Você é meu mundo escrita por Blue Butterfly


Capítulo 13
Um mundo feito de lembranças


Notas iniciais do capítulo

Porque eu não podia resistir a Loveless



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—Um último mundo?

—Sim. Não é animador? E eu já escolhi um super legal.

—Não devia me deixar escolher? E porque tem que ser o último?

—Porque você já aprendeu o que tinha que aprender, considere esse último mundo um presente, Watanuki.

—Quanto isso vai me custar?

—Dessa vez, nada. É realmente um presente.

—Sei…

—Não faça essa cara, quando eu já menti para você?

—Bem, tirando aquela vez…

—Detalhes, detalhes, quem liga para detalhes? Vamos em frente!

—Você está bêbada? E por que eu não posso escolher o mundo com a cor vermelha? Toda vez que tento tocá-lo você me impede.

—Certas coisas não devem ser vistas, Wa-ta-nu-ki.

—O que há de tão especial com esse mundo?

—…

—O que eu vou ter que pagar por essa informação?

—Você não pode pagar por ela.

—Quem pode?

—…

—Yukko…

—É o mundo onde Hitsuzen não existe. É o mais confuso, caótico e incerto mundo de todos. Indo até lá não vai te ensinar coisa alguma. Não agora. Talvez nunca.

—Um mundo sem Hitsuzen?

—Sim. Agora chega de enrolação e vamos em frente. Quero ver aquelas orelhinhas lindas em breve. Uhull, animação!

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Kurogane coçou a orelha negra, seu rabo balançando de um lado para o outro enquanto ele lia seu mangá predileto. Era domingo de tarde e a academia estava praticamente vazia naquele momento, a maior parte dos alunos tinha ido passar os feriados em casa e somente aqueles que moravam muito longe ou não tinham família, como no caso dele, é que ficavam lá. Sentado aos seus pés, desenhando tranquilamente estava seu sacrifício, um jovem alto e magro com cabelos dourados e orelhas delicadas, seu rabo estava enrolado na perna de Kurogane graciosamente, formando um quadro bonito.

De onde estava Kurogane podia ver o pescoço marfim e o começo do nome que ambos compartilhavam, com certo orgulho, o lutador tocou sua própria cicatriz antes de voltar sua atenção para o mangá. Era um dia bom, nem quente demais nem frio ao ponto deles precisarem acender a lareira, mesmo Fay que era extremamente sensível às mudanças de temperatura parecia confortável cantarolando baixinho.

—Seus cabelos estão compridos – Kurogane quebrou o silêncio, estendendo a mão para acariciar ao redor da orelha dourada tomando cuidado para não agredi-la.

Fay ronronou alegremente, sua cauda tremendo de prazer e envolvendo mais firmemente a perna do moreno.

—Eu gosto – Kurogane continuou com tranquilidade – Mas você deve prende-los nos duelos. Ainda tem as fitas que lhe trouxe do Japão?

—Uhum – Fay respondeu no que mais parecia um miado.

—Use-as.

O loiro murmurou uma resposta, os olhos fechados e o corpo totalmente relaxado com o toque. Com naturalidade Kurogane beijou o topo da cabeça de seu sacrifício, seus lábios perdurando por um tempo infinito antes de voltar para seu livro. No chão, Fay continuou seu desenho tomando cuidado ao desenhar poderosos olhos vermelhos. Estavam em completa paz quando a porta do imenso salão foi aberta com violência e quatro pessoas entraram correndo, o medo e a raiva fluindo de seus corpos.

Eram mais duas duplas, os mais jovens, Sakura e Shoran, estavam na academia em menos de dois anos e já se destacavam, a segunda dupla regulava a idade com Fay e Kurogane, mas Touya e Yukito estavam a mais tempos juntos do que qualquer um dali.

—Hey – Kurogane grunhiu irritado com a intromissão.

—Ashura está no pátio – Touya devolveu sem fôlego – Ele veio buscar sacrifícios.

—O quê? – Kurogane berrou ficando de pé, seu mangá caindo no chão.

Para cada combatente havia um único sacrifício. Durante um duelo, o combatente atacava a dupla inimiga enquanto seu sacrifício ficava logo atrás, era o sacrifício quem recebia os danos do ataque inimigo através de restrições. Quando um sacrifício tinha tantas restrições que mal podia respirar, muito menos se mexer, o duelo terminava. Era normal que o combatente conhecesse seu sacrifício por volta dos dez anos, podia demorar um pouco mais, mas até aos quinze anos as duplas sempre estavam formadas. Casos raros como o de Yukito e Touya que se encontraram aos cinco anos e desde então jamais se largaram, surgiam de vez em quando. Nem todos eram sacrifícios e combatentes, a maioria das pessoas se quer imaginava que duelos existissem e que havia academias exclusivas para preparar as duplas.

