Lucca escrita por littlefatpanda


Capítulo 22
XXI. Tormenta


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! *-*



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Março 

 Nathan? 

O médico piscou algumas vezes até voltar ao planeta Terra. Focou os olhos amendoados no amigo, que o encarava com as sobrancelhas louras arqueadas. Logo desviou para a formosa mulher ao seu lado, que também o encarava com curiosos olhos castanhos. 

— Perdão, eu estava distraído — falou, com um sorriso mínimo, sem querer dizer que estava com a cabeça em Cherub Field. E em Lucca. 

Havia um bar, há duas quadras de seu apartamento, que Nathan frequentava muito raramente com Kellan, quando tinham algum tempo livre. Nesta ocasião, o loiro havia levado sua namorada, Michelle. 

Kellan e Michelle eram um casal que atraía, no mínimo, alguns olhares curiosos. Enquanto Kellan era um cara alto, de pele alva, com cabelos louros e olhos verdes, Michelle parecia ser o oposto. De pele negra e volumosos cabelos crespos, se a mulher fosse apenas um pouco mais baixa, seria do tamanho de Lucca. Os olhos castanhos, no entanto, continham a mesma afabilidade encontrada nos verdes. 

— Você está distraído a noite toda, Nathan — disse o outro, um tanto preocupado, embora tivesse um toque de humor em sua voz. 

— Se você quiser, a gente pode sair outro dia — acrescentou Michelle, relanceando o namorado e logo voltando os olhos para Nathan. Não queria que ela e o namorado fossem um incômodo para o mais alto. 

— Capaz — disse Nathan, se permitindo rir. — Confesso que estou um tanto por fora hoje, mas não é nada demais. 

A verdade era que Nathan andava dormindo muito pouco e muito mal. Estava preocupado, triste e assustado. Desde as palavras que ouviu da boca de Lucca, andava muito perdido em pensamentos e até pesadelos havia chegado a ter. Todos eles envolviam uma floresta, um garoto abandonado, rostos distintos que a cabeça havia inventado e muita violência. 

A ideia do pequenino garoto com os olhos negros presos na mãe no minuto em que ela fora cruelmente assassinada lhe dava calafrios e lhe revolvia o estômago. No entanto, não era isso que corroía a alma por toda a semana que se passou. 

O loiro o encarou por um tempo, sabendo que fazia alguns dias que Nathan andava estranho, mas não comentou mais nada. E como sempre acontecia desde o aparecimento de Lucca, sabia que as mudanças na reação do moreno era devido ao garoto. 

O mundo de Nathan girava em torno do garoto encontrado. 

Kellan optou por puxar um assunto a respeito do trabalho da namorada, que é professora, e logo conseguiu captar a atenção de Nathan, que se esforçava para manter a conversa. Logo beberam cervejas e pediram por mais, jogando conversa fora e aproveitando um pouco do tempo longe do hospital. 

Nathan, mesmo angustiado, permaneceu com o único amigo que tinha na cidade e a namorada dele até que a noite tivesse fim. 

O que acontecia dentro de seu peito, que parecia apertar, ia mais longe do que o passado de Lucca e tudo que ele houvera passado. O que sentia ia mais longe do que ainda poderia vir a acontecer. O que lhe angustiava eram os olhos negros do garoto, quando se fixaram em si pela última que o vira, uma semana antes. 

Lucca estava magoado. 

Na realidade, Lucca esteve magoado por anos, depois de tudo que havia passado consigo. O problema é que, agora, estava magoado com Nathaniel de uma maneira tão desastrosa que sequer o olhava na cara. 

E Nathaniel, sentindo-se um idiota, acabava por importar-se mais com a traição para com o pequeno do que com o passado revelado por ele. Sentia-se horrível, na realidade, porque seu coração estava mais esmigalhado pelo fato de ter o outro não o olhando na cara do que com todo o resto que aconteceu com ele. Nunca revelaria isto à ninguém, mas era impossível evitar. 

Lucca não revelou muito mais além de haver presenciado a morte da mãe. Tanto por estar entristecido com o assunto, quanto pelos olhos arregalados que o encaravam com puro pavor. Nathaniel não conseguiu manter a compostura, e depois de conseguir recuperar a voz e fazer mais perguntas, Lucca mais nada revelou. 

