Você é meu mundo escrita por Blue Butterfly


Capítulo 11
Um mundo para lembrar


Notas iniciais do capítulo

Voltei ^^



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/726534/chapter/11

—Eu queria esquecer toda a humilhação que aquele idiota me faz passar.

—Não diga isso.

—Por que não? Desde que ele apareceu na minha vida as coisas não ficaram melhores. Ele sempre consegue um jeito de se exibir, um jeito de mostrar que ele é o melhor, o mais forte, que ele pode proteger quem ele quiser quando eu mal consigo comprar um pão sem ser atacado. Se eu pudesse esquecer a existência dele, minha vida seria mais fácil.

—Watanuki! Esquecer a existência de alguém é um castigo terrível. As pessoas estão ligadas umas as outras, você não pode simplesmente cortar essas ligações e achar que não haverá danos. O preço do esquecimento é absurdamente alto.

—Eu não acho. Se você esquece alguém, você não pode sofrer por isso. Você sofre por aquilo que você conhece, e não pelo que não conhece.

—Watanuki, o que você está…

—Não, me deixe falar pelo menos dessa vez. Eu nunca sofrerei com a dor de perder um animal de estimação, porque nunca tive um. Ninguém sofre por aquilo que não tem, não de verdade. Então porque haveria dano esquecer uma pessoa se ela não vai existir na minha vida a partir do momento que eu esquecê-la? É como se ela nunca tivesse vivido.

—Esquecer é diferente de matar, Watanuki.

—Não para quem perde suas lembranças.

—Mas e para quem ainda lembra? Tudo bem para você se esquecer dele, mas e o Doumeki-kun? O que seu esquecimento causaria nele? Como fica aquele que ainda lembra, aquele que ainda guarda todas as memórias?

—Eu não… Não me importo. Não é como se ele fosse realmente sofrer, ele só teria que arrumar outro idiota para cozinhar para ele.

—Watanuki!

—Além disso, se quer tanto cuidar para que ele não sofra, basta apagar as memórias dele também.

—Doumeki-kun não é o tipo de pessoa que aceitaria algo tão covarde.

—Claro que não, ele é perfeito, né. Até você sabe disso e joga na minha cara.

—Você também não é covarde. Só precisa pensar antes de dizer certas coisas, palavras têm poder, não devem ser proferidas levianamente.

—…

—Watanuki…

—Eu só queria esquecer.

x

xx

xxx

—Bom dia, Kurogane.

O homem cambaleou para a cozinha, o rosto fechado em uma expressão ranzinza, com um balançar de cabeça ele devolveu o cumprimento, vagando para a máquina de café como um morto vivo, ele odiava manhãs. O loiro voltou sua atenção para o prato a sua frente onde algumas panquecas repousavam recheadas com chocolate e morangos, o jornal do dia estava dividido em dois, cada parte em uma extremidade da mesa, entre uma garfada e outra o loiro resolvia as palavras cruzadas e vasculhava as atrações da semana. Kurogane despencou na cadeira livre, trazendo a xícara de café preto sem açúcar até a boca, sem muito humor ele jogou um envelope na direção do outro, quase acertando o copo de suco.

—Para a conta do hospital. À noite eu trago o dinheiro do aluguel.

Sem tirar os olhos do jornal, o loiro pegou o envelope, seus dedos tremendo levemente. Kurogane se levantou, era um homem grandioso, com cabelos negros e olhos vermelhos, um andar duro e expressão irritada. Dividia um apartamento com o cara loiro, ele era um pouco mais velho e tinha olhos azuis estranhos, o moreno nunca se sentia plenamente a vontade com eles.

—Tomoyo ligou mais cedo, você não deve se esquecer da consulta de hoje – o loiro lembrou.

—Eu sei – cortou com mau-humor.

—Se quiser uma carona…

—Eu não preciso da sua ajuda, já disse que me viro bem sozinho.