Mas era através dos duelos que as grandes decisões eram feitas, o verdadeiro poder que dominava a economia e as guerras era fortemente influenciado por aquelas batalhas, era um mundo invisível que influenciava completamente o mundo visível. As regras eram simples assim como as punições. Uma dupla sempre tinha o mesmo nome, uma dupla era sempre formada com um combatente e um sacrifício, jamais o sacrifício faria um ataque direto e o combatente devia obediência absoluta a seu sacrifício. Se uma dessas regras fosse quebrada, a dupla era desfeita e nunca mais poderia participar de um duelo. O mesmo acontecia se um dos dois morresse. Não que o que sobrevivesse se importava em voltar a lutar. A ligação das duplas era algo forte e poderoso, ninguém se arriscava a por limites até onde ela poderia chegar, ao compartilhar o mesmo nome no campo de batalha, a dupla criava uma espécie de ponte que ligava seus pensamento e sentimentos. Medos, segredos, desejos, tudo ficava exposto entre eles, suas almas eram expostas e mesmo que no começo fosse assustador, ficava óbvio o quanto suas almas se correspondiam e cabiam perfeitamente uma na outra.

Ashura representava a quebra de todas as regras. O cientista chefiava uma grande pesquisa destinada a criar duplas para os duelos, algo que era impensável até pouco menos de um ano atrás quando surgiu a primeira leva de Zeros.

Sem sensação álgica, os Zeros podiam ser expostos a quantidades de dores infinitas sem sentir coisa alguma, calor, frio, molhado, seco, eles não possuíam tais percepções. Os sacrifícios eram perfeitos, eles jamais enfraqueciam ante um ataque e podiam sofrer mais do que o limite normal de restrições antes que fosse decretada sua derrota, e por isso os combatentes eram fortes, eles atacavam sem pensar duas vezes, confiando que nada que o outro lado devolvesse machucaria seu sacrifício.

A chegada dos Zeros causou uma agitação sem precedentes, todos queriam saber exatamente de onde eles vinham e como era possível que existissem. Até que no mês passado a verdade foi revelada: os Zeros eram nada mais do que sacrifícios sequestrados de seus combatentes que foram expostos a uma brutalidade sem precedentes até que perdem completamente a razão. Seu nome original era arrancado de seus corpos e eles recebiam um símbolo no lugar, mostrando que já não eram mais pessoas e sim coisas, objetos que podiam ser vendidos para quem estivesse disposto a pagar.

—Temos que tirar os sacrifícios daqui – Touya gritou furioso.

Kurogane não perdeu tempo concordando, com brutalidade ele ajudou Fay a ficar de pé, agarrando a mão magra e suave e o arrastando para fora enquanto Shoran e Sakura lideravam o grupo. Com os feriados parte da guarda que protegia a academia tinha sido demitida. Se fosse um ataque comum as duplas que ficaram se apresentariam e lutariam sem hesitar, porém era um cientista louco lá fora querendo roubar seus preciosos sacrifícios, nenhum combatente que fosse digno de receber aquela função arriscaria uma luta daquelas sem tentar fugir primeiro. Não era uma questão de manter o orgulho e a honra, era uma questão de proteger quem lhes era importante acima de todas as coisas.

Eles correram sem parar pelo que pareceu ser horas até parar num lugar aparentemente seguro, Kurogane respirou com dificuldade não largando a mão do garoto loiro por nada, os outros quatro também estavam exaustos.

—Onde estamos? – Yukito pediu olhando ao redor e não encontrando nada de familiar na paisagem.

—Longe – Shoran arquejou se apoiando em uma árvore velha – Essa floresta fica longe da escola e é de difícil acesso, se prosseguirmos em direção ao norte há um conjunto de cavernas onde podemos passar a noite.

—Você acha que mais alguém conseguiu fugir? – Touya pediu para Kurogane secando o suor de sua testa.

—Não sei, talvez Seichirou e Subaru, inferno, se alguém encostar em Subaru, Seichirou vai enlouquecer – e então olhando para seu sacrifício – Fay, você está bem?

O loiro estava mais pálido que o comum e ainda não tinha conseguido acalmar sua respiração, Kurogane praguejou baixinho e começou a esfregar as costas do rapaz, a última coisa que eles precisavam era um ataque de asma.