O garoto dos cabelos tortos voltou para a cama no minuto seguinte, e se tapando com a coberta, pôs fim ao assunto. Lucca, na realidade, estava satisfeito com o que ouvira de Nathaniel. Apesar de ter um profundo medo que ocorresse com o médico o mesmo que ocorreu com a mãe, confiava quando ele lhe dizia que saberia cuidar de si mesmo para estar ali pelo menor. 

No entanto, a confiança pareceu haver desvanecido quando descobriu que sua memória terrível havia sido compartilhada, por Nathan, para os outros. E o médico, sentindo-se terrível pelo feitio mas não arrependido, não teve opção a não ser voltar para seu trabalho e seus estudos, sentindo-se tão pequeno quanto uma formiga. 

 

— É esta — disse Grace, apontando para a foto com pesar, no minuto que pôs os olhos nela. Havia reconhecido de imediato. 

Os arquivos do caso de Lucca estavam espalhados pelo escritório de Hemming, enquanto os três agentes e o assistente de Luke procuravam fotos específicas de Amoran. 

Estavam todos em posição de alerta desde que descobriram que estavam sendo viagiados por alguém - ou mais de um alguém - de dentro do próprio Departamento de Doubleville. Hemming, como era o agente mais respeitado pelo departamento, visto sua quantidade de medalhas e condecorações, ordenou que ninguém mais mexesse nos arquivos de sua investigação. Não foi bem uma ameaça, mas ele se certificou de que soasse como uma. 

Todas as informações, que vieram apenas impressas da Delegacia de Amoran, deveriam ser digitalizadas no momento em que ingressassem em Doubleville. E o foram. No entanto, Luke estava tão paranoico que sequer confiava nos aparelhos eletrônicos e deu um jeito de deletar tudo o que estava digitalizado. 

E ali se encontravam, com todos os arquivos espalhados por seu escritório, depois de tê-los tirado de um depósito resguardado a sete chaves. 

Depois da revelação perturbadora de Lucca, Nathan sentiu-se na obrigação - apesar de sentir que estava traindo o pequeno - de contar para os agentes responsáveis pelo caso. Havia feito o certo, embora em seu coração diminuto não parecesse assim. 

A morte da mãe de Lucca podia haver ocorrido em qualquer momento desde o instante em que as memórias de criança começaram. E eles sequer sabiam o nome da mulher, porque Lucca recém começava a dar abertura para falar sobre sua vida na pequena vila. No entanto, eles deviam trabalhar com o que tinham: as nove mortes das quais tinham conhecimento, na base de tiros. 

Como isto ocorreu em 2007, os corpos já haviam sido examinados e cremados em Amoran. O único que tinham eram as anotações e as fotos da cena do crime e, consequentemente, de cada um dos nove corpos de imigrantes. 

No momento em que eles folheavam as fotos, Grace indicou a mulher de cabelos crespos e um sinal de bala na lateral de sua testa. Estava com o corpo tapado por um lençol azul em uma das macas de metais do necrotério. Tinha a pele morena, lábios carnudos e cabelos castanhos e longos. Haviam algumas cicatrizes, mesmo pelo seu rosto, que tinha o inchaço pós-morte. 

— Como você sabe? — perguntou Lisa, pegando a foto com a mão e tentando ver alguma semelhança com Lucca. 

— Eu apenas sei — respondeu a outra, com o coração apertado ao encarar o rosto da mulher que um dia fora muito bonita. — É ela. 

Luke observou sua companheira por um instante, a conhecendo por tempo suficiente para confiar na intuição da morena. Grace havia trabalhado, por muito tempo, na área de denúncias. Muitas vezes acompanhava um jovem artista ao fazer os retratos falados, e com o tempo em que o observava desenhar perfeitamente a descrição dos outros, havia tomado certo interesse por feições faciais. 

Silêncio se instaurou pelo cômodo. 

— Vou pedir para que comparem as semelhanças genéticas e de estrutura óssea dos dois — falou, indicando a foto da mulher morena e a foto que tiraram de Lucca quando ele começou a ser investigado. 

Todos assentiram. 

— Ainda não sabemos o nome dela — interveio Jesse, o assistente, enfiando o rosto pálido entre os três. 

— Eu estou trabalhando nisto — respondeu Lisa, sem conseguir tirar os olhos do corpo desfalecido da mulher de cabelos crespos. 

— Não sei de que vai adiantar — resmungou Hemming, fazendo um gesto vago para as anotações. — Já temos o nome do pai e não conseguimos nada sobre ele. 

