Você é meu mundo escrita por Blue Butterfly


Capítulo 14
Um mundo sem Hitsuzen


Notas iniciais do capítulo

This is the end...



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Watanuki olhou o papel simples e de qualidade como se fosse uma agressão pessoal. Felizmente ele conseguiu esconder a careta quando Doumeki apareceu carregando um Mokona totalmente adormecido.

—Eu já vou – Doumeki avisou repousando a bolota preta com cuidado em uma almofada.

Watanuki não respondeu. O arqueiro olhou com curiosidade o lojista, normalmente aquele era o momento em que Watanuki estaria gritando com ele por ter ficado tempo demais e comido demais e ter se calado demais.

—Hey!

—Por que vocês estão fazendo isso? – Watanuki exigiu olhando para qualquer lugar que não fosse Doumeki.

—O casamento?

—Não, idiota. Explodindo Tókio. É claro que é o casamento.

O homem não respondeu até que o adolescente finalmente o encarasse.

—Por que é Hitsuzen? – provocou sem piedade.

—Você não pode estar falando sério – Watanuki reclamou andando de um lado para o outro com vontade de socar o homem a sua frente.

—Por que não? Não é essa a resposta para todas as suas escolhas?

Watanuki parou, seu semblante se tornando vazio. As palavras não foram ditas com raiva, Doumeki continuava estoico e imperturbável como estivera ao longo de todos aqueles anos em que viera para loja. Mesmo assim, doeu mais do que o lojista poderia imaginar.

—Você não acredita em Hitsuzen – Watanuki sussurrou olhando para o chão.

—Talvez esteja na hora de começar a acreditar.

O arqueiro deu as costas para o adolescente, era hora de ir para o templo.

—Doumeki – Watanuki chamou ainda parado no mesmo lugar – Por quê?

—Porque você escolheu ficar nesta loja esperando aquela mulher. Eu não vou viver para sempre, Tsuyuri também não, alguém tem que cuidar de você quando não estivermos mais aqui.

—Vocês não podem…

—É como as coisas tem que ser – Doumeki interrompeu.

Ele não queria ouvir o adolescente questionar aquela decisão. Por muitos anos ele esperara por Watanuki, mas finalmente ele tinha que aceitar as coisas como elas eram.

—Foi Hitsuzen você a conhecer e nos apresentar. É Hitsuzen nós optarmos pelo casamento e garantir que você tenha alguém para te ajudar até o dia que aquela mulher volte.

—Você não acredita em Hitsuzen, Doumeki – Watanuki berrou com os ombros tremendo.

—Desde que conheci você, eu tive que acreditar.

Ele não berrou. Mesmo assim Watanuki se encolheu.

O homem saiu da loja sem olhar para trás. Durante sua vida ele tinha feito suas próprias escolhas e construído seu próprio caminho, entretanto, toda vez que Watanuki estava por perto era como se nada do que o arqueiro fizesse surtisse efeito.

Era como quando ele era um adolescente e estava aprendendo a atirar de forma tão precisa que se um monstro estivesse engolindo a cabeça de Watanuki ele conseguiria matar o monstro sem ferir o menino. Por mais que ele tentasse, que praticasse até sua mão sangrar, nunca tinha sido bom o bastante.

Quando se tratava de Hitsuzen e Watanuki, nunca parecia o bastante.

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Fay encarou a garrafa vazia na mesa, a luz entrando pela janela encontrava o vidro verde e produzia manchas na parede branca. O loiro abriu uma nova garrafa, a bebida quente e forte rasgou por sua garganta, irritando seus olhos, outras garrafas estavam espalhadas ao seu redor, todas vazias. Ele tinha acordado bem cedo e desde então estivera ali, tentando a todo custo se acalmar, quando a tarde caiu e ele mal podia respirar sem sentir seu coração sangrar, o loiro desistiu e foi até a cozinha, trazendo para a sala qualquer tipo de bebida que ele tinha guardado para aquele momento.

E o pior é que aquela era a última garrafa e ele ainda não estava bêbado o bastante para apagar e só acordar um dia depois.

Ele estava se casando.

Pupilas dilatadas, olhos secos, ele estava uma bagunça, seu cabelo loiro e suave apontava para todas as direções, sua camisa cheirava mal e um par de olheiras monumentais pairava em seu rosto.