—Aqui – Sakura chamou jogando uma bombinha em direção ao loiro – Achei que ia precisar.

—Obrigado – Kurogane agradeceu fazendo o loiro sentar até que sua respiração voltasse ao normal – Quão longe das cavernas nós estamos?

—Duas horas, no máximo três se corrermos bastante – Shoran chutou olhando incerto para sua combatente.

Sakura lhe deu um sorriso suave, estendendo a mão para o rapaz que a aceitou com avidez.

—Vão em frente, alcançamos vocês em seguida – Kurogane mandou massageando os ombros tensos do loiro.

—Nem pensar. Não vamos deixar vocês dois para trás – Touya discordou com raiva.

Sakura estava prestes a se manifestar quando Kurogane declarou numa voz sem emoção:

—Se ficarem, só vão colocar seus sacrifícios em risco. Em seis somos um grupo grande e fácil de rastrear, vocês devem ir. Não temos condição de continuar correndo, vamos descansar um pouco e logo alcançamos vocês.

—Kurogane… – Touya tentou.

—Você realmente quer arriscar seu sacrifício?

Um silêncio incômodo caiu sobre eles. A verdade é que por mais que fosse adorável, Fay era fraco, além da asma sua saúde era delicada e sempre após uma batalha, ainda mais aquelas particularmente difíceis, ele precisava ficar acamado por alguns dias. Não era o melhor tipo de sacrifício, entretanto Kurogane jamais tinha reclamado de sua sorte, aos seus olhos, seu sacrifício era a coisa mais incrível que o Universo criara e se ele tinha que ficar para trás até que Fay melhorasse, ele ficaria.

Touya se calou, derrotado, com um breve aperto no ombro de Kurogane ele tomou a mão de Yukito, deixando que os mais jovens os guiassem para longe dali e confiando que Kurogane cumprira sua promessa.

—Kuro-chi, acha que estamos seguros? – Fay pediu com medo.

—Não sei. O bastardo resolveu atacar a academia, não sei que merda estava na mente dele para fazer uma besteira dessas, quando Yukko souber ela vai querer o fígado desse cara numa bandeja de prata. Mas até ela agir, é melhor ficarmos atentos, está bem?

—Sim.

Kurogane sentou ao lado do loiro, deixando que ele repousasse sua cabeça no ombro do moreno, sua respiração ainda vinha e arquejos, mas a mera proximidade entre eles já tinha acalmado o loiro, se a cauda dourada balançando fracamente fosse indicativa de alguma coisa.

—Kuro-chi, fale comigo – Fay pediu tremendo.

—Tudo bem.

Quando estava muito nervoso o som da voz do combatente era tudo o que seu precioso sacrifício precisava.

—Você lembra quando nos encontramos pela primeira vez? Você…

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—Você pode me ajudar, por favor?

O moreno quase berrou assustado, sem saber de onde o loiro tinha surgido, ele estava tranquilamente recolhendo alguns mangás para ler quando do nada aquela figura pálida tinha brotado ao seu lado. O menino era pequeno e magro, seu cabelo caía em seus olhos e quase escondia o azul brilhante do resto do mundo. Ele parecia tão frágil e adorável que instantaneamente Kurogane se viu atraído pelo desconhecido.

—O que você precisa? – ele pediu com mais educação do que normalmente demonstrava para o resto do mundo.

—Eu quero aquele livro – e estendeu a mão tentando alcança-lo, mas ele mal chegava perto.

Daquele angulo, seu pescoço de marfim ficou à mostra e Kurogane recuou, seu coração batendo loucamente em seu peito. O garoto o encarou com surpresa, confuso com a reação exagerada, ele só pedira um favor, o que custava o outro ajuda-lo? O moreno era muito mais alto e…

—Sua cicatriz!

Fay congelou, ele não acreditava que tinha cometido um erro tão bobo. Ele nunca deveria sair de casa sem um cachecol ou um lenço, aquela marca jamais deveria ficar a mostra, se seus pais soubessem…

—Você é meu – Kurogane quase gritou mal escondendo sua animação.

Dessa vez quem recuou foi o loiro, assustado com aquela declaração. Era típico de Fay ter a sorte de que na primeira vez que ele decide pedir ajuda, era para um completo louco. Todavia, antes que ele pudesse fugir dali o moreno a sua frente começou a puxar o cachecol grosso que recobria seu pescoço, deixando a mostra uma cicatriz idêntica na pele morena.