— O que foi que ele disse? — interrompeu Jesse, os olhos em Lisa. 

Lisa estava passando mais tempo em Cherub Field do que em Dobleville, viajando de um lado ao outro toda hora. Ela sabia do que Jesse falava. Lisa havia interrogado Lucca, com Gerard, no dia seguinte ao da revelação. 

Já havia reportado tudo sobre o interrogatório, mas Jesse não estava junto, e morria de curiosidade. Era o mais novo entre eles, e logo ingressaria da Academia Policial, quando passasse nos exames. Tinha uma animação e uma gana por aprender que já não haviam nos agentes mais velhos. 

— Ele não quis dizer muito, e eu entendo. Havia confiado em Nathan com uma informação que, se não estivéssemos em uma investigação, deveria acabar nele. Não foi para nós que ele contou — disse, pesarosa —, e não quis contar mais nada. 

E expressão de Jesse murchou. Percebendo isto, Grace sorriu. 

— Mas Nathan disse que ele parecia realmente comovido ao falar da mãe — falou, relanceando Lisa, que confirmou com a cabeça. — Lisa disse que as reações de Lucca denunciaram o quanto a mãe significa para ele. — Então, engoliu em seco mais uma vez ao lembrar da foto, já esquecida em cima da mesa. 

— O que isto quer dizer? — perguntou Luke, franzindo o cenho. 

Jesse assentiu, entendendo antes que o seu superior. 

— Quer dizer que ele era amado, ao menos pela mãe — disse Jesse, pensativo. — Isto quer dizer que estas pessoas parecem menos e menos com traficantes e mais com imigrantes que só querem paz e conforto no país que escolheram para viver. 

Grace assentiu, e Luke suspirou. 

— Eles estavam sendo ameaçados — disse ele, sério e com o cenho franzido, enquanto os olhos desfocavam. — E eles não podiam ir à polícia porque não tinham permissão para estar ali. 

— Então eles faziam o que lhe eram pedido — continuou Grace, na mesma linha de raciocínio que o loiro. — Em troca de um lar, pequeno, mas um lar, onde pudessem ter tudo o que necessitavam. 

— Eram escravizados — murmurou Jesse, em conjunto. 

— De nada importa se não soubermos quem exatamente está por trás disto — disse Luke, estalando a língua. Já tinha uma noção do que acontecera fazia meses, mas não importava. Não tinham provas. — E quem colaborou, e de onde surgiu tanto armamento, e como todos sumiram de lá, e para onde foram... — murmurou, fazendo um gesto com a mão. Então, com um riso sem humor, encarou a todos: — Devo continuar? 

Outro silêncio.

Desta vez, quebrado por Lisa. 

— Bom — disse, forçando um sorriso —, isto pode ficar para depois. Se arrumem, porque eu me recuso a viajar sem vocês. E já está na hora. 

Era segunda-feira, dezesseis de março de 2015. Aniversário de Lucca. 

Hemming fez uma careta, esfregando os olhos pelo cansaço. Clark focou os olhos nele, estreitando o olhar azul. 

— Nem vem, Luke — reclamou Lisa, já tendo ouvido a negativa dele mais cedo daquela dia. — Você irá também. 

A família Walker optou por fazer uma festa tradicional de aniversário, com presentes, bolo, salgadinhos e balões. Depois que o mais caçula dos filhos, Gus, tornou-se um adolescente que reclama como todos, já não haviam festas de aniversário naquela casa, e eles estavam animados. É claro que, se Lucca fosse como os outros garotos de sua idade, também não iria querer festa. No entanto, ele nem sabia como era uma para poder reclamar. Mas ele teria. 

É claro que haveriam poucos convidados, só os chegados da família e de Lucca, mas seria simbólico. Mesmo que os agentes viessem a estar errados, ou que os códigos descifrados por eles datavam os acontecimentos de forma errônea, esta já era a data oficial para a família do garoto. Era o primeiro aniversário de Lucca, mesmo que estivesse completando seus dezesseis anos.

Lucca merecia ao menos uma festa com tudo que tinha direito. Mesmo que não chegasse a compreender o motivo, Abigail e Nigel dariam esta lembrança à ele. 

Aos poucos, substituiriam todas as memórias pavorosas e solitárias do garoto por outras que envolvessem sorrisos, presentes e abraços, mesmo que este último item ainda fosse um nó a ser desatado.