Um convite de casamento estava jogado na mesa ao lado da garrafa verde, anunciando com orgulho que a família Suwa finalmente havia encontrado alguém adequado para unir com seu herdeiro, uma garota de sorte que em menos de um mês passara de completa desconhecida para a futura senhora Suwa.

Ele estava se casando.

Ele tomou mais um gole do que quer que fosse aquela bebida e fechou os olhos. O casamento devia estar terminando naquela hora, a família tinha optado por uma cerimônia a tarde num dos locais mais caros e requintados da cidade, sem se preocupar em poupar com absolutamente nada.

Os Suwas eram a família mais tradicional e poderosa que ele conhecia, sua fortuna chegava facilmente na casa dos milhões e sua influência era maior ainda. Então é claro que a festa de casamento de seu precioso filho seria um evento social de proporções épicas. Os convidados foram escolhidos a dedo, só sendo aceito a mais fina nata da sociedade. Mesmo o noivo não pode convidar quem ele queria, sua lista de convidados se resumia a apenas cinco amigos e nada mais do que isso.

Ele estava se casando.

Desses cinco, um se recusara a ir e ver o herdeiro fazer a maior burrada de sua vida, outro fora um tanto contrariado, afirmando que estava lá apenas para dar apoio moral e que não concordava em nada com aquela união, o mais novo dos cinco preferiu não dar sua opinião e apenas ir e a única menina do grupo se recusara a elaborar o vestido da noiva, mesmo sendo uma das maiores estilistas dos últimos anos. E o quinto convidado estava naquela sala, completamente perdido e bebendo como se não houvesse amanhã e como se os pais do herdeiro não tivessem lhe dado a grande honra de ser o único padrinho de seu filho, seu “best-man”.

Seu estômago reclamou de fome e azia, passar o dia todo sem ingerir nada sólido não estava na lista de coisas mais saudáveis que Fay poderia fazer, se bem que se ele fosse sincero consigo mesmo – e ainda que ele não fosse com os outros, Fay sempre tentou ser sincero com ele mesmo – nos últimos dias Fay tinha mandado a lista de coisas saudáveis para o espaço e tinha feito tudo o que poderia o destruir. Beber sem parar era uma pequena agressão comparada com tudo o que ele tinha se permitido passar.

Ele estava se casando.

Fay abriu os olhos, admirando seu minúsculo e bagunçado apartamento, três cômodos, contando com o banheiro, era todo o espaço que ele tinha, seu quarto era minúsculo e mal cabia a cama de solteiro e um guarda-roupa velho, na sala era onde havia mais espaço, mas ainda assim era pequena comparada com outros apartamentos e se ele quisesse cozinhar, tinha que pedir a um dos amigos que emprestasse sua cozinha.

A única vantagem daquele lugar era que era dele. Ele não precisava enfrentar a ira de seu pai ou dividir o espaço com sua madrasta, não tinha que justificar seus horários e se esconder atrás de uma imagem formal e certinha. Não precisava fingir um interesse que ele não tinha, nem implorar para que uma amiga fizesse o papel da namorada que ele jamais teria, ser expulso da própria casa não foi agradável, entretanto ele não precisava mais mentir como fizera durante toda sua vida.

Ele estava se casando.

Fluorita não era um sobrenome importante ali, talvez fosse em seu país de origem, um lugar frio onde a neve caía 363 dias no ano e o sol era visto ano sim ano não. Diferentemente de Suwa. Ele também não era belo para aquela sociedade, num lugar em que cabelos negros como breu e um corpo forte e moreno eram cultuados, sua figura pálida e loira, com estranhos olhos azuis e traços delicados estava longe de ser definida como agradável.

Expulso da própria casa, trabalhando duro para manter um apartamento minúsculo e sua barriga cheia, sem nada que valesse a pena olhar duas vezes, ele sabia bem o seu valor para aquela sociedade. Ter tido o direito de ser chamado de amigo por um herdeiro de Suwa era uma honra tremenda que ele jamais receberia novamente naquela vida, uma honra que ele abriu mão no momento em que lançou uma caixinha de veludo com duas alianças na mão do amigo mais novo entre os cinco e sem dizer nada foi embora, deixando que o garoto tomasse seu posto como padrinho.

Ele estava se casando.