CHI.

—Eu sou seu – Fay deixou escapar assombrado e maravilhado.

O garoto moreno sorriu largamente revelando uma fileira de dentes brancos bem cuidados. Fay sorriu de volta antes de se jogar em direção ao outro que já tinha os braços abertos para receber aquele que mais tarde se revelaria seu sacrifício.

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—Eu nunca pensei que te acharia dessa forma. E foi tão estranho, num momento você era um completo desconhecido, no outro eu simplesmente sabia o que você ia fazer antes mesmo que você agisse. Foi um dos dias mais felizes da minha vida.

Os tremores em Fay diminuíram e ele segurou a mão de Kurogane com mais força.

—O dia em que definiram nossas posições também foi interessante. Eu lembro que…

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Eles tinham dez anos e meio e já tinham encontrado sua dupla. Do lado de fora da temível sala, um garoto moreno com olhos vermelhos andava de um lado para o outro, a agitação o impedindo de ficar sentado e esperar como a maior parte das crianças estava fazendo. Olhos azuis o acompanhavam com diversão, um pequeno sorriso brincando numa face pálida enquanto o garoto loiro estava comportadamente sentado desenhando.

—CHI – a secretária chamou olhando para a dezena de crianças amontoadas no hall.

Kurogane pulou, correndo para tomar a mão de Fay e puxá-lo para a sala misteriosa, sua pressa era tão divertida que o garotinho loiro acabou rindo, o som de sua risada sendo uma música doce capaz de aquecer o coração de qualquer um, quanto mais de seu companheiro.

—Há uma lista de perguntas com duas respostas – a secretária começou a explicar – Vocês devem assinalar qual delas vocês acreditam combinar mais com vocês. Depois cada uma vai conversar com alguns adultos, está bem? Sejam sinceros, o que disserem vai ajudar a descobrir quem vocês realmente são. Esperem aqui e logo será sua vez.

Os dois garotos concordaram, a expressão séria quase fez a mulher rir, aquele era um dos momentos mais importantes na vida de uma dupla e as crianças reagiam das formas mais variadas, alguns mal conseguiam respirar, outros pareciam prestes a vomitar, e, o melhor de todos, alguns levavam aquilo com tanta seriedade que era impossível não olhar seus rostos e querer sorrir.

—Vai ficar tudo bem, tenho certeza que eles não vão demorar para saber quem somos – Kurogane garantiu apertando a mão de Fay.

O loiro poderia dizer que entre os dois não era ele quem precisava ser acalmado, porém era divertido ver o outro garoto nervoso daquele jeito e ele decidiu ficar quieto.

—Hey, você são CHI? Quem recebe um nome tão sem graça?

A dupla congelou antes de se virar em direção a voz, um garoto um pouco maior que eles encarava os dois com repugnância, como se o nome que compartilhavam fosse um insulto a sua pessoa.

—E qual é o seu nome? – Kurogane exigiu com raiva, ninguém tinha o direito de desprezar o nome que ligava ele e Fay.

—Stronger – o garoto respondeu com evidente orgulho – O nome de você é tão patético que me dá até pena. Não mais pena do que esse seu amigo loiro. Não tinha uma dupla melhor para você não?

Raiva pura e absoluta correu nas veias de Kurogane, aquele garoto não podia simplesmente chegar e dizer aquelas coisas.

—Cale a boca – o moreno mandou prestes a perder o controle.

—Ou o que? Vai correr para a mamãe e chorar?

Todo o descontrole desapareceu de Kurogane, sua expressão relaxando e um sorriso estranho tomando sua face. Fay estremeceu, mesmo que parecesse o contrário, aqueles poucos meses em que passara ao lado do outro garoto era o suficiente para ele saber que o moreno não estava mais calmo, pelo contrário, o que o idiota Stronger tinha dito cruzara completamente a linha do que Kurogane podia perdoar.

—Fay. Dê a ordem – Kurogane pediu, a voz saindo tranquila e fria.

Naquele momento ele não precisava de teste algum, muito menos conversar com alguns adultos estúpidos que tentariam força-lo a se encaixar em um padrão. Ele sabia o que ele era. Era um combatente e tudo o que ele precisava era de uma ordem.

—Faça ele calar a boca – Fay murmurou se colocando atrás do moreno e assumindo o lugar de sacrifício sem hesitar.

Quando o garoto foi lançado na parede oposta, os adultos apareceram e o caos se implantou. A única coisa boa daquele dia é que no final eles não precisaram fazer teste algum para descobrir quem eles eram.