— Você não vem, Jesse? — perguntou Grace, quando eles se ajeitaram para deixar o escritório e Jesse fingia mexer nos papéis com desânimo. 

O loiro tinha a pele tão branca quanto papel, e seus cabelos, seus cílios e suas sobrancelhas eram de um amarelo tão claro que denunciava a sua descendência gringa. Os olhos castanho-claros contrastavam com a pele alva. Ao contrário de Luke, que tinha a pele morena e os cabelos loiro-queimados. 

O rosto de Jesse iluminou-se imediatamente. 

— Posso mesmo? — perguntou, animado. 

— É claro, garoto — disse Luke, evitando revirar os olhos. — Você é parte da equipe. Não percebeu ainda? 

Com um sorriso de ponta a ponta, Jesse apressou-se em pegar seus pertences e correu para acompanhar a equipe. O garoto de vinte e dois anos havia sido contratado apenas depois que Lucca voltara à Cherub Field, logo após o interrogatório do garoto ter dado como empacado. Jesse se remoía de curiosidade de conhecer o garoto perdido, que a mídia tanto falou, e queria logo pôr os olhos curiosos nele. 

Os quatro saíram do Departamento de Doubleville, sem olhar atrás, em direção do carro de Hemming que faria a viagem. 

Eles não sabiam, mas aquele dia marcaria o fim de uma etapa. Havia uma tormenta no caminho. E todos perceberiam, depois de alguns dias, que haviam escolhido a maneira perfeita para passar aquele tempo: em uma festa de aniversário, com os ombros relaxados, em um descanso necessário e merecido. 

Não olharam para trás. 

No entanto, mesmo que tivessem olhado, não seriam capazes de ver ou saber que alguém invadiria o escritório de Hemming. Não podiam saber que a porta do armário à quatro chaves seria aberta tão facilmente, ou podiam, por isto que dentro dela havia um cofre praticamente impossível de arrombar. 

Um cofre que não precisou ser arrombado. 

O ser em questão tinha conhecimento da senha. 

 

— Assopre, querido! 

O pedido veio de Abigail que, com os cabelos loiros esbranquiçados em um coque formoso e um vestido florido, lhe indicava a vela no meio do bolo. 

Todos os três agentes estavam vestidos em roupa de dia-a-dia, o que pareceu à família Walker um tanto diferente, especialmente Luke e Grace, que estavam sempre fardados. Jesse também estava junto e em poucos segundos, conquistou o coração de Abigail e Nigel com seu jeito de ser. De Lucca não se poderia dizer o mesmo.

Mas de quem é que Lucca gostou de primeira, além de Nathan?

Em torno da mesa estavam: os quatro federais Luke, Grace, Lisa, Jesse, a assistente Gloria, Gus, os quatro policiais locais Tony, Gerard, Beatrice, Robert, e os pais adotivos do garoto. Lucca usava uma roupa larga, como sempre, e desta vez ninguém reclamou para que pusesse os calçados. Os cabelos castanho-claros já haviam crescido um pouco, mas os olhos negros ainda eram visíveis. 

Lucca franziu o cenho, encarando a vela acesa em seu bolo. 

Por que diabos eles haviam acendido a vela se tinham a intenção de que se apagasse? 

— Assopre e faça um pedido — interveio Gus, com um sorriso encorajador. Já sabendo que o garoto não entendia o motivo, acrescentou: — É porque dizem que em datas assim, o aniversariante — falou, e Lucca já sabia do que se tratavam os aniversários já que lhe foi ensinado com tanta paciência — deve fazer um pedido ao soprar a vela para que ele se realize. Qualquer pedido — acrescentou, tentando agir como o irmão agiria. — E não precisa falar, só pensar. 

Isso pareceu confundir ainda mais o adolescente. 

Como é que eles adivinhariam o que pediria para realizar o pedido? 

Gus suspirou, olhando para os pais que nada diziam, mas lhe encaravam como se dissessem: começou, agora termina. Gus focou os olhos azuis nos negros e ergueu os ombros. 

— Dizem que o pedido, mesmo em pensamento — enfatizou, quase podendo ver a cabeça de Lucca trabalhar com esforço para acompanhar o raciocínio —, é ouvido por alguém poderoso que fará com que ele se torne realidade. 