Fay não era masoquista. Mentiroso, sim. Com um complexo de mártir, talvez. Mas não masoquista. Se você atravessa o inferno uma vez e aprende o caminho, você não tem que atravessá-lo de novo, três anos atrás ele tinha se encantado com alguém, ele criou esperanças, ele sonhou com um futuro bom e sem dificuldades, e foi expulso de casa achando que estaria seguro enquanto o outro vivesse ao seu lado. Uma porta na cara e um breve “Jamais te assumiria. Ache outro lugar para morar”  bastou para que ele entendesse como o mundo funcionava e como era inútil tentar lutar contra as regras.

Por isso estava ali, não iria se entregar espontaneamente ao inferno uma segunda vez, ele não podia mudar a escolha da família Suwa para seu herdeiro, porém podia escolher o que ele ia ou não presenciar.

Ele estava se casando.

Mas ele não ia vê-lo dizer sim a uma garota qualquer vinda de uma boa família e tão bela quanto alguém poderia desejar. Ele não ia cavar seu próprio túmulo. Sabia que voltar para casa não era uma opção, ficar ali também não, mas pela primeira vez ele não se preocupou com o futuro, e não pelo efeito da bebida, sua situação financeira estava tão precária que nem mesmo uma bebida suficientemente forte ele tinha conseguido adquirir. Mas só se preocupa com o futuro quem espera algo bom dele. Ele não esperava mais nada.

Ouviu a porta do seu apartamento se abrir, mas não se moveu. Somente duas pessoas tinham a chave daquele lugar, já que ele exigira que a terceira devolvesse sua chave quando o casamento foi anunciado. Com três passos um jovem apareceu em sua frente, cabelos prateados e pele ainda mais clara do que a dele, o semblante sério e uma garrafa de tamanho considerável na mão.

—Touya ligou – o recém-chegado avisou sentando na frente do loiro.

—A cerimônia acabou? – Fay pediu numa voz seca e morta.

—Sim. Ele disse sim.

Fay não respondeu.

Ao invés disso ele aceitou a garrafa que Yukito lhe estendia e bebeu.

Kurogane estava casado.

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Touya olhou pela terceira vez o relógio em seu pulso, sem se importar com a risada impertinente da garota ao seu lado.  Fazia cinco anos desde que aqueles dois tinham pisado naquele país, ele os visitara ao longo daqueles anos, chegara a ficar um ano com eles logo no começo, ele sabia que voltar para aquele lugar era a última coisa que os dois queriam fazer, Yukito nunca tinha perdoado seu amigo por seu casamento repentino e Fay…

—Eles chegaram – a menina avisou apontando para um dos portões de desembarque.

Os dois andavam com segurança, um sorriso misterioso em suas faces e uma tranquilidade que só o tempo e a maturidade poderiam conceder. Em cinco anos eles tinham crescido muito, em diferentes formas. Yukito perdera sua ingenuidade e descobria o lado negro do mundo, se tornando mais maduro e forte, Fay parou de mentir e de se sacrificar por qualquer pessoa, ele aprendeu a lutar por sua felicidade e valorizar sua vida, ganhando equilíbrio e obstinação.

O primeiro que os viu foi Yukito, diferente de cinco anos atrás em que ele correria para Touya com um sorriso infantil e o cumprimentaria como se Touya fosse tudo o que ele precisasse para continuar vivendo, dessa vez Yukito apenas acenou, mantendo sua conversa com Fay e andando com calma até eles. Aquele comportamento tinha surpreendido o homem a primeira vez que o vira, ele chegou a se perguntar se os sentimentos que Yukito nutria tinham se desfeito no dia em que ele escolheu ir para o casamento de seu melhor amigo ao invés de ficar do lado de Yukito e Fay, porém percebeu que não se tratava disso. Ao menos não exatamente isso. O novo Yukito não beijaria o chão que o homem pisava como seu antigo eu fizera, junto com a força o homem se tornara confiante e aprendera a se valorizar, ele não era mais a figura sempre disponível, se quisesse estar com ele, Touya teria que lutar para conquistar um lugar ao seu lado e permanecer ali. Uma mudança que tanto Yukito quanto Fay compartilhavam.

Tomoyo riu mais uma vez antes de ir em direção aos dois, ela sentira falta deles. Todos tinham.