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—Foi divertido brigar com aquele idiota – Kurogane riu, uma mão acariciando as orelhas douradas com carinho e leveza – De certa forma, foi o nosso primeiro duelo, mesmo que oficialmente nós só lutamos pela primeira vez um ano mais tarde. Eu ainda mal posso acreditar que o Touya perdeu, quer dizer, ele é um monstro quando está lutando, se você não tivesse me dado aquela dica acho que teríamos perdido…

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Um filete de sangue escorreu pelos pulsos de Fay, as restrições machucavam mais do que ele tinha sido preparado para. Kurogane estava nervoso, ninguém esperava que o duelo deles fosse chegar naquele nível, os quatro garotos tinham se dado bem desde o primeiro dia na academia e os professores não esperavam que Touya fosse tão implacável, o primeiro duelo nem sempre chegava ao fim, era mais para que os alunos experimentassem a sensação de duelar e exercer suas funções do que ganhar. Só que Touya não compartilhava aquele pensamento, seu sacrifício não tinha nenhuma restrição e ele faria o que fosse preciso para que continuasse assim, fazia quase sete anos que eles estavam juntos, sua ligação era mais profunda do que a das outras duplas, o que significava que ver seu sacrifício sofrendo pesava muito mais para Touya do que para os outros combatentes.

—Que as trevas caiam sobre você e os fantasmas atormente sua alma – Touya anunciou lançando seu feitiço.

Tudo ficou escuro e Kurogane ouviu Fay gemer em suas costas. O combatente praguejou baixinho, irado com tudo aquilo, se ele não desse um jeito de aplacar aqueles ataques Fay sofreria cada vez mais.

—Kuro-chi – Fay gaguejou respirando com dificuldade – Não combata as trevas com a luz… Aceite a escuridão… Deixe-os cegos…

Não parecia uma boa ideia, mas a verdade é que desde o inicio tudo o que ele vinha fazendo era tentar contra-atacar o que Touya mandava na sua direção e eles estavam indo de mal a pior. Se seu sacrifício estava mandando, ele obedeceria e torceria para dar certo.

—Eu aceito as trevas e ordeno que elas fiquem ainda mais forte, até sua visão ser totalmente anulada.

Agora eles mal podiam enxergar um palmo a frente do nariz e…

—Touya!

O grito de Yukito chamou a atenção deles, ele parecia absolutamente horrorizado, como se um monstro estivesse atrás dele caçando sua alma, o garoto continuou berrando cada vez mais e toda a concentração que Touya estava mostrando caiu por terra. Depois disso bastou alguns ataques bem direcionados e as restrições que estavam em Fay sumiram, indo para Yukito e restringindo-o por completo.

O duelo deveria ter mudado um pouco o relacionamento dos quatro, ele fora intenso demais, com dois combatentes agindo sem se importar com o sacrifício da outra dupla, entretanto assim que terminou o duelo Fay tinha corrido para Yukito tentando se certificar que o garoto estava bem e aquilo dissolveu qualquer rancor que poderia ficar. Se seus sacrifícios estavam bem, os combatentes também estavam.

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—Eu ainda não entendi como aquele ataque funcionou tão bem – Kurogane comentou trazendo Fay para que ele se sentasse entre suas pernas e empurrando sua cabeça em direção os seu peito.

—Yukito tem medo do escuro – Fay revelou rindo baixinho – Ele sempre dorme com uma luz acesa.

—E você sabe disso porque…?

—Ele é meu amigo, Kuro-chi. Além disso, ele adora decorar o quarto com lanternas japonesas e muitas vezes pede minha opinião sobre qual lanterna fica melhor.

—Hum. Falando nisso, lembra a primeira vez que te levei para o Japão? Nós…

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Fay cantarolava feliz, agarrado ao braço de Kurogane com todas as suas forças enquanto o moreno os guiava pelas ruas movimentadas de Tóquio, vez ou outra apontando para alguma loja. A cauda do moreno agitava de um lado para o outro, fazia alguns anos desde que ele pisara em solo japonês, voltar para aquela terra lhe dava uma sensação ótima de estar em casa que ele só tinha experimentado longe dali quando Fay aparecera em sua vida, já a cauda do loiro estava firmemente presa ao redor do braço do moreno, um hábito que logo no início se instaurara entre eles e que Kurogane adorava. Com o tempo eles tinham se acostumado tanto com aquilo que podiam andar por entre uma multidão sem se quer tropeçar ou hesitar, ter sua cauda enrolada em alguma parte do corpo do moreno sempre dava a Fay a sensação de segurança e cuidado que o faziam tão feliz.

