Infinite escrita por Skye Miller


Capítulo 21
De mal a pior.


Notas iniciais do capítulo

Esse capitulo ficou enorme,pois abordei várias coisas de uma só vez nele. Não aguentei mais ficar enrolando para explanar alguns temas, pois quero concluir com 30 capitulos.

Espero que goste :)



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Rua deserta. Sol escaldante. Hip hop tocando nos alto falantes.

A estrada é tão longa, tão calma e tão silenciosa que parece irreal. Eu fico olhando para frente e as vezes me perco por alguns segundos, pois ela parece não ter fim. É como se eu estivesse olhando para além do mar, de modo que em algum momento ele simplesmente se funde com o céu e se torna uma coisa só. Eu gosto disso, me traz uma sensação de finitude e me ajuda a não ter que ficar pensando em números. A situação poderia ser ótima, se não fosse o seu contexto desastroso.

O carro apaga bruscamente, mais uma vez, após uma marcha errada. Tento ligar novamente. As luzes se acendem, o motor treme e quando acho que estou finalmente conseguindo, ele apaga. Suspiro. Tento. Falho. E de novo, de novo e de novo.

— Saco. – Resmungo baixinho.

Penso em como seria tão mais fácil se eu estivesse em um carro automático ou algo assim. Colin faz parecer tão fácil e divertido dirigir, deve ser porque ele não precisa ficar presentando tanta atenção a essas coisas técnicas. Nos filmes em geral dirigir parece ser tão simples quanto andar de bicicleta, mas definitivamente não é.

— Você precisa tirar o pé da embreagem com calma – Aaron diz pelo que parece a milionésima vez nos últimos dez minutos. – Ao mesmo tempo em que pisa delicadamente no acelerador.

Tento mais uma vez. O carro dá um solavanco.

— Eu disse delicadamente, Violet.

Estou exausta. O número 12 da lista que Juliet deixou poderia muito bem ser feito com a ajuda de um professor de transito de verdade, com aulas particulares no qual eu de fato estaria tirando minha carteira de habilitação verdadeiramente. Mas Aaron fez questão de querer me ensinar. Ele disse, repetidas vezes, que assim eu poderia  obter a habilitação mais rapidamente, pois já saberia o básico. Eu juro que pareceu uma boa ideia, tão boa que automaticamente aceitei. Mas o que acontece de fato é que Aaron não é um professor muito paciente e eu não consigo ter foco o suficiente pra isso. Eu me distraio rápido demais vendo essa estrada sem fim.  

O calor também não ajuda muito, pois apesar de o ar condicionado estar no máximo, hoje o dia está absurdamente quente. Meus cabelos ficam com frequência grudados na minha testa e no meu pescoço, além de me sentir rígida demais. Meus ombros e braços pesam, como se estivessem com chumbo. Eu sei que isso provavelmente é porque estou segurando o volante com força demais, porém eu entendo que tudo isso é para me concentrar e não pensar no fato de que Aaron está sem camisa ao meu lado, suando tanto quanto eu.

Penso em fazer algum comentário engraçadinho sobre isso, mas não consigo raciocinar direito. Além disso, não é como se eu tivesse intimidade com Aaron o suficiente para fazer algo assim; as vezes sinto que ele é um completo estranho que um dia pensei conhecer.

Consigo sentir um acumulo de suor descer do meu queixo, deslizando calmamente e silenciosamente pelo meu pescoço, até parar no vão entre os meus seios.

— Se ao menos não tivesse tanto plástico nesse carro. – Eu resmungo baixinho, remexendo-me no banco e sentindo o atrito.

Leva alguns segundos até Aaron processar e ter alguma reação.

— O que você disse?

— Nada – Resmungo mais uma vez. Cutuco minha unha contra o volante, tentando controlar uma vontade enorme de ser grossa. – Olhe, a verdade é que não estou conseguindo alcançar direito o pedal, por isso essa dificuldade toda em conseguir trocar as marchas. O banco é alto demais para mim e não consigo me aproximar mais porque esse plástico idiota deixa minhas pernas basicamente coladas ao banco.

Aaron se move em minha direção. Fica tão tão tão próximo que minha bochecha entra em contato com a pele de seu braço enquanto ele tenta ajustar meu banco mais uma vez. Ele se afasta, apenas um pouco.

