mas sequer sentia os músculos do rosto para que pudesse sorrir.  

Se pensava que havia ouvido o suficiente para que seu coração encolhesse dentro do peito, ao ouvir as próximas palavras do garoto, então, sentiu que nem mais coração tinha. 

O sono, pesado e desejado sono que tanto sentira na parte da noite, havia desvanecido completamente. E o médico, com os dias tão ocupados e tão exaustivos, ponderou se sequer conseguiria dormir outra vez. Em todo o ano. 

— Sei porque eu vi.  


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Notas finais do capítulo

*Crime do colarinho branco, pra quem não sabe, é aquele cometido por alguém em uma posição importante, de alta posição e status para o Estado. No caso, aqui, falamos de corrupção policial.

Gente, hoje é meu aniversário e aqui estava eu pensando... Vou terminar logo o capítulo de 'Lucca' e enviar! Afinal, no mundo dos hobbits - e eu, certamente, sou um -, quem ganha presente em aniversários são os convidados! Hahahhahahah. ♥

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! *O*



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