Eles tinham dezesseis anos, nessa idade nem todos mantinham suas orelhas ainda, Touya e Yukito, por exemplo, tinham se livrado delas no ano anterior, Fay e Kurogane nunca tinham conversado sobre isso, eles não precisavam, as coisas aconteceriam quando elas tinham que acontecer, Kurogane não ligava muito para suas orelhas, elas eram tão especiais para ele quanto seu cotovelo, além do que nem sempre ter um rabo mostrando o quanto ele estava feliz e empolgado era agradável, já Fay… Kurogane era viciado naquelas orelhas douradas, ele adorava acariciá-las, eram tão suaves e Fay era tão sensível naquela região, tanto que a primeira vez que ele as beijara o garoto se desfez em seus braços, completamente entregue e submisso. A cauda de Fay também era incrível, seu pelo sedoso e brilhante era ótimo de se tocar e ter ao redor de seu corpo, era uma parte muito preciosa de Fay que os dois estavam mantendo com carinho. Um dia Kurogane tomaria as orelhas do loiro, mas até lá eles aproveitariam ao máximo.

—Hey.

Fay sorriu para o moreno, seus olhos azuis brilhando.

—Watashi wa, anata o aishiteimasu.

O loiro enrugou a testa, inclinando a cabeça para o lado, uma pergunta silenciosa brilhando nas duas poças azuis.

—Eu te amo – Kurogane traduziu afagando as orelhas com carinho e devoção.

—Je t'aime trop – Fay respondeu sorrindo brilhantemente – Eu amo você também – traduziu antes que o outro pedisse.

Era Tóquio, a noite estava linda e eles estavam voltando para o hotel onde um banho quente e uma lareira os esperava. Naquele momento, nada podia ser tão perfeito.

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—Nós temos que voltar lá em breve – Kurogane anunciou abraçando o loiro mais apertado, a respiração de Fay já estava normalizada e ele quase adormecera naqueles braços, a voz do combatente sendo sua única ligação com o mundo exterior.

—Eu quero te levar para a França, Kuro-chi – Fay revelou num tom suave – E te apresentar o lugar onde nasci.

—Nós podemos ir. Talvez nas próximas férias. Faz tempo que não viajamos só os dois.

O moreno estava prestes a sugerir que eles voltassem a andar quando o som de galhos quebrando os calou. Alguém se aproximava, pelo som que faziam era uma dupla. Fay congelou nos braços do moreno, mais desperto do que estivera meia hora atrás. Com calma Kurogane tapou a boca de seu sacrifício, apertando seu corpo magro em seu corpo enorme. Os passos estavam cada vez mais perto e o moreno começou a ver quais eram as chances reais deles escaparem. Se fosse um combate corpo a corpo ele precisava garantir que Fay estaria protegido, Kurogane era ótimo com brigas de rua, vez ou outra, quando Yukito e Fay resolviam passar o dia juntos fazendo sabe-se lá o que, ele e Touya costumavam sair e quase sempre a noite terminava com alguma briga; mas Fay não era, então sua prioridade era garantir um lugar seguro quando a briga começasse. Agora, se fosse um duelo…

—Vocês aí, não se mexam – uma voz estridente ordenou.

A dupla que surgiu era definitivamente de Zeros, ambos tinham o olhar vazio que denunciava uma alma quebrada e fragmentada tantas e tantas vezes que podia se encaixar com outra alma sem ser aquela a que inicialmente ela pertencia. Zeros não eram humanos, era duro e cruel dizer aquilo, mas era verdade, eles estavam tão quebrados que era impossível consertá-los.

—Viemos buscar o sacrifício – o Zero mais velho informou como se fosse um pedido razoável – Eu sugiro que ele se entregue, se não vamos lutar por ele.

—Vocês dois contra nós? – Kurogane pediu, ele tinha que garantir que só havia uma dupla ali.

—Sim. Vocês não tem nenhuma chance contra nós, então devem desistir e tornar tudo mais fácil…

A risada de Fay interrompeu as palavras do Zero, suas orelhas estavam levantadas e até onde ele podia ouvir era verdade que era apenas aquela dupla contra o loiro e o moreno. Kurogane suspirou aliviado, Fay estava melhor e ele podia duelar, assim que acabassem com aqueles Zeros eles iriam para o norte, nem que Kurogane tivesse que carregar seu sacrifício pelo resto do caminho.