—Fay, Yukito – a garota cumprimentou abraçando cada um deles – Okaeri.

Os dois homens se entreolharam, o loiro deixando que o de cabelos prateados respondesse pelos dois.

—Olá, Tomoyo.

Não era tadaima. Nunca mais seria, pois há cinco anos eles tinham deixado aquele lugar sem olhar para trás uma única vez.

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—E não esqueça de passar no mercado, eu me recuso a pedir comida – Fay avisou terminando de guardar o último pacote de roupas.

Yukito assentiu pegando a lista e se dirigindo para a porta onde Touya o esperava com um meio sorriso no rosto.

O plano inicial era ficar ali apenas uma semana e depois voltar, mas assim que chegaram a empresa para qual trabalhavam enviou uma ordem especial sobre um contrato que precisava ser fechado e eles tiveram que permanecer ali por mais tempo, então ao invés de um hotel Tomoyo tinha feito algumas ligações e agora eles tinham um apartamento.

Assim que se viu sozinho, Fay afundou no chão da sala, usando o sofá para apoiar as costas e fechou os olhos, descansando o corpo e a mente por alguns segundos. Quando ele os abriu, lembranças invadiram sua mente, fazendo-o recordar de uma época sombria em que ele também se jogara no chão da sala e ficara um dia inteiro ali, bebendo. Não era sua lembrança favorita.

A campainha o fez rir, era típico de Yukito esquecer as coisas e voltar desesperado para casa, sem se importar em prender melhor o longo cabelo loiro que agora já alcançava metade de suas costas ele foi até a porta, assobiando baixinho uma canção que aprendera em sua nova casa. A maçaneta estava fria quando ele a tocou.

Seu sangue congelou quando ele o viu.

—Fay – o homem falou num tom grave e rouco que ele não se lembrava de ser tão grave e rouco.

O loiro não respondeu. Ele mal podia acreditar que aquilo era verdade, nunca, nem em mil anos, ele esperaria encontrá-lo novamente, ele só tinha voltado para aquele país porque Tomoyo jurou que ele não estaria ali. Recuou, incerto se devia responder ou só fechar a porta na cara dele e comprar uma passagem de volta, ele não queria reencontrá-lo, quando Yukito ofereceu um emprego num país estrangeiro ele sabia que significava seguir em frente e deixar o passado apodrecendo no inferno. Ele tinha feito aquela escolha, então porque agora ele estava ali, parado na sua porta, com aqueles olhos vermelhos idiotas e aquela expressão franca que nunca escondia segredo algum revelando uma saudade que chegava a doer só de olhar?

—Fay? – o homem tentou de novo.

Fechar a porta na cara dele era a melhor escolha, ele não precisava passar por aquilo, não precisava ver o aro dourado repousando imperiosamente em sua mão esquerda relembrando a escolha daquele homem e de sua família.

—Eu posso entrar? – ele pediu.

E porque ele tinha mudado muito, mas ainda não tinha deixado de ser totalmente masoquista, o loiro se afastou, dando espaço para que o moreno entrasse no apartamento.

Kurogane andou até a sala, era o cômodo mais próximo, e se sentou no sofá sem jeito. Ele não sabia o que esperar daquele encontro, não precisava ser gênio para entender que o loiro estivera o evitando durante aqueles cinco anos, desde o momento em que seu padrinho não aparecera para o casamento, Kurogane percebeu que algo estava muito errado, ele tentou ligar, mas Fay não respondeu nenhuma de suas ligações, ele perguntou o que Shoran sabia, mas tudo o que o garoto lhe disse é que um dia Fay foi até sua casa e deixou as alianças com ele. O moreno deveria ter notado que as coisas estavam indo mal pelo comportamento de Yukito, Fay era ótimo em fingir, mas Yukito sempre tinha sido muito honesto tanto em seu amor quando em seu ódio, só que com o casamento chegando, a pressão de sua família e o sorriso de Fay garantindo que estava tudo bem ele não tinha notado a fúria gélida reinando nos olhos de âmbar.

Por isso, foi com completo choque que ele recebeu a notícia de Touya: dois dias após seu casamento, enquanto ele ainda estava viajando em lua de mel, Fay e Yukito simplesmente foram embora.

Fay permaneceu de pé, cruzando os braços na altura do peito em uma posição defensiva.