Numa explosão de raiva ele lançou a xícara ainda cheia na parede, o líquido negro e quente sujando tudo ao redor e respingando nos cabelos dourados. O loiro não revidou, apenas respirou fundo, apertando a caneta com mais força que o necessário.

—É melhor procurar um apartamento pra você ou outro idiota para dividir o apartamento – o moreno avisou com frieza – A última parcela do hospital foi essa, mês que vem eu me mudo e você terá que pagar o aluguel sozinho.

—Tudo bem, Kurogane.

E finalmente ele ergueu a cabeça, sorrindo de orelha a orelha.

Lá estava o sorriso que Kurogane odiava, era tão falso, tão irritante, qualquer imbecil veria que por trás desse sorriso o loiro não estava feliz, não quando o olhar dele permanecia morto e sem luz. Um sorriso falso, assim como todas as mentiras que ele tinha ouvido nos últimos oito meses em que viveram juntos – pelo menos os últimos oito meses que ele podia se lembrar, nada que saia da boca do loiro parecia real, principalmente seu horripilante estado feliz que ele nunca abandonava. E acima de tudo, a forma com que o loiro dizia seu nome o levava a beira da insanidade, ele não sabia o que estava errado, só o que sabia é que toda vez que o Fay o chamava de Kurogane o moreno queria se atirar da janela mais próxima.

Sem uma despedida ele se foi, o gosto amargo do café aplacando sua fúria, não podia ficar numa sala com o loiro por mais de dez minutos sem querer socá-lo até tirar aquele sorriso estúpido de seu rosto. Seu celular tocou, sem precisar ver o identificador de chamadas atendeu com um grunhido rouco.

—Já está bravo? Não é cedo demais para odiar o mundo?

A voz do outro lado era infantil e feminina, com um toque de malícia e diversão que acalmava o moreno. Era familiar, e ele agradecia a todas as coisas que ainda eram familiares para ele.

—O que quer?

—Lembrar que tem médico hoje. Eu pedi para o Fay te avisar…

—O idiota já disse. Hey, não tem que mandar recado por ele se vai me ligar depois.

—Eu não tive certeza se ele ainda estaria em casa quando você acordasse – a voz da menina ficou estranha – Ele tinha uma reunião importante com o dono de uma doceria logo pela manhã e como você sempre acorda mais tarde eu achei melhor ligar.

Uma pontada de culpa bateu no coração do moreno, se ele tivesse prestado mais atenção ele teria notado que a roupa que Fay usava aquela manhã era diferente dos dias comuns em que ele ia trabalhar na cafeteria.

—Kurogane? – Tomoyo chamou com mais força, exigindo atenção.

—Eu tenho que desligar, acabei de chegar ao hospital.

—Me conte o que o médico disse depois. E Kurogane… Não seja tão duro com ele, eu gostaria de poder te contar como você o conheceu ou que tipo de pessoa o Fay é, só que não posso. Quando você foi para Tóquio…

—Eu sumi, eu sei – o moreno completou irritado com aquela conversa – Até que nove meses atrás Fay entrou em contato com vocês e disse que eu sofri um acidente, fiquei um mês de coma e quando acordei não lembrava os últimos quatro anos e meio que passei aqui. Eu sei disso.

—Ele pagou sua conta no hospital e cuidou de você desde então…

—Eu não pedi isso. Não quero caridade, ainda mais vinda dele. Eu posso me virar muito bem sozinho.

—Kurogane…

—Eu tenho que ir.

E desligou antes que a garota reclamasse. Sua cabeça latejava e o dia mal tinha começado, aquela semana prometia ser um inferno.

No hospital ele não teve que esperar muito, logo estava em frente ao seu neurologista, um homem que parecia jovem, mas tinha olhos sábios demais que desmentiam sua pouca idade. Kurogane não tinha certeza se gostava do cara, o médico tinha um jeito estranho de agir, como se soubesse a verdade sobre tudo e não fosse contar a ninguém.