—Por que você está rindo? – o Zero mais novo perguntou indignado – Vamos acabar com vocês caso aceitem lutar.

—Nem nos seus sonhos – Fay declarou.

E então os olhos azuis simplesmente mudaram de cor, um amarelo ouro tomando seu lugar revelando um semblante assustador. Fay era frágil, delicado e sua saúde era instável, alguns dias ele se sentiria ótimo e em outros ele ficaria boa parte do tempo na cama, ou na frente da lareira desenhando. E Kurogane o amava loucamente e seria sua companhia na frente da lareira e escalando montanhas. Mas quando um duelo realmente bom se apresentava…

Bem, anjos podiam se tornar demônios.

—Nós aceitamos o desafio. Vamos duelar contra vocês – Fay respondeu ficando de pé.

Kurogane se levantou em seguida tomando a frente e se posicionando no lugar do combatente, os Zeros estavam ainda se arrumando quando o campo de luta surgiu.

—Kurogane, acabe com eles, eu os quero no chão – Fay ordenou com frieza, os olhos dourados não demonstrando hesitação ou dúvida.

—Como quiser. Vocês são Zeros, que o vento os parta da mesma forma que suas almas estão partidas – Kurogane começou.

O ataque foi poderoso e a primeira restrição surgiu no Zero mais novo. Não que isso fizesse a dupla adversária recuar, um ponto interessante é que os Zeros que Ashura criara tinham um defeito imenso: tanto combatente quanto sacrifício não davam a mínima para o outro.

—O nome que os une não tem significado algum, assim como essa luta, por isso seus sentidos devem desaparecer.

E por um momento Kurogane não conseguia mais enxergar nem ouvir coisa alguma, não havia chão sobre seus pés ou a sensação de roupas em seu corpo. Era horrível, não era a primeira vez que ele sofreia um ataque como aquele, porém isso não tornava as coisas mais fáceis. A preocupação com Fay ainda era violenta.

Foi então que ele sentiu sua alma sendo acariciada, ele não sabia descrever ao certo qual era a sensação ou como aquilo era possível, na verdade ninguém, nem mesmo Touya, tinha tido uma experiência parecida, mas sempre que algum ataque impedia que o moreno sentisse o loiro, Fay faria aquilo como uma garantia que estava tudo bem, que ele ainda estava logo atrás de Kurogane mesmo que tudo indicasse que não.

—O nome que nos une é o que dá sentido a nossa vida, fazendo um vínculo que vocês não podem quebrar e que recai sobre vocês como uma chuva de pedras.

O ataque dos Zeros se desfez quando as pedras caíram sobre o Zero mais novo, duas restrições sendo acrescentadas a ele. Kurogane aproveitou o ataque para olhar para Fay, havia uma restrição pesada ao redor de seu pescoço de marfim recobrindo sua cicatriz, o combatente estremeceu em ódio, ele não suportava não ver CHI marcando a pele sedosa.

—Com sua chuva de pedras eu construo uma barreira que impede que você me ataque.

Uma parede gigantesca surgiu na frente dos Zeros, sólida e impenetrável. Kurogane hesitou, incerto em como vencer aquele obstáculo.

—Kurogane – Fay chamou num tom que não aceitava ser ignorado – Eles podem construir o que quiserem, se o chão não for sólido, tudo ruirá.

—Vocês são Zeros, não há base para sua união como combatente e sacrifício, do mesmo jeito que meu terremoto acaba com a sua barreira e impede que você construa qualquer proteção sobre este chão.

Um tremor violento destruiu a parede e revelou os dois Zeros, o mais velho parecia irritado com aquilo e Kurogane sorriu satisfeito.

—Seu medo de perder seu sacrifício o paralisa. Você não pode se mover.

Restrições aparecerem nos pulsos e tornozelos do loiro e Kurogane grunhiu. Quanto mais perto da verdade fosse o ataque, mais poderoso ele se tornava.

—Ashura vai adorar ter você – o Zero mais novo provocou Fay sorrindo.

—Kurogane, acabe com isso agora! – Fay exigiu furioso.

—Você não tem medo de que seu sacrifício se machuque, por isso não vai protege-lo. Eu ordeno a destruição de seu sacrifício.

A sinceridade daquelas palavras era tão grande que as restrições que surgiram não apenas impediram qualquer movimento do sacrifício como rasgou sua pele, fazendo-o sangrar abundantemente. O campo de duelo se desfez, o Zero mais novo mal podia se mexer, ainda preso; o mais velho se quer olhou para seu sacrifício, sua missão era levar o garoto loiro embora, se o idiota com quem fazia dupla não podia aguentar um simples ferimento o problema não era dele.