—Por que está aqui? – finalmente perguntou num tom desinteressado.

Kurogane respirou fundo, ele não estava pronto para lidar com aquele Fay.

—Tomoyo me disse que vocês finalmente voltariam. Eu pensei que seria bom rever você – já que você está fugindo há cinco anos dessa conversa, completou em sua mente.

—Seu senso do que é bom ou ruim para mim continua horrível – Fay afirmou com frieza.

—Eu não pensei que rever um amigo fosse algo ruim, Fay – Kurogane tentou.

—Eu não sou mais seu amigo. Eu não deixei isso bem claro quando não fui ao seu casamento?

—Yukito também não foi ao meu casamento – Kurogane falou não querendo responder diretamente aquela pergunta.

—Sim. E ele te odeia – Fay contou com um pequeno sorriso de escárnio.

Kurogane suspirou, ele já tinha imaginado aquilo, havia algo em Touya toda vez que o moreno tentava descobrir onde aqueles dois tinham se metido que o fizera entender com o tempo que a antiga amizade que unira aqueles seis tinha se quebrado. Por culpa de Kurogane.

—Você me odeia? – o moreno pediu com medo da resposta.

Fay respirou fundo. Ele já tinha se feito aquela pergunta algumas vezes, ele agora sabia a resposta.

—Não. Eu já te odiei, muito. Você quebrou meu coração e sabe disso – o loiro começou com uma voz neutra – Você foi fraco e fez o que sua família mandou, sem se importar em quem estaria machucando. Quando você escolheu se casar com ela, eu fiquei com raiva, quando seus pais me pediram para ser seu padrinho e você não argumentou, eu fiquei com ódio, quando Yukito me contou que você disse sim para ela, eu quis que você morresse. Mas isso foi há cinco anos. Naquela época eu achava que você era o único que podia me fazer sorrir de verdade, o único que eu podia confiar e ser sincero sem temer as consequências. Cinco anos atrás eu teria entregado minha vida se você pedisse sem pensar duas vezes. O que me faz pensar o quão tolo e deplorável eu era.

Fay riu sem nenhum humor, ele fechou os olhos brevemente e respirou fundo, ele jurou uma vez que não seria mandado para o inferno duas vezes e ele não quebraria sua promessa.

—Eu mudei – ele continuou com calma – Não vou deixar você ser o centro do meu mundo novamente, não vou oferecer minha vida para qualquer capricho seu. Não vou deixar que quebre meu coração de novo. Eu não te odeio, Kurogane, porque simplesmente abri mão de qualquer sentimento que podia nutrir por você. Eu te amei por muito tempo, te odiei por um tempo bem menor, mas agora eu estou livre.

—Eu… Aquele casamento, eu pensei…

—Eu não me importo – Fay o cortou – Talvez há cinco anos eu me importasse, porém não mais. Foi sua escolha. Eu tenho o direito de fazer a minha. Vá embora, por favor. Eu cansei de te amar e de te odiar.

E deu as costas para o moreno, indo até a cozinha buscar um copo de água.

—Fay – Kurogane chamou sentindo seu coração ser preenchido por desespero.

Ele parou de andar e se virou, encarando o homem moreno sem interesse.

—Você… Você encontrou alguém?

—Você não tem o direito de saber sobre isso – Fay respondeu sem sorrir.

—Fay, eu sinto muito, eu…

—Vá embora, Kurogane. Houve um tempo quando tudo o que eu queria era ver você me pedindo desculpas e jurando que a deixaria e me escolheria, que um mundo onde eu não estivesse ao seu lado não valia a pena viver. Céus, isso soa tão patético para você como soa para mim? – mas não deu tempo para o outro responder – Você está atrasado, eu não quero mais suas desculpas, tudo o que eu quero é que você saia por aquela porta e nunca mais apareça na minha vida.

—Você acha que eu não queria? –Kurogane revidou num tom forte – Quando Touya me contou que vocês tinham ido embora eu me arrependi imediatamente. Eu nunca achei que você fosse embora, Fay, nunca pensei que sairia do meu lado, desde a primeira vez que te encontrei eu soube que nosso destino era estarmos juntos. Era a sensação mais forte de toda minha vida. Por que temos que ficar separados quando fomos feitos para ficarmos juntos? É inevitável!