—E suas memórias? Conseguiu lembrar alguma coisa? – ele pediu antes de liberar seu paciente.

—Nada novo – Kurogane resmungou frustrado.

—Na última consulta você contou que teve sonhos repetidos relacionados com as cores vermelha, azul e roxa. Eles terminaram?

—Não, mas ainda são muito confusos. Às vezes há muito branco e então essas cores surgem, outras vezes começa só com vermelho e azul, depois elas se misturam e aparece a cor roxa e ela toma a forma de olhos.

—E não tem significado nenhum para você, nenhuma lembrança associada?

—Nada.

O médico anotou a informação, um olhar cansado assumindo sua expressão.

—Você ainda pretende se mudar no próximo mês?

—Sim. Já paguei o que devia para o cara que mora comigo. Assim que puder me mudo.

—Você parece ter uma aversão natural por ele – o médico observou revendo algumas anotações – Não deveria pesquisar mais a fundo por que sente tanta repulsa por esse rapaz?

—Não preciso. É impossível ficar perto do Fay e não odiá-lo em seguida. Tem mais alguma pergunta? Eu ainda tenho que ir para meu trabalho.

O neurologista o dispensou, vendo o moreno sair da sala com seu passo duro e sua expressão irritada, assim que se viu só, o doutor abriu uma gaveta de sua mesa e retirou o resto do prontuário de seu paciente, relendo as informações com cuidado e pesar.

Nome: Kurogane Yoou Suwa

Idade: 25 anos

Responsável: Fay D. Fluorita (namorado)

Endereço…

O médico se sentiu impotente. Há nove meses um rapaz loiro entrou em seu consultório desesperado, procurando pelo renomado neurologista e implorando para que ele aceitasse e acompanhasse Kurogane Suwa. O homem tinha sofrido um acidente resultando em sérios traumatismos cranianos, por puro milagre sobrevivera à cirurgia e por um evento extraordinário, após um mês em absoluto estado vegetativo, acordou. Sem se lembrar de nada.

Na época o médico achou melhor não forçar as memórias do moreno, então pediu que o loiro tivesse paciência e o deixasse lembrar por conta própria o que sua mente tinha deixado para trás. Ele acreditava que Kurogane lembraria, e mesmo que não se lembrasse, que ele retomaria sua vida com o passar do tempo, incluindo seu relacionamento. Fay contou que eles tinham uma relação estável há quatro anos e num tempo em que a maior parte dos relacionamentos parecia ser descartável, quatro anos juntos, dividindo o mesmo teto e criando planos para o futuro deveria significar alguma coisa.

—Então por que você não percebe o que ele significa para você? – o doutor perguntou para si mesmo.

Não houve resposta. Com pesar ele tomou o telefone, precisava informar Fluorita sobre a consulta.

x

xx

xxx

Quando Fay desligou o celular precisou de todo seu autocontrole para parar de tremer. O pincel em suas mãos caiu no chão, manchando o jornal com azul, a tela à sua frente estava quase pronta, faltava apenas alguns retoques na paisagem de fundo e terminar a cor dos olhos, o da direita estava pronto, um roxo que misturava a força do vermelho com a suavidade de um azul alegre e calmo, o da esquerda era só um borrão rubi.

Estava no estúdio acima da cafeteria, um lugar que tinha se tornado seu porto seguro nos últimos meses, quase como uma segunda casa, as paredes estavam cheias de telas, prateleiras enxovalhadas com porta retratos e pequenos presentes que acumulara durante o tempo, uma caixinha de veludo repousava entre um gatinho de pelúcia e um cristal de neve dentro de uma bola. Duas alianças douradas descansavam dentro dela.

Fay enterrou a cabeça nas mãos, lágrimas silenciosas escorrendo por seu rosto pálido e cansado, ele já não sabia mais o que fazer, conviver com o ódio diário de Kurogane o machucava mais do que ele podia suportar, e mesmo que nunca tivesse erguido a mão para bater em Fay, episódios como o daquela manhã estavam cada vez mais frequentes.