—Eu vou levar seu sacrifício mesmo assim – o Zero disse sem emoção.

Fay bufou, ele odiava mal perdedores.

—Kurogane, eu o quero desacordado.

E mais do que feliz em obedecer, o moreno deu um soco certeiro na cabeça do adversário, vendo-o cair inconsciente no chão. Um Zero não sentir dor não significava que um Zero não podia apagar após um belo gancho de direita. Quando o combatente voltou para seu sacrifício, Fay estava apoiado em uma árvore, a respiração frágil e os olhos azuis meio aguados.

—Vamos encontrar os outros – Kurogane prometeu.

Com facilidade ele pegou o corpo magro do loiro e o trouxe para perto de si, deixando que uma cabeça loira repousasse em seu ombro.

—Durma, Fay. Vou levar você para um lugar seguro.

O garoto apenas resmungou um sim antes de fechar os olhos e adormecer.

A próxima vez que Fay abriu os olhos ele estava numa cama gigantesca, seu corpo afundado em lençóis de linho e travesseiros fofos. O quarto era espaçoso com paredes brancas e grandes janelas que deixavam a luz do sol entrar, aquecendo o que ele julgava ser uma manhã, o cheiro de roupa limpa e terra molhada estavam misturados com sua colônia favorita e ele sorriu por puro reflexo. Uma mão enorme acariciava seus cabelos, vez ou outra brincando com suas orelhas, ele podia sentir sua cauda ao redor da barriga definida do seu combatente e a paz era o sentimento absoluto naquele momento.

—Você acordou – Kurogane disse num tom suave e gentil – Como você está?

—Com sono – Fay contou bocejando.

—Volte a dormir.

—Está tudo bem? Shoran, Yukito?

—Todos estão bem. Levei nós dois para as cavernas onde encontramos os outros, ficamos lá por um dia e meio até que Yukko e seus funcionários apareceram, Ashura foi detido quando ele estava tentando se aproximar do sacrifício dela.

—Ele é mais louco do que eu pensei – Fay exclamou surpreso que alguém tentaria algo do tipo.

—Sim. Ou ele era, ele tentou fugir e acabou sendo baleado por um policial. Estão pesquisando as bases onde ele fazia suas experiências e uma possível cura para os Zeros, mas pelo menos ninguém da academia foi pego.

—Isso é bom – Fay sorriu ronronando quando sentiu o moreno tocar suas orelhas.

—Sim, agora durma. Eu vou estar aqui quando você acordar.

—Promete?

—Eu nunca vou sair do seu lado Fay.

E para selar sua promessa Kurogane beijou o garoto loiro com calma e gentileza, sugando seus lábios com carinho e amor antes de terminar o beijo com uma pequena lambida no lábio inferior do sacrifício.

—Durma. Watashi wa, anata o aishiteimasu.

—Je t'aime trop.

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—Esse mundo… Por que ele?

—Como assim?

—Você nunca faz nada sem uma razão.

—Memórias são importantes, Watanuki. Quando tudo fica sombrio, você pode buscar nelas a luz para iluminar seu caminho. Elas constroem quem você é. Nunca se esqueça disso.

O garoto não respondeu, incerto se realmente ele entendeu o que Yukko estava tentando dizer.

Mais tarde, quando a Bruxa Dimensional desapareceu deixando a loja sem dono, Watanuki relembrou aquelas palavras. Ele não estava de todo certo se tomar o lugar da Bruxa até que ela voltasse era a decisão correta, de certa forma ele estava desistindo de tudo por causa de uma memória. Seria isso que Yukko queria dele? Depois de tudo o que eles viveram, de todos aqueles mundos que eles visitaram, era isso que ela queria? Ele tinha entendido tudo errado? Ele e Doumeki não…

O adolescente se recusou a pensar mais naquilo. Ele tinha escolhido ficar como lojista e esperar pelo dia em que Yukko voltaria, todos os seus passos o tinham levado até aquela escolha, era mais do que uma opção, era Hitsuzen, e mesmo que parte de sua alma queria muito, pelo menos daquela vez, ignorar seu destino e seguir seu coração, Watanuki não tinha coragem para enfrentar Hitsuzen.

Mesmo que isso destruísse o futuro que ele tinha planejado para si mesmo.


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Notas finais do capítulo

Tá acabando :(



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