—Porque inevitável só existe para quem é fraco demais para fazer seu próprio caminho. Porque existe uma coisa mais forte que o destino: a escolha humana – Fay respondeu com frieza – Não importa o quanto o Universo conspire para uma união, essa história de almas-gêmeas, linhas vermelhas, tudo isso não pode vencer a força do desejo humano. Porém cada desejo tem um preço que deve ser pago, quando você escolheu se casar, você desafiou o inevitável. Quando eu decidi ir embora, eu fiz meu próprio caminho. E o preço de nossas escolhas é bem óbvio.

Eles ficaram em silêncio por um longo tempo, até que o loiro deu de ombros e voltou a andar. O moreno saiu do sofá e foi em direção a porta. Quando Kurogane fechou a porta e foi embora, Fay tomou um gole de água, seus ombros relaxando como se o peso do mundo fosse tirado deles. Para o bem ou para o mal seus destinos estavam selados.

Mesmo que ele estivesse com o coração quebrado.

Mesmo que ele ainda sofresse alguns ataques de pânico.

Mesmo que ele não fosse mais capaz de amar ou se apaixonar novamente.

Mesmo que Kurogane não fosse feliz em seu casamento.

Mesmo que Kurogane não fosse capaz de dizer “eu te amo” para sua esposa.

Mesmo que Kurogane sonhasse com cabelos loiros e olhos azuis toda maldita noite.

Eles tinham feito sua escolha.

Ele estava casado.

Fay estava seguindo em frente.

Quando Yukito voltou para o apartamento, ele encontrou um pequeno bilhete na mesa da sala, com um sorriso triste ele foi para o quarto fazer suas malas, tinha certeza que o contrato poderia ser feito no dia seguinte e ele não precisava ficar naquele lugar mais do que o necessário. Se fizesse tudo rapidamente, ainda chegaria a tempo de jantar com Fay. Touya não disse nada, apenas ajudou recolhendo os pertences do garoto pálido.

Cinco anos atrás Yukito tinha feito a escolha de acompanhar Fay aonde quer que fosse, e infelizmente essa escolha significava ter que deixar Touya para trás. Como num jogo de dominó, bastou a escolha de uma única peça para que todas as outras caíssem.

Não. Touya era mais inteligente do que isso. Mesmo que uma peça tinha decidido cair, as outras que foram ao chão fizeram por sua própria vontade e não por simples destino, Touya era um homem corajoso e forte, ele não via nenhum problema em lutar contra o destino, entretanto ele jamais lutaria contra a vontade e o desejo de Yukito, porque esta tinha sido a decisão de Touya.

—Quando encontrá-lo, diga que foi bem revê-lo – Touya pediu entregando a última camisa.

—Claro – Yukito garantiu fechando a mala.

—Yuki, um dia você vai voltar? – ele precisava saber.

Yukito baixou a cabeça, com a voz triste, porém decidida ele respondeu:

—Não.

E Touya apenas concordou.

x

—Você não vem dormir?

Kurogane se quer olhou para sua esposa, ele não se dignou a responder e a mulher o deixou, uma eterna careta de raiva em seu rosto feminino. O homem continuou segurando a fotografia em suas mãos rudes, a imagem de um loiro sorridente e brincalhão sorrindo para câmera enquanto abraçava com toda sua força um Kurogane bem mais jovem e tímido.

Seu coração quebrou.

x

xx

xxx

Watanuki acordou molhado de suor, respiração ofegante, todo seu corpo tremendo. Maru e Moro estavam ao seu lado, olhando com preocupação o novo dono da loja, até mesmo Mokona estava quieto, aguardando com expectativa.

—Mestre, mestre, o que aconteceu? – as garotas pediram.

—O último mundo – Watanuki arquejou empurrando os lençóis para longe – O mundo que ela disse que eu não estava pronto para ver… O mundo onde Hitsuzen pode ser quebrado pela vontade humana…

Os olhos de Mokona aumentaram, ele sabia exatamente que mundo era aquele.

—Watanuki – a criaturinha chamou com seriedade vendo o dono da loja se arrumar as pressas.

—O quê? – pediu agarrando o laço errado.

—Em qualquer mundo Hitsuzen pode ser quebrado pela vontade humana.