— E agora? 

Minhas bochechas ardem. Não sei exatamente para onde olhar, pois toda a minha visão está preenchida com a gota de suor escorrendo e descendo tão lentamente pelo seu peito.

— O plástico ainda incomoda. – Eu balbucio deliberadamente. Tento engrossar um pouco a voz e não parecer tão patética. – Fica grudando nas minhas coxas.

Ele se afasta bruscamente. Eu percebo rapidamente que ele está um pouco mais magro. Talvez magro nem seja a palavra certa. Mas seu corpo parece um pouco diferente. Acho que é porque as roupas que ele costuma usar o deixa com a aparência um pouco maior e agora que estou vendo-o sem elas essa surpresa me pega desprevenida.

Se estivessem em outras circunstancias, você se surpreenderia? —Consigo ouvir como se fosse um sussurro de Juliet em meus ouvidos ­ – Eu não.

Afasto o pensamento rapidamente. Minhas bochechas estão tão vermelhas que sinto-as arder. Viro o rosto para a janela ao meu lado. Uma leve pontada de insegurança se aloja em meu coração e começa a deixar um gosto ácido na minha boca.

Será se Juliet já o viu nu?

Claro que não.

— Não há nada que eu possa fazer, Violet.

É claro que sim. Eles namoraram.

— Violet?

Mas namorar não é sinônimo de sexo. Ou é?

Fecho os olhos com um pouco de força desnecessária. O gosto ácido parece quase insuportável agora, como quando você vai ao dentista e eles usam aqueles produtos para clareamento que te deixam com um gosto péssimo na língua. Eu não deveria estar pensando em coisas assim. Olho para as árvores e tento me concentrar em responder Aaron.

— Tirar os plásticos, talvez? – Eu sugiro, ainda olhando para as arvores. – Mesmo que só enquanto estou sentada aqui. Não é como se eu fosse fazer o couro rasgar.

— Acho melhor não.

Tento não resmungar. Respiro profundamente antes de me virar. Estou começando a ficar irritada.

— Afinal de contas, qual é a desse plástico todo? Você tem TOC ou algo assim?

O silencio reina. Fico esperando pela sua resposta, mas ela não vem. Quando enfim olho para ele, parece meio constrangido. Levanto uma sobrancelha. O gosto ácido está começando a desaparecer agora.

— Eu não acredito, Aaron. Você só pode estar brincando.

— Não é algo tão absurdo assim.

Bato a cabeça no volante. Agora entendo porque com frequência ele fica organizando e reorganizando as coisas. Agora entendo porque ele parece tão meticuloso e limpo.

— Mas não é por conta do TOC que mantenho o plástico, é outra coisa.

— Outra coisa? – Questiono, levantando uma sobrancelha – Olha, eu posso tirar o plástico só por hora. – Eu digo. Ele não me responde. Eu deveria calar a porra da minha boca, mas não consigo. Se Juliet estivesse aqui, ela já teria resolvido o problema. – Não vai afetar em nada, muito pelo contrário, não vamos suar tanto. Isso já está começando a ficar estranho.

— Estranho como?

— Ah, você sabe. – Cale a boca. Cale a boca. Cale a porra da boca. Você não quer falar isso. Você não deve falar isso. Cale a boca... – Você está suado, sem camisa. – Aaron continua olhando impassível para mim. – Eu também estou suada. Sinceramente, prestes a tirar a minha blusa. – Por um mísero segundo, acho que seu rosto treme. Mas talvez seja só impressão minha. – Estamos sozinho, com o carro parado no meio do nada e...

A visão de seu pomo de adão subindo e descendo enquanto ele engole em seco faz eu finalmente calar a boca. Minha cabeça parece rodar. Estou começando a ficar tonta.

— Liga logo esse carro, Violet. – É tudo o que ele diz.

Eu sabia que deveria ter calado a boca. Ficou simplesmente insustentável falar sobre qualquer coisa agora. Então, tudo o que eu faço, é tentar ligar o carro. E, depois de várias tentativas, ele finalmente liga. Sigo as ordenadas claras e precisas de Aaron sobre as marchas.