Os olhos escuros alargaram, surpreso pela explicação de Gus. Ainda tinha muitas perguntas, é certo, mas já havia aprendido que tem vezes em que deve simplesmente fazer o que lhe é pedido. E talvez perguntar depois.

No entanto, demorou demais para responder, porque Gus nada se parecia com o irmão mais velho, mesmo que tentasse na sua ausência, logo não possuía a mesma paciência. 

— Ora, Lucca, faça logo o pedido e assopre a vela — resmungou, obtendo risos por alguns dos presentes. Fuzilou Tony, que conhecia da infância, e logo voltou os olhos para o garoto e lhe sorriu. 

Lucca, com as sobrancelhas arqueadas pela reação do maior, voltou os olhos à vela. Pensou por um momento em que pedido faria, e então assoprou a vela para que se apagasse. 

Repetiu a ação três vezes até que ela apagasse completamente, ouvindo aplausos logo em seguida. 

Logo vieram os pedaços de bolo repartido, os "parabéns" que tanto lhe diziam embora não entendesse o motivo, a tentativa de abraço de Jesse - coitado - que não tinha noção sobre os toques não permitidos, e Sassenach pulando e latindo em torno de todos. 

Jesse matou a curiosidade, e apesar de Lucca ter sido mais reservado com ele do que com os outros já que acabara de conhecê-lo, não desgostou de sua presença. Luke era sério por natureza, mas ao beber um pouco da cerveja oferecida por Nigel, acabou por soltar alguns sorrisos, assim como Grace. Esta passou algum tempo com os olhos em Lucca, com um pesar, ainda com a cabeça na mãe do garoto. 

Apesar do pé atrás que a delegacia tinha com a equipe de I.E.C, tudo foi deixado para trás na conversa descontraída que ali havia. Lucca foi mais paparicado que o normal e, para seu desespero, não foi deixado sozinho nem por um minuto enquanto todos estavam ali. 

De alguma forma, Lucca sentiu-se bem com a presença de todos os que conhecia, mesmo que não gostasse do som alto de vozes em conjunto e nem do espaço que se fazia menor com a quantidade de gente. Embora seus olhos sempre voltassem à porta da casa, à espera daquele que o havia magoado. 

Nathan só apareceu muito mais tarde, porque tinha que cumprir suas horas e não conseguiu ninguém que o substituísse. Acabara perdendo toda a festa de aniversário, do primeiro aniversário do pequeno, e sentiu-se péssimo por isto. 

Não que Lucca fosse se importar, porque além de estar chateado com ele, não compreendia a dimensão de uma festa de aniversário para se chatear pelo fato dele não estar ali. 

Só que Nathan queria haver estado ali. 

— Lucca, por favor — pediu Nathan, sentindo o coração encolher no peito. 

Lucca estava sentado na cadeira de balanço ao lado da janela, abraçando os joelhos, enquanto mantinha o olhar para o lado de fora da casa. Ele não sabia, mas havia sido entre aquelas folhagens que Nathan havia posto os olhos em si pela primeira vez. 

Nathaniel suspirou. 

— Sei que você está chateado comigo — continuou o médico, com a voz agoniada. — Mas eu disse que não vou embora e eu não vou. 

Lucca virou o rosto, pondo os olhos negros em Nathan pela segunda vez naquela noite. Tinha as sobrancelhas tão juntas que o médico pensou que fossem se fundir. Mas o que viu naquelas orbes tão negras quanto a própria noite o fez engolir em seco. 

Não mais chateação. Não mais mágoa. Agora o sentimento prevalente era a raiva. 

— Pues deberías* — disse o pequeno, cerrando a boca com força. 

Nathaniel quis muito entender o que o menor havia dito, mas seu conhecimento de espanhol ia até palavras simples. Forçou a mente a lembrar das aulas extras que tivera quando estava no colégio, mas nada veio. E nem se atreveria a perguntar, embora soubesse que era uma recusa para consigo. Uma recusa de falar com ele, uma recusa de ouvir-lhe, uma recusa de ter-lhe ali. 

Suspirou mais uma vez. 

A festa organizada pela família Walker estava sendo, aos poucos, recolhida no andar de baixo. Já passava das onze da noite, e apesar de Gus continuar comendo pedaços do bolo ao assistir televisão, todos os outros já haviam ido embora. 

Lucca, no entanto, era uma pessoa introvertida. Precisava ficar um tempo sozinho para recuperar as energias que foram sugadas por todos os presentes naquela tarde. Então, ali estava, em seu quarto. 