Watanuki congelou no lugar, Maru e Moro ficaram quietas, seus olhos desfocados lembrando bonecas sem vida.

—Essa loja é a maior prova que o desejo humano pode quebrar Hitsuzen, afinal concedemos aquilo que as pessoas jamais teriam sem nossa interferência. Você muda o destino delas quando aceita seus desejos.

—A existência dessa loja é para que Hitsuzen se concretize – Watanuki corrigiu incerto.

—Você pode acreditar nisso. Ou pode acreditar no que eu disse. A escolha é sua.

O humano preso eternamente num corpo adolescente tremeu da cabeça aos pés, seus olhos indo do convite de casamento ao lado de sua cama para a porta do quarto.

—Memórias são importantes, Watanuki. Quando tudo fica sombrio, você pode buscar nelas a luz para iluminar seu caminho – Mokona relembrou com carinho.

—Inferno, por que não posso ver o seu rosto?

—Você o verá amanhã – o conde respondeu com resignação.

—Então por que não me mostra hoje?

—Porque quero acreditar, nem que seja só por uma noite, que eu ainda sou digno de ficar do seu lado.

—Quem decide isso sou eu!

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—Sério? Você realmente quer um momento doce e romântico? Acha que isso é o que? Um reencontro? Quer que eu corra para os seus braços e diga que senti sua falta? Ou que te dê um apelido estúpido e assim você vai achar que os últimos anos nunca aconteceram? – a cada pergunta a voz ia ficando mais fria e o olhar mais duro.

—Não. Eu quero que você entre e tome um banho enquanto eu esquento nosso jantar. Só isso.

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—Quem escolheu meu irmão? – pediu numa voz morta.

—Isso importa? – a voz do moreno estava cansada, aparentemente era um assunto delicado para ele também.

—Só me diga quem… Por favor – implorou.

—Um cachorro imundo que pensou que valia a pena fazer algo assim por você.

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Ele estava confortável, a escuridão era boa, aconchegante, ele se sentia em paz. Parecia seguro ali na escuridão, ele não tinha que enfrentar a dor, ele não tinha que ser forte, ele não precisava fugir. Era uma sensação familiar.

Olhos vermelhos. Estavam por toda parte, puxados olhos vermelhos orientais que faziam seus pequenos pacientes correrem com medo. A pele morena e sempre quente, mãos calejadas que tocavam seu corpo como se fosse um templo. Lábios rachados. E a sensação de segurança também estava lá.

Era difícil escolher entre a escuridão e os olhos vermelhos, a primeira era tranquila, fácil de aceitar, bastava continuar como estava, nada mudaria, talvez a única diferença é que o barulho insistente de algo batendo de forma ritmada parasse. A segunda exigia ser forte, gastar energia abrindo os olhos, sentir dor, náusea, medo. Só que aqueles olhos eram tão preciosos…

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—Kuro-puu, é errado ter os próprios sonhos?

—O que você acha?

—Por favor, não me responda assim. Eu estou cansado de ouvir apenas respostas apropriadas.

—Inferno, é claro que não – o moreno garantiu revirando os olhos com a pergunta estúpida – Não importa o que digam, você é livre para sonhar com a merda que quiser.

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—Ele vem para casa comigo, eu deixei que ele ficasse tempo demais nessa academia, a casa de Fluorita exige a sua devolução…

—Eu não vou.

Fay se pronunciou pela primeira vez. Desde que seu pai chegara com alguns representantes daquela família ele mantivera o silêncio, sua atenção em outro mundo, uma mão estendida tocando um enorme dragão negro de olhos vermelhos.

—Você não tem escolha…

—Eu já completei dezenove anos. Sou um adulto perante a família Fluorita. Dediquei dez anos de minha vida servindo nossa família, e depois, com seu consentimento, fiquei nesta academia. Eu tenho direito de escolher meu futuro.

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—Você aceita dividir seu amor e seus sonhos comigo, para sempre?

—Sim!

E o loiro se jogou em cima do homem ajoelhado a sua frente, lágrimas de felicidade correndo por seu rosto.

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—Prazer, Fay, escritor – e estendeu a mão.

—Kurogane, lutador de judô pela seleção nacional e professor de kendo nas horas vagas – e apertou com cuidado a mão que lhe era ofertada – Você estava escrevendo, eu estou atrapalhando? Se quiser posso mudar para o outro lugar…

Os olhos azuis quicaram entre o caderno e o homem a sua frente.