Consigo dirigir por mais ou menos duas horas sem grandes transtornos. Está ficando tarde, então Aaron pede que eu faça o retorno até o centro da cidade. Meus braços já não doem tanto e eu não me sinto mais tão rígida. Estou começando a gostar de dirigir e de fato parece que isso facilita as coisas e eu poderei ter a carteira de habilitação mais rapidamente por conta disso.

Não faz mais tanto calor. Aaron mudou as músicas de hip hop para um leve blues e eu consegui me conter para não fazer nenhum comentário a respeito disso. Me pego anotando trechos mentalmente de algumas músicas para quando chegar em casa ir pesquisar, pois não quero perguntar a ele e deixar tão explícito que gostei. São músicas lentas e muito diferentes das barulhentas que ouvimos durante o dia inteiro.

Olho rapidamente para Aaron. Ele está com a cabeça encostada no vidro e seus lábios fazem movimentos minúsculos. Ele está cantando tão baixinho que quase não consigo ouvir. Seus dedos estão em cima do seu joelho e se mexem ao ritmo da música. Ele parece tão absurdamente calmo.

Lembro-me de quando sentávamos juntos na varanda da sua casa. Consigo visualizar meu cabelo partido em duas tranças, Juliet com um aparelho dentário novo e ele com suas bermudas azuis. Estávamos sentados ensaiando para a apresentação que eles teriam de biologia e Juliet começou a passar mal quando falamos sobre o parto de alguns mamíferos. Aaron tantou acalmá-la com alguns vídeos, mas ela ficou ainda pior. Eu lembro que a sua expressão de indiferença me deixou tão inquieta, pois a calmaria dele vendo aquilo não parecia real.

Depois disso ficamos comentando sobre ele ser biólogo ou médico veterinário. Lembrar-se disso me faz inclusive questionar-me porque ele então teria seguido pela linha da literatura. Acho que nunca terei coragem de perguntar.

Estamos começando a chegar ao centro e eu fico um pouco nervosa porque o fluxo de carro está aumentando. Engulo em seco e entro na rua principal.

É então que algo me atinge. Minhas mãos soam. Reduzo bruscamente a velocidade.

— Aaron, não posso continuar.

Ele se endireita no banco.

— Está tudo bem, Violet. A partir daqui não tem tantos carros assim, dá pra continuar mais um pouco.

— Não é isso. – Falo tão baixo que quase não consigo me escutar. – Estamos chegando na ponte.

Quando viemos, eu ainda estava um pouco sonolenta. Ontem tivemos jogo, então estava tão esgotada que dormi assim que cheguei em casa. Não consegui prestar atenção na estrada, então nem sequer notei que havíamos passado pela ponte. A mesma ponte ao qual Juliet sofreu o seu acidente e morreu. A mesma ponte que parece perfeitamente estável, como se nunca um carro tivesse batido contra a mureta e um corpo tivesse sido arremessado diretamente para o rio.

Penso no corpo de Juliet. Flutuando. Seu vestido branco colado ao corpo. O anel de diamantes brilhando e brilhando e brilhando sob a água. Penso no sangue que jorrou de sua testa e manchou a água. Penso no susto dos barqueiros ao se depararem com ela.

A acidez ataca tão forte que sinto que minha boca irá derreter.

Sem dizer nada, desligo o carro e troco de lugar com Aaron. Meu coração está tão pesado que quase não consigo respirar. Quando ele começa a dirigir em direção a ponte, observo como ainda hoje tem uma rachadura onde houve a batida.

— É depois de manhã. Sexta.  – Falo, com os olhos concentrados na rachadura.

— Eu sei.

— Queria não saber que está logo aí.

— Eu também não, Violet.

Algo dentro de mim se quebra.

— Eu tenho que comparecer na psicopedagoga. E isso é um completo saco. Ela vai falar as mesmas coisas que fala todos os meses. Isso não me ajuda em nada. Só me deixa pior e pior e pior. – Começo a falar. Estamos quase no final da ponte. Lagrimas começam a surgir no canto dos meus olhos e eu tento não chorar. Tento tanto que quase consigo convencer meu corpo a não fazer isso. – As vezes as coisas estão tão... suportáveis. Não Ok, mas suportáveis. Tenho uma melhor amiga. Mamãe não faz tantos plantões. Meu pai não se mostra babaca o tempo todo. E... tem a lista, que me distrai. Não me faz esquecer, apenas oculta, sabe? E eu não aguento mais essa palhaçada de ter que aguentar isso todo mês e ainda ir conversar com a Minnerva.