E o loiro sabia que cada objeto lançado na parede era só a ponta do iceberg do ódio que morava no coração do moreno. Manter o sorriso estava cada vez mais difícil, sempre que ele via Kurogane, Fay queria chorar e gritar com o homem até que ele se lembrasse de alguma coisa. Qualquer coisa.

Mais uma vez ele se culpou, se tivesse ignorado o conselho do médico e sido sincero desde o começo, se ele tivesse dito a verdade quando Kurogane perguntou quem era ele – uma lembrança amarga que assombrava suas noites.

Agora era tarde. Kurogane estava criando uma vida separada da dele, com outros planos e outras pessoas como a garota com quem ele saía aos fins de semana, uma menina chamada Souma que parecia mais um moleque do que uma dama.

—Fay-san?

A voz delicada chamou sua atenção, se livrando das últimas lágrimas ele deu o melhor sorriu que conseguiu para a garotinha na porta. Sakura se aproximou devagar, um prato com biscoitos de chocolate recém assados nas mãos.

—Yukito-kun pediu que eu trouxesse estes para você – a menina informou – É uma nova receita.

—Obrigado, Hime.

A garotinha corou com o apelido, tinha sido Shoran, outro garoto que trabalhava com eles na cafeteria, que arrumara aquela forma doce de chamar a menina e como era um apelido tão encantador, logo se tornou a forma oficial de se dirigir a Sakura.

—Touya já voltou? – Fay pediu provando um biscoito.

—Sim, mas já saiu para terminar as novas entregas. Shoran já cuidou da louça e está atendendo os clientes enquanto estou aqui, e Yukito-kun está na cozinha.

—Eu não sei o que faria sem vocês – ele admitiu acariciando os cabelos castanhos da garota – Eu já vou descer, obrigado pelos biscoitos, diga ao Yukito que a nova receita é incrível.

Ela se atreveu a dar um pequeno beijo na testa do loiro antes de disparar para fora. O gesto trouxe o primeiro sorriso sincero para o rosto delicado e pálido em dias. Fay dedicou o último olhar para o quadro, ele ainda conseguia ouvir a voz baixa e suave de Kurogane perguntar como seria uma criança que fosse a mistura perfeita dos dois. Tinha sido um pouco depois que ele se ajoelhara e pedira a mão de Fay em casamento.

Aquela pintura era o que mais se aproximava da resposta que ele queria dar para o moreno, um garotinho com cabelos negros e algumas mechas douradas quando encontravam o sol, pele morena e feições delicadas, olhos roxos…

Num ato desesperado ele lançou a tela no chão vendo o quadro se partir. Não importava que ele tivesse a resposta, Kurogane não estava mais interessado naquela pergunta.

x

xx

xxx

Souma aceitou mais um drink, um sorriso bêbado brilhava em sua face. Kurogane estava mais composto, ele tinha uma tolerância a álcool fantástica.

—Por que não terminamos essa noite na minha casa – a mulher ofereceu.

—Eu tenho que ir. Prometi que levaria o dinheiro do aluguel hoje – Kurogane respondeu mais interessado na bebida a sua frente do que naquela mulher.

—Eu tenho certeza que ele vai arrumar uma desculpa para seu inquilino, além disso, o loirinho nunca briga com você, não importa o que você faça. Vamos lá, a gente pode se divertir um pouco…

—Hoje não.

Não é que Souma não fosse uma garota legal, de todas com quem ele saíra até aquele dia ela parecia a mais certa para ele, mas mesmo assim… Kurogane não conseguia colocar o dedo na ferida, tudo o que ele sabia é que nunca parecia o bastante, sempre faltava algo, um vazio que nenhum corpo e nenhuma cama conseguia preencher.

—Não seja tão chato, Kurogane – ela provocou derrubando um pouco de vodka no balcão, e então começou a rir – Kuro-boriiiiing.