—Eu adoraria que ficasse.

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—Durma. Eu vou estar aqui quando você acordar.

—Promete?

—Eu nunca vou sair do seu lado Fay.

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—Quando Touya me contou que vocês tinham ido embora eu me arrependi imediatamente. Eu nunca achei que você fosse embora, Fay, nunca pensei que sairia do meu lado, desde a primeira vez que te encontrei eu soube que nosso destino era estarmos juntos. Era a sensação mais forte de toda minha vida. Por que temos que ficar separados quando fomos feitos para ficarmos juntos? É inevitável!

—Porque inevitável só existe para quem é fraco demais para fazer seu próprio caminho. Porque existe uma coisa mais forte que o destino: a escolha humana – Fay respondeu com frieza – Não importa o quanto o Universo conspire para uma união, essa história de almas-gêmeas, linhas vermelhas, tudo isso não pode vencer a força do desejo humano.

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Watanuki largou o laço no chão sem se importar se sua yukata ficou meio aberta. Mokona sorriu de leve, a criaturinha sempre apostara que Watanuki era mais sábio e inteligente do que ele realmente aparentava ser.

—Mokona, Maru, Moro…

—Nós vamos ficar bem – Mokona prometeu com tranquilidade – A loja também vai. Vamos esperar até que um novo lojista chegue, porque essa é nossa escolha.

Watanuki balançou a cabeça afirmativamente, ele olhou uma última vez para seu quarto, deu um beijo apressado na cabeça de cada garota e fez uma última carícia na cabeça de Mokona antes de tomar o convite de casamento e sair correndo.

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Doumeki abriu a porta do templo com um bocejo, ainda era madrugada, cedo demais para alguém procurar aquele lugar. Entretanto, todo o sono que estava sentindo foi embora assim que a imagem de um Watanuki descabelado, desajeitado, com o rosto corado e a respiração ofegante surgiu bem a sua frente, sua roupa mal cobrindo todo seu corpo e seus pés sujos.

Fora da loja.

—Watanuki? O que você…?

—Você não vai se casar – o adolescente berrou sem se importar com a vizinhança – Eu não me importo se era uma forma de garantir que eu sempre tivesse companhia ou o que quer que vocês dois possam ter inventado para justificar essa união, você não vai se casar! Eu não vou te perder, seu idiota mesquinho!

E empurrou o convite de casamento totalmente amassado na direção do outro, os ombros tremendo e os olhos bicolores brilhando com lágrimas não derramadas.

—Eu não quero que você coma a comida dela todos os dias, eu não quero que ela crie novos pratos para você ou faça um bento para você levar para a universidade. Eu não quero que seja para ela que você responderá tadaima sempre que você ouvir okaeri, ou que ela escolha a decoração da sua casa porque você obviamente não pode fazer isso por conta própria, ou corrija suas roupas quando você escolher algo realmente ridículo para usar. Eu não quero que ela veja você envelhecer e descubra que seu mau-humor só aumenta conforme o tempo passa, ou que seus cabelos já estão começando a ficar grisalhos perto da sua orelha. Eu não quero que ela perceba que quando você realmente está feliz você não sorri aquele sorriso idiota de escárnio que me dá vontade de te matar, mas fica em silêncio – não o seu habitual silêncio que até mesmo uma pedra invejaria – mas aquele silêncio legal quando seus olhos brilham em contentamento.

—Watanuki…

—Eu não me importo com o que vai acontecer por estar desafiando Hitsuzen – Watanuki continuou com a voz embargada – Você sempre fez suas próprias escolhas e sempre traçou seu próprio destino. Por favor, só faça isso mais uma vez…

—Watanuki…

—Me escolha, Doumeki. Fique comigo.

E na frente de um templo, de madrugada, um adulto abraçou com força um adolescente e o trouxe para dentro, fechando a porta atrás deles e selando o destino com aquela escolha.


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Notas finais do capítulo

Terminou a história do Watanuki (chora emocionada)
Eu acredito em Hitsuzen, mas também acredito na força da vontade humana, então quis retratar um pouco dos dois nessa história.
Mas não me abandonem ainda não! Restam mais dois capítulos até o fim de VEEM ^^



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