Aaron fica em silêncio. Ele está tão pensativo que por um segundo acho que ele não ouviu nada do que eu disse, até que ele suspira.

— Você já disse isso a ela?

— Isso o que?

— Isso tudo o que você acabou de me dizer, Violet. – Ele parece não querer falar sobre isso. – Você já conversou com ela sobre isso tudo?

— Não. – Rosno. As lagrimas estão começando a descer teimosamente. – Eu não confio nela. Ela diz que entende, mas nunca perdeu alguém. E tenta ficar me lembrando de que estou viva, sendo que eu tenho plena noção de que estou viva. E é isso o que me mata.

— Você deveria conversar com um profissional sobre isso. Não que ela não seja. Mas um outro profissional que lhe ajude melhor. Um terapeuta, talvez.

— Como se você soubesse algo sobre isso. Que eu saiba você cursa Literatura, não Psicologia.

­– Não precisa cursar porra nenhuma pra saber algo óbvio como isso, Violet. – Ele fala tão alto que por um minuto eu me encolho. – Cresça.

A raiva me consome. Eu saio do estado de tristeza e frustação para a completa e absoluta raiva.

— E você, já cresceu? – Viro-me para ele. Seus punhos estão cerrados e ele olha vorazmente para os carros a nossa frente. – Faz terapia por acaso?

— Faço. Duas vezes ao mês. E vou a psiquiatra a cada três meses. Pessoas com ansiedade não podem se dar ao luxo de não ter acompanhamentos como esses, Violet. – Ele me encara. Eu não consigo ler suas expressões. 

Um silêncio reina sobre o carro. Me foco em não pensar em absolutamente nada do que ele me disse. Minha casa está mais próxima do que eu esperava. Já consigo sentir meus dedos formigando sobre a maçaneta do carro para saltar antes que Aaron ou eu digamos mais alguma coisa ao qual vamos nos arrepender depois.

Mas ele é mais rápido do que eu esperava. Ele trava o carro assim que paramos em frente a casa da árvore.

— Tem uma coisa que eu preciso te contar. Sobre o motivo de seu pai não querer que você ande comigo.

Eu fico quieta.

— É porque você usava drogas. – Respondo. – Mas isso não importa, Juliet também usava.

— Não é só isso. – Sua voz treme. – O que acontece é que quando eu entrei na Novask, eu estava muito... confuso. Eu tinha perdido o meu pai. Nós havíamos nos mudado. Foram muitas coisas para uma só pessoa processar. – Ele confessa. Nunca, em um milhão de anos, eu poderia imaginar que o dia de hoje iria terminar assim. – E eu comecei a ter crises de ansiedade. Crises de pânico com muita frequência. – Ele coça as mãos, nervoso. – Juliet tentou me ajudar, mas não foi o suficiente. Nunca era o suficiente. E aí ela... andávamos com uma galera que usava essas coisas. Isso nunca foi grande coisa, sabe. Mas comecei a usar. Me calmava. Então comecei a usar coisas mais pesadas. E eu... eu fui levando a Juliet junto e...isso durou até a faculdade, mas as coisas foram se complicando e...

Eu espero que ele continue. Um vinco enorme surgiu no meio da minha testa e agora começou a doer e incomodar. Minha mãe aparece na minha visão periférica, ela se aproxima a passos lentos em direção ao carro. As informações estão um tanto quando confusas na minha mente ainda. Não me surpreende que Aaron contribuído para Juliet começar a usar drogas, mas ainda me surpreende Juliet cair nisso. Ela sempre pareceu tão absurdamente no controle de sua própria vida.

Tento me lembrar desse período. Foi assim que ela saiu de casa. Lembro-me do que mamãe disse, de que havia sido o melhor para ela morar com nosso pai. Será que era isso? Será que Juliet não queria que eu entrasse nessa junto com ela?