Seu coração perdeu uma batida.

—Do que me chamou?

—Kuro-boriiing, Kuro-chato, Kuro-responsável demais para atrasar o aluguel, Kuro…

“Kuro-chan”.

Kurogane levou as duas mãos na cabeça, apertando com força para suprimir a dor lancinante que aparecera do nada.

—Kuro-tonto, Kuro-idiota…

“Kuro-puu”.

O moreno ficou de pé derrubando o banquinho no chão, sua cabeça parecia explodir e implodir sem parar.

—Kuro-sou o cara perfeito que nunca fica bêbado, Kuro…

“Kuro-meow”

Ele abandonou a mulher no bar, correndo para fora, ele não podia ficar ali, se ficasse, aquela dor…

—Kurogane!

“Kuro-tan”.

Chovia do lado de fora, ele deu alguns passos antes de cair no chão e vomitar. O mundo parecia queimar diante de seus olhos. Um pulsar particularmente difícil da dor abriu finalmente a comporta que protegia as lembranças que ele tinha perdido.

xx

—Hey, quem é aquele cara?

Touya olhou ao redor, sorrindo ao ver o objeto da atenção de seu novo colega.

—Aquele é o Fay, ele é o dono do café junto com o Yuki.

—Yukito é seu namorado? – Kurogane pediu para ter certeza.

—Sim, ele é o de óculos. Os dois são grandes amigos. Se quiser eu posso te apresentar…

—Não precisa.

Mas ele não conseguiu olhar para outro lugar que não o sorriso doce que o loiro apresentava naquela noite.

 xx

—Oi.

Fay pulou, assustado, estava perdido desenhando no seu bloquinho e nem percebera quando o moreno se aproximara.

—Olá. Você deve ser o Kuro-tan – Fay cumprimentou sorrindo.

—É Kurogane.

—Foi o que eu disse.

 xx

Um Yukito sério interrompeu a caminhada do moreno, fúria limpa e absoluta irradiando por seu corpo.

—Você – chamou com raiva.

Kurogane recuou, ele nunca imaginara que o menino pudesse ser tão assustador.

—Se vai se aproximar de Fay, eu preciso te informar que ele não está sozinho. Fay acabou de perder o irmão, ele não tem os pais, entretanto não significa que ninguém se importa com ele. Se machucar o Fay, eu vou ter certeza que você vai se machucar muito mais.

Touya não tentou acalmar o namorado, há muito tempo ele tinha entendido que Fay e Yuki eram um conjunto inseparável, o mais sensato era ficar longe e nunca, jamais, nem que fosse preciso morrer para evitar,  alguém deveria irritar ou ferir qualquer um dos dois. E com o tempo Kurogane aprendeu isso também.

 xx

—Está me chamando para um encontro, Kuro-chi? – o loiro provocou zombando abertamente do moreno.

—Sim.

A resposta sincera e simples o espantou. Os olhos azuis perderam todo o tom de brincadeira, tornando-se adoráveis e delicados.

—Eu adoraria.

 xx

Estavam parados na porta do apartamento do loiro, a noite tinha sido perfeita de um jeito que nenhum deles acharia possível. Kurogane se aproximou com lentidão, depositou um beijo casto na testa do loiro, suspirando quando o cheiro de chocolate e bolinhos chegou ao seu olfato.

—Tudo bem se a gente sair amanhã de novo? – o moreno pediu.

—Eu adoraria.

 xx

—Vai Kuro-tan! Não deixe ele vencer!

—Não ouse perder para o Suwa, Touya! Eu apostei minha melhor receita nessa corrida.

Os jogadores riram com o entusiasmo de seus namorados, passava das duas da manhã, o dia seria cheio para todos os quatro, mesmo assim lá estavam eles tentando zerar o último jogo de corrida que Touya comprara. Naquele dia Kurogane perdeu o jogo, mas ganhou um convite para passar o resto da madrugada no apartamento de Fay. E uma semana depois para morar ali.

 xx

—Podíamos fazer uma viagem. O que acha?