Quando Nathaniel chegou, não se surpreendeu com o escuro do cômodo. No início, sempre que entrava ali e encontrava as luzes apagadas, seu primeiro pensamento era de que Lucca dormia. Às vezes estava certo, mas aprendera que sempre que Lucca não estava fazendo os deveres de casa ou lendo alguma coisa, as luzes estavam apagadas. 

Sempre que podia, Lucca estava no escuro e no silêncio, como ficava na floresta. 

— Não vou ir embora — repetiu, sentado na cama enquanto encarava Lucca na poltrona ao lado da janela. — Então teremos dias muito aborrecidos, porque ficaremos juntos. Você estará chateado comigo o tempo todo e eu estarei pedindo desculpas o tempo todo.

O médico recebeu mais silêncio como resposta. 

Deixou os ombros caírem, desviando o olhar para o resto da cama ao seu lado. Haviam presentes em cima dela, com os pacotes embaixo, já que todos estavam abertos. Não pôde distinguir muita coisa no escuro, mas identificou algumas roupas no meio. 

Fechou os olhos com pesar, recém dando-se conta de que não comprara um presente para o garoto. 

— Me desculpa — murmurou, por fim, pela vigésima vez. Havia pedido diversas vezes na semana passada, e pedira outras tantas desde que adentrara no quarto antigo. — Eles precisavam saber sobre sua mamá — optou por usar o termo dele —, era importante que soubessem. 

— Não entende — respondeu, logo após, ainda bravo. 

E de fato, Lucca não entendia. Não entendia por que eles ainda estavam investigando isto, por que era importante saber tanto sobre o que ele sabe, por que ele tinha que ficar revivendo memórias ruins. Não entendia o objetivo de ter que passar por tudo isto e não achava que motivo algum fosse ser o suficiente. 

Eles diziam que era importante encontrar quem houvera os deixado viver na floresta para que pagassem por isto, porque era errado. Lucca sabia que era errado, porque viu tanta coisa lá que fazia seu estômago revirar em um sentimento ruim e desconhecido por si. Sabia o quanto era errado que tivessem matado sua mãe em frente de si, porque ele mesmo chorara tanto quando isto ocorrera. Sabia que era errado. Mas também sabia que agora estava à salvo e queria permanecer assim. 

A polícia queria encontrar os responsáveis para prendê-los, mas Lucca queriam que eles permanecessem longe de si. 

— Eu sei — murmurou Nathan, conhecendo o garoto de origem indiana. E sabia mesmo. — Eu sei que você não entende. — E sua voz saiu tão carinhosa, como quando se diz um "eu te amo" do fundo do coração. 

Lucca piscou.

O garoto, mais acostumado com a falta de luz do que Nathaniel, podia discernir toda a face do médico, mesmo só com a luz da lua. Todos os detalhes, mesmo ofuscados no escuro, podia ver dali. Inclusive o brilho carinhoso e pesaroso em seu olhar.

Aquele olhar caramelado que só Nathan possuía. 

E então sentiu. Sentiu aquela fisgada no peito que parecia fazê-lo apertar a ponto de doer. E então, sem entender o porquê, assim como não entendia muita coisa, seus olhos encharcaram. Frisou um lábio no outro, querendo que parasse antes mesmo de começar, enquanto as lágrimas acumulavam nos olhos escuros. 

Nathan pôde ver, de onde estava, os olhos negros brilharem demais, mesmo no escuro. Lucca chorava. A concepção do fato fez com que o maior se sentisse tão culpado a ponto de querer bater em si mesmo por tão sido tão idiota e causado tanta dor que não sabia que causaria no menino.

Mas a verdade é que, mesmo que houvesse mágoa pelo pequeno, isto não era nem de perto o único que atormentava Lucca. E nem de perto era culpa do maior. Era uma pena que nenhum dos dois soubessem disto. 

Havia tanto hormônio no organismo de Lucca, funcionando de maneira adequada pela primeira vez em anos, que seria o suficiente para fazê-lo quebrar em dois. Tinha dezesseis anos completados, e mesmo que não fosse em mente, em corpo era, sim, um adolescente que sequer entende o que se passa dentro de si. Se para um adolescente normal, chorar e rir e gritar em menos de um minuto de diferença entre cada coisa, era comum, então para alguém como Lucca a adolescência devia ser um inferno. 