— Sim.

Me assusto. Não havia percebido que fiz essas perguntas em voz altas, que elas escapuliram do meu consciente. Minha mãe bate na janela e Aaron destrava o carro. Eu saio sem olhar direito para ele, sem saber ao certo como me despedir diante disso.

Então, afinal de contas, Juliet queria apenas me proteger. Não é como se eu não conseguisse acompanhar o seu ritmo, afinal de contas, mas sim que ela não queria isso para mim. Uma enxurrada de emoções me invade e eu abraço minha mãe de lado enquanto subimos as escadas e entramos em casa.

Mamãe tem cheiro de hospital. Aquela mistura de desinfetante neutro, sangue e ocre. Ela alisa meus cabelos enquanto conversa comigo. Enquanto me explica que pagaram caro no tratamento de Juliet, que a mãe de Aaron quase hipotecou a sua casa para pagar o tratamento dele também. Sua voz suave entra pelos meus ouvidos contando-me porque Juliet tinha que ir com tanta frequência para a natação, porque não poderíamos nos ver. E que ela não conseguiria cuidar de nós duas, ainda mais com Juliet nesse estado crítico. Ela me pede desculpas. Ela diz que me ama. Ela diz que se preocupa comigo. Ela repete várias vezes que falhou com Juliet, mas que não falhará comigo. 

Eu fecho os olhos. Sua voz parece apenas um ruído distante para mim agora. Eu respiro profundamente. Em um momento estou com a cabeça em seu colo e no outro estou submersa. Submersa em uma água escura na qual eu não consigo ver nada ao meu redor. Quando alcanço a superfície, percebo que a escuridão não é nada além do que o meu próprio sangue, que jorra da minha testa. Eu estou boiando nele. Com um vestido branco. Um anel de diamante no meu dedo. Diante de tanta morbidade, só consigo olhar para o céu azul, brilhante, brilhante, brilhante... Até que o sangue começa a me afundar novamente. Ele entra na minha boca. Ele encobre meus olhos e abafa meus ouvidos. Eu não consigo mais me mexer.  Eu não consigo mais respirar. E eu grito.

Acordo. Estou suada, deitada no sofá. Um cobertor foi colocado sobre mim. Percebo que meu rosto inteiro está molhado.

Não durmo mais.

......

Sala de estar. Grey’s Anathomy na TV. Cheiro de bolo queimado.

Minha mãe e eu tentamos ao máximo possível fazer com que esse não fosse um dia complicado, mas é impossível manter-se tão imparcial.

Hoje é mais um dia de morteversário de Juliet. As pessoas ainda fazem declarações profundas no seu perfil do facebook e marcações no instagram. Logicamente não tanto quanto antes, mas ainda fazem.

Ontem fui na Minerva, minha pscicopedagoga. Contei a ela sobre minhas desconfianças em relação a ela. Por conta disso, ela achou melhor que conversássemos fora do ambiente escolar e das quatro paredes. Perguntei à ela se isso não era contra as regras, já que doutor e paciente não podem ter vínculos.

— Vamos apenas conversar, Vivi.

Ela me levou para o jardim botânico da cidade após a aula. Conversamos sobre futilidades: como o verão estava intenso esse ano, o fracasso do ultimo filme de Star Wars, o novo centro de compras que iria abrir na zona leste e até mesmo sobre sabores de sorvete. Consegui, aos poucos, diminuir um pouco da minha defensiva. Minha armadura havia aberto um pouco.

Na volta para casa, fiquei com uma sensação estranha de que poderia contar pra ela coisas sobre mim. As palavras estavam dançando pela minha língua, por mais que eu reprimisse, elas desejavam sair. Foi então que eu disse:

— Às vezes sinto que estou morta. Sinto que não é justo que eu esteja aqui e Juliet não. Não faz sentido, nada disso faz sentido... Eu acordo de manhã e tento ocupar minha mente com alguma coisa que não seja me lembrar dela e não me revoltar com o que aconteceu. Eu me sinto tão... perdida... sozinha.

Fez-se um silencio no carro. Minerva parecia estar escolhendo as palavras exatas para prosseguir.