Kurogane sugeriu vendo o namorado brincar com os dedos de sua mão. Fay se aconchegou melhor no corpo moreno, descansando a cabeça de forma que era possível ouvir o coração de Kurogane bater.

—Eu adoraria. Gostaria de conhecer sua família. Há quantos anos não volta pra casa?

—Três. Se quiser, posso te levar para conhecer meus pais.

—Será que eles vão aceitar… A gente, Kuro-puu?

Vermelho reconheceu azul.

—Você me faz feliz. Com você eu achei meu lugar no mundo. Você é minha vida agora, então é claro que eles vão te aceitar.

 xx

—Oi Yui, eu vim mais cedo essa semana.

Kurogane não interrompeu o diálogo do loiro com o túmulo de seu irmão, ele deixou que Fay falasse tudo o que queria, contando sobre a semana, a cafeteria, um novo bolo que ele e Yukito fizeram e que tinha sido um sucesso. E quando foi a vez dele, Kurogane passou um braço pela cintura fina do loiro, trazendo-o para junto de si.

—Eu estou cuidando bem desse idiota.

E Fay sorriu.

 xx

—Eu te amo.

Kurogane piscou, surpreso, era a primeira vez na vida que ele ouvia aquelas palavras vindas do loiro. Ele sabia que Fay gostava dele, eles não estariam juntos há quase quatro anos se não fosse assim, porém ouvir ele dizer aquilo…

—Eu também – respondeu.

Fay suspirou, relaxando. Dizer aquelas três palavras foi a coisa mais difícil de fazer em sua vida. Mas por Kurogane, valia a pena.

 xx

—Kuro-chi, eu vou morrer…

—Você só está gripado – Kurogane reclamou se divertindo com o exagero do loiro.

—Não, eu sinto que este é o meu fim, está ficando tudo escuro. Kuro-chi, eu estou partindo, eu consigo ver a luz…

Kurogane não conseguiu segurar mais a risada, sem se importar que aquilo faria seu namorado já mimado ainda mais manhoso, ele voltou para a cama, abraçando o garoto loiro e enchendo seu rosto de beijos.

—Então não olhe para a luz, olhe para mim.

—Algo igualmente perigoso – Fay constatou fitando os olhos de sangue.

—É só não esquecer de respirar.

E o atacou com mais beijos.

 xx

—Cara, calma. Você sabe que ele não vai dizer não, então relaxe.

—Falou o cara que passou o dia inteiro vomitando antes de ter coragem de pedir ao Yukito para morar com você.

Touya não viu como argumentar. Exasperado, ele pegou a caixinha de veludo e a enterrou na mão direita de seu amigo.

—Vá lá, finja que você é um homem de verdade e peça a mão dele.

 xx

—Você aceita dividir seu amor e seus sonhos comigo, para sempre?

—Eu adoraria!

E o loiro se jogou em cima do homem ajoelhado a sua frente, lágrimas de felicidade correndo por seu rosto.

xx

Ofegando, Kurogane tropeçou pela calçada, ele precisava voltar para o apartamento.

xx

Olhos de sangue se abriram, estranhando a claridade. Um rosto de anjo apareceu, cabelos dourados com uma franja cobrindo parcialmente olhos azuis.

—Você acordou – a voz suspirou emocionada.

O moreno franziu a testa, confuso.

—Quem é você?

 xx

—Isso não é meu!

Kurogane estendeu uma camiseta azul clara para o loiro, irritado.

—É minha – Fay informou com um sorriso falso.

—Estava no meu quarto.

—Devo ter deixado lá por engano.