Porque não era só com a adolescência que estava lidando, era com a humanidade. Tão desconhecida quanto. Porque Lucca estava acostumado a sentir apenas frio e fome e medo. Desconhecia o que ia além disto, e o que já sabia de quando criança, esquecera e tivera que reaprender. 

Estava aprendendo e reaprendendo, e já não mais sentia apenas frio, fome e medo. Lucca, agora, sentia absolutamente tudo que devia ter sentido em toda a vida. Amor, afeto, mágoa, empatia, desejo, dor. 

Estava transbordando sentimentos, porque já não mais cabiam dentro de si. 

Nathaniel sentiu o ímpeto de levantar-se e tomá-lo nos braços, mas sabia que não podia. Limitou-se a engolir em seco, e encará-lo com agonia, querendo acabar com toda e qualquer confusão que havia no garoto. Queria acabar com toda e qualquer dor. 

Lucca chorou em silêncio, odiando o fato do corpo agir de maneira tão estranha. Já havia chorado tanto nos primeiros meses em que estava sozinho em centenas de hectares de floresta. Já havia chorado, mesmo que em memórias distantes, quando era muito pequeno e ralava diariamente o joelho. Já havia chorado pela morte da mãe, e por outras das quais se lembrava vagamente. 

Mas nunca havia chorado por um motivo tão estranho. A traição de um amigo. A traição de alguém especial. Qualquer um saberia que é mesmo algo doído, que é mesmo digno de lágrimas, que é mesmo normal. Mas Lucca não é qualquer um. 

Lucca não sabia. Lucca não entendia. 

Lucca não entendia o motivo de Nathan ter que revelar aos outros seu segredo, mas, sobretudo, Lucca não entendia por que se sentia tão chateado com aquilo. 

Ele não entendia por que queria parar de falar com Nathan, mesmo que não quisesse; por que queria jogar tudo que encontrasse em frente na cabeça do médico, mesmo que não quisesse; por que queria fugir para tão longe, mesmo que não quisesse; por que queria tanto que Nathan se afastasse, mesmo que não quisesse. 

E queria que ele o abraçasse, mesmo que não quisesse. 

Ficou em pé. 

Nathan manteve os olhos nos dele, tentando transpassar todo o amor do mundo para que sentisse que ficaria tudo bem, para que sentisse que podia confiar nele sim, para que sentisse que ele estava ali pelo pequeno. Mesmo quando Lucca levantou, Nathan permaneceu sentado na cama, sem desviar os olhos dos incrivelmente escuros dele. 

E então, aconteceu o inesperado. 

Lucca fechou a distância entre eles como um vulto, rápido do jeito que era, e fechou os braços em torno do pescoço de Nathaniel com brusquidão. 

O médico, assustado com o baque entre os corpos, quase caiu para trás. E então, sem pensar muito, fechou os braços em torno daquele corpo esguio pela primeira vez. Afundou o rosto na curva do pescoço do pequeno pela primeira vez, e fungou seu cheiro pela primeira vez.

Sentiu-se completo pela primeira vez. 

Lucca estava assustado. Chorava, tremia, transbordava. Não gostava de contato humano e não entendia como pode ter feito aquilo. No momento em que abraçou o mais velho, sentiu o ímpeto de se afastar no primeiro instante, mas os braços se fecharam às suas costas. 

Foi tão bom que, ao invés de se afastar, apertou-o contra si com mais força. E chorou ainda mais, sentindo o peito explodir, substituindo todos os sentimentos ruins pelos bons. Os sentimentos que Nathaniel parecia transpassar do peito dele para o seu. De um coração para outro. 

Havia sido um dia agitado. 

E enquanto chorava baixinho, agarrado àquele corpo forte, Lucca percebeu que, pouco a pouco, Nathaniel acalmava toda a tempestade dentro de si. 


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Notas finais do capítulo

*Pues deberías = pois deveria (ir embora).

Gente, perdão pela demora de dois meses. Sei que é muito tempo, ainda mais porque estive de férias por um deles. Mas eu viajei, e toda a atenção para Lucca e MoS foi desviada para a minha "primogênita": Made of Fire.

Agora que tenho as coisas encaminhadas por lá, eu vou desempacar esta daqui. Sinto muito. Mas agora estamos de volta! Haahhaha. Beijo no coração de vocês ♥

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! *O*



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