— Isso tudo que você sente é normal, faz parte do processo de luto. – Ela declarou. Mordi minha bochecha, inquieta. –São os estágios... você ainda encontra-se entre a raiva e a depressão.

Eu fiquei calada por um tempo.  Tentei-me lembrar qual eram os estágios do luto. Até que dei-me conta.

— Não quero aceitar.

­ – Mas você precisa.

— Não. Quero. Aceitar. – Minha voz soou grossa e abrupta. Senti meus dedos temerem um pouco. – E já chega, não vamos mais falar sobre isso.

Milagrosamente Minerva respeitou meu posicionamento. Quando cheguei em casa mamãe estava tentando inutilmente preparar um bolo. Propus que víssemos Grey’s Anatomy.

E aqui estamos nós.

Nós tentamos não falar sobre nada que possa despertar os gatilhos. Comemos as bordas do bolo queimado, mesmo isso significando que teremos dores de barriga. Os episódios exibidos na tela vão passando em um borrão e percebo que nem eu nem minha mãe estamos de fato assistindo.

Tem uma foto nossa ao lado da TV. Mamãe, Juliet e eu. É uma das poucas fotos que temos em trio, enquanto as demais são com o papai. Quando eles se separaram eu lembro que mamãe saiu cortando o meu pai de um monte delas, até que chegou um momento em que ela apenas dobrava a foto para que ele não aparecesse. Eu achava o auge.

Pego a foto e aproximo do meu rosto. Fico observando alguns detalhes e nem percebo quando o rosto de mamãe se aproxima.

— Eu gosto muito dessa foto. – Seus dedos circulam sobre o rosto de Juliet. Ela fica calada por um tempo, então move seus dedos até mim e acaricia o meu. – Eu queria te pedir uma coisa, Vivi. – Olho para ela atentamente. Ela parece ponderar se continua ou não. É então que ela respira fundo e sussurra. – Não fique tão distante. Eu sei que não tenho muita moral para pedir algo assim, pois fiquei mais tempo no hospital do que em casa nos últimos meses... Mas agora entendo que não posso mais ficar me escondendo e escondendo o que eu sinto. Juliet morreu. Isso foi há mais de seis meses. Ela não voltará mais. Não há nada que possamos fazer. Ela não está aqui, nunca mais estará. – Um caroço começa a surgir na minha garganta e as lagrimas descem por meus olhos. Minha mãe também não contém as suas. – E não podemos fingir que nada aconteceu. Deveríamos falar mais sobre isso. E não há nada de errado nisso, Vivi. Juliet gostaria que continuássemos vivendo ao máximo, não definhando. – Eu fecho meus olhos, está difícil respirar. – Não seja tão dura com seu pai por ele tentar amenizar as coisas. Está sendo difícil pra ele.

Eu definitivamente me irrito e não consigo me conter.

— O papai sempre tentou amenizar as coisas. Sempre. Como você não se irrita com isso?

Ela enxuga as lagrimas que descem pelo seu rosto. Seu nariz ficou vermelho e suas mãos tremem um pouco. Agora que minha visão voltou ao normal percebo como minha mãe parece estar com uma aparência melhor do que algumas semanas atrás. Mas ainda há um vinco em suas sobrancelhas, como se estivesse confusa. Uma pergunta estampada na testa. Uma marca de expressão que tem se intensificado cada vez mais.

— As pessoas costumam falar que amar significa renunciar. E isso não se aplica somente à relacionamento amorosos. Mães também precisam renunciar algumas coisas por seus filhos, Vivi. Não é fácil.

— Mãe, ele traiu você.

Ela solta o ar com força e se afasta um pouco de mim. É então que me dou conta do que acabei de falar e no que isso significa. Abro e fecho a boca repetidas vezes, meus braços se mexem involuntariamente e eu abraço minha barriga, pois sinto como se tivesse um bloco de chumbo sobre ela.

O que você disse? — Ela pisca os olhos com força. – Como... como... quem te disse isso?

Não consigo abrir minha boca. Parece que despejaram cola sobre meus lábios.

— Foi seu pai? Foi a Natalie? – O vinco em sua testa fica ainda mais profundo.  A próxima pergunta sai tão baixa que quase não consigo ouvir. – Foi... Kiersten?