—Não misture suas coisas com as minhas novamente.

 xx

—Ele é um cara meio estranho, vive com um sorriso idiota e nunca responde minhas perguntas – Kurogane reclamou informando pelo celular como era o outro morador – E ainda não me disse de onde tirou dinheiro para pagar o hospital. Ele nem se quer tem uma família ou alguém que goste dele, Tomoyo.

Um livro caiu no chão chamando a atenção de Kurogane, na porta, com o rosto numa máscara ilegível, o loiro estava parado. Ele pediu desculpas, pegou o livro e atravessou a sala, indo em direção a cozinha.

 xx

—Você pode pagar as contas este mês? O café está totalmente lotado esta semana.

—Tá. Hey, se não pode fazer isso direito, não devia ter se oferecido.

Fay encarou Kurogane por alguns segundos, ele parecia prestes a dizer algo, mas mudou de ideia no último momento.

—Me desculpe, não vai acontecer de novo.

 xx

O moreno chegou mais cedo naquele dia, ele entrou silenciosamente, a cabeça doía e tudo o que ele queria era um banho quente e dormir até o dia seguinte. Estava se dirigindo para o seu quarto quando ouviu.

—Yuki, eu não consigo levar isso adiante… Ele não é ele… Eu sei, mas acho que isso nunca vai acontecer, eu o perdi…

Kurogane teve a decência de correr para seu quarto, a última coisa que ele queria ouvir era Fay choramingando por amor.

 xx

Fay dormia na sala, um cardápio quase pronto pousado entre sua mão e o chão. A visão parecia resplandecer no lugar pouco iluminado e de alguma forma a imagem fez Kurogane perder a respiração. O moreno se aproximou sem pensar, seus dedos tocando o cabelo dourado de forma instintiva.

—…-puu – Fay murmurou, suspirando com alívio.

Kurogane recuou, uma fúria gélida tomando seu ser. Ele já imaginara que o loiro tinha alguém, havia algo em seu olhar que denotava uma saudade que só o amor podia causar. Ele não tinha ideia quem era Puu, ou se isso era mesmo o nome de uma pessoa, mas sentiu raiva dela. E depois ficou ainda mais irritado por não saber por que estava com raiva. Aquela foi a primeira noite que ele saiu para beber e não voltou.

 xx

Uma risada macia ecoou no apartamento. Um Kurogane de ressaca abriu os olhos com irritação, sua cabeça doía tremendamente e aquele som só estava piorando as coisas, sendo o homem prático que era, decidiu ir direto a fonte de seu desconforto, o que o levou até a porta de entrada onde encontrou seu colega de apartamento dando um último abraço num garoto igualmente pálido de cabelos brancos que sorria para Fay com facilidade.

—Até amanhã – o intruso falou antes de desaparecer do campo de visão do moreno.

Naquele dia Kurogane jogou um copo de vidro na parede pela primeira vez.

 xx

—Você vai sair de novo?

—O que te importa? Que eu saiba, não te devo satisfação alguma.

E bateu a porta com força, ignorando o loiro e o jantar requintado que havia sido feito para os dois.

 xx

O cheiro de tinta aquarela impregnava o apartamento, o moreno arquivou a informação com cuidado, ele tinha percebido que sempre que estava estressado Fay se trancaria em seu quarto minúsculo e pintaria sem parar, só aparecendo para fazer o jantar. Era engraçado, o quarto do garoto mais parecia um ateliê do que um lugar para dormir, ainda mais quando comparado com o quarto de Kurogane, era pequeno, muito iluminado e cheio de manchas de tinta.

—Hey, o cheiro de tinta está em todo o apartamento. Será que você não pode arrumar outro lugar para fazer essas coisas? – Kurogane reclamou parado no corredor.

Não houve resposta, mas uma semana depois não havia mais cheiro de tinta.

 xx

—Você não precisa mudar de apartamento. Aqui tem espaço para nós dois…

—Eu não quero dividir minha casa com você – o moreno cortou com frieza – Na verdade eu não quero dividir nada com você.