Eu definitivamente estou ficando zonza agora.

— Me responda, Violet.

A menção do meu nome me desperta. Minha mãe nunca me chama pelo meu nome.

— Eu nunca precisei que ninguém me contasse, mãe. Estava lá, estampado. E aquela vadia continua vindo na nossa casa depois de tudo isso.

— Que vadia?

— Kiersten, mãe. Papai traiu a senhora com Kiersten.

Ela arregala levemente os olhos. Suas mãos abrem e fecham lentamente.

— Ah. – Isso é tudo que ela disso. – Ah, Violet. Sinto muito.

Sente muito?

— Tentamos poupá-las disso. Sua irmã também sabia?

— O que a senhora quer me dizer com “tentamos poupá-las?” – Estou confusa. Alguma coisa não se encaixa. – A senhora... a senhora sabia?

— Sim.

Levo minhas mãos até meu rosto e massageio, pois sinto que está congelado, estático. Tento raciocinar, mas não consigo. Não faz sentido.

— Esse tempo todo a senhora sabia? – A incredulidade tomou conta de mim agora. – E continuou amiga de Kiersten?

Minha mãe fica calada por um tempo. Um longo tempo que parecem horas. Ela então se levanta do sofá e começa a dar algumas voltas sobre o tapete. Está definitivamente perdida. Por fim, ela suspira, desliga a TV e fica a alguns passos de mim.

— É tudo muito mais complicado do que aparenta. Como eu disse, mães as vezes precisam renunciar algumas coisas por seus filhos. – Ela deve notar que minha reação não está sendo como ela esperava. – Podemos falar sobre isso outro dia? Estou ficando enjoada. Preciso me retirar.

E assim ela se vai. Ela sobe as escadas e me deixa na sala olhando para a tela preta da TV, completamente perdida. Eu fico aqui sentada por tanto tempo que não percebo quando alguém bate na porta. Parece um som tão distante, como se eu tivesse debaixo d’agua. Mas ele vai aumentando, aumentando, aumentando até que eu me dou conta de que preciso atender.

É uma luta finalmente levantar do sofá e quando o faço sinto como se estivesse no modo automático. Minha cabeça está tão confusa que não consigo raciocinar. Números escapolem baixinho pelos meus lábios, nem havia me dado conta de que estava contando até agora.

Ao abrir, tem um carteiro. Eu estranho, pois normalmente eles deixam a correspondência e saem. Mas esse em potencial está lá, parado, como se esperando por mim.

— Boa tarde senhorita. Tenho uma correspondência para Juliet Singer.

— Boa tarde. Desculpa, mas ela morreu.

A frase sai tão espontaneamente que eu até me assunto ao escuta-la. Eu nunca havia falado assim tão na lata sobre o falecimento de Juliet.

O carteiro está definitivamente constrangido.

— Eu sinto muito. – E ele parece sentir mesmo. Fica um tempo me encarando e então entrega um envelope para mim. – Eu não sei se temos protocolo pra casos como esse, mas acredito que por você ser da família, você pode receber a correspondência.

— Mas de onde vem?

Ele olha para sua prancheta.

— Munique, Alemanha. O remetente está sob o nome de Departamento de Estadia da Universidade Luís Maximiliano de Munique. – Ele ergue uma caneta. – Por se tratar de algo financeiro é necessário que você assine a confirmação de recebimento.

Eu assino, mesmo com mil perguntas na cabeça ao qual eu sei que ele não saberá como responder. 

Mal entro em casa e já estou engolindo todas as palavras nos inúmeros papeis.

Estadia

Caso fúnebre

Condolências

Estorno financeiro

Universidade de Munique

Aparentemente,  Juliet tinha um apartamento que era sediado pelo Universidade de Munique, no qual ela pagou a estadia por dois anos. A universidade foi notificada do seu falecimento e agora quer estornar o dinheiro pago.

Eu não sei o que mais me choca diante de tudo isso.

— Feliz mortiversário de 7 meses, Juliet. – Solto um riso irônico e entorpecido.


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Notas finais do capítulo

E aiiinnn? gente 3 informações diferentes de uma só vez né, um pouco demais, confesso, mas ajudará na explanação dos próximos capitulos



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