A máscara escorregou, o sorriso caiu e tudo o que restou foi alguém quebrado. Antes que Kurogane compreendesse a crueldade por trás de suas palavras, Fay lhe deu as costas e se trancou no quarto.

xx

Ele abriu a porta do apartamento com violência, pouco se lixando se o barulho iria despertar os vizinhos ou em retirar o casaco completamente encharcado. Tropeçando na escuridão ele fez o caminho que tantas vezes fizera, transtornado. A última porta não estava fechada, a luz estava ligada e um homem loiro terminava de guardar a última muda de roupa na mala, seu quarto praticamente vazio.

—Estou saindo – Fay avisou sem se virar – Deixei o aluguel em cima da mesa, junto com um adiantamento para o próximo mês. Vou morar no café até achar um apartamento só para mim, então pode ficar a vontade…

Suas palavras foram bruscamente interrompidas por um par de braços que o abraçou com força, suas costas molhando quase que instantaneamente.

—Você não vai a lugar nenhum. Nenhum de nós vai. Idiota.

Como se uma corrente elétrica passasse por seu corpo, Fay se separou do moreno, descrença preenchendo sua face.

—Ku… Kuro…

—Kuro-chan, Kuro-tan, Kuro-puu, o que você quiser. Só não diga meu nome, eu não quero nunca mais ouvir você me chamar de Kurogane.

—Você lembrou – Fay chorou ainda com medo de acreditar.

—Como se eu pudesse esquecer para sempre de você – e então o homem caiu de joelhos no chão, os braços ao redor da cintura fina do loiro, seu rosto afundando no abdômen macio – Me perdoe… Por favor, me perdoe por esses dias, por ter te machucado. Me perdoe, Fay.

As lágrimas vinham com abundância no rosto pálido, as mãos do loiro caíram no cabelo negro, puxando delicadamente cada ponta rebelde e matando o desejo que ele tivera de fazer aquilo naqueles últimos meses.

—Kuro-tan – Fay choramingou.

—Fique comigo, Fay – Kurogane implorou, ele não suportaria um dia a mais longe do loiro.

Eles se encararam, o céu se afundando em sangue. O moreno prendeu a respiração aguardando uma resposta. Que veio com uma nova onda de lágrimas e um sorriso pequeno e absurdamente bonito.

—Eu adoraria.

x

xx

xxx

—Watanuki?

—…

—Watanuki, o que foi?

—Dói…

—…

—A dor do Fay… Quando ele quebrou aquele quadro, ele achou que estava tudo perdido.

—E estaria, se Kurogane não tivesse lembrado naquela noite, provavelmente ele jamais veria Fay de novo. Agora você entende o preço de esquecer? Mesmo para Kurogane havia um preço, ele nunca conseguiu achar alguém para ficar no lugar de Fay.

—…

—Você ainda deseja esquecer o Doumeki-kun? Você consegue lidar com o vazio que vai ficar quando ele não fizer mais parte de sua vida?

—Eu… Eu não sei… Eu… Não quero.

—Ah, Watanuki. Não ache que ele é melhor ou pior que você. Só entenda que quando você acha que ele está se exibindo, na verdade ele está desesperado tentando te proteger. Então por que não tenta retribuir este cuidado?

—Eu não posso. Eu mal sei como me proteger. Mesmo a comida que eu preparo não parece ser um preço justo…

—Doumeki-kun não precisa que cozinhe para ele. Ele precisa que você jamais se esqueça quem ele é e o que ele está disposto a fazer por você. Você pode fazer isso?

—…

—Watanuki?

—Sim. Eu posso.

—Então está na hora de voltar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Então, eu fiquei um tempo sem postar, estava desanimada porque não sei se alguém está acompanhando a história, se estão gostando ou não :(
Mas eu realmente amo KuroFay, então decidi postar até o fim. Então, se você estiver seguindo a história e quiser me dar um i, eu vou ser uma pessoa muito feliz ^^



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Você é meu mundo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.