Vollfeit - Diellors e ihenes escrita por Kaonashi


Capítulo 9
Capítulo 9




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Capítulo 9

Consequência

 

Sua visão estava turva quando abandonou a arena. Foi cambaleando até a área das tendas, guiada pela pouca energia que tinha e por instinto. Suas pernas e diversas áreas do corpo doíam, fazendo alguns músculos tremerem como se estivessem sendo atingidos por chuva no inverno. Sentia seu sangue escorrer dos novos ferimentos que adquirira na última batalha, espalhados pelas coxas, braços e tronco. No entanto, não sentia mais nada além da dor física. Estava bem, toda a raiva fora extravasada, um pouco a cada luta. Não queria, afinal, provar algo a alguém - só queria se livrar dos sentimentos negativos ganhos naquela manhã, somados aos já existentes.

Neri se jogou na grama da floresta de antes e murmurou baixo, protestando contra as diversas dores, musculares a mais profundas, que assolavam seu corpo. Era uma consequência dos movimentos violentos que usara, mas não ligava. Não ligava para mais nada agora.

Antes que pudesse dormir ali mesmo, uma presença se aproximou.

— Quanto mais consegue andar? - Belchior a questionou. Sentia seu olhar através da escuridão.

— Ficarei aqui mesmo - disse lentamente, tentando poupar energia.

— E perder o resto de sangue que tem aí? Parece certo - respondeu com sarcasmo e, agachando-se, recolheu-a. - Fique quieta e esconda a máscara - cortou a tentativa da garota de se opor.

Sem vontade - e força - para debater, apenas retirou a máscara e a colocou em sua barriga, sob o manto. Escondeu o rosto com o capuz, não queria ouvir sermões extras caso Belchior visse seu estado mais profundamente - ela mesmo não precisava se olhar no espelho para saber como estava. O garoto a levou entre a multidão do festival até o castelo do Sol, sempre atento para que não chamassem muita atenção. Os poucos transeuntes que passavam e os encaravam falavam coisas sobre beber em excesso ou aproveitar o festival moderadamente. Neste último, Belchior não deixou de bufar com ironia.

Neri tentava controlar a sensação estranha que a tomou. Sentia seu coração pesar no peito e sua barriga espalhar arrepios para o resto do corpo. Durante o caminho tentou focar em algum pensamento para afastar aquilo,  imaginando se o amigo havia se fortalecido com os recentes treinamentos para que a carregasse com facilidade. Parecia pouco cansado quando chegaram na torre de quartos, entrando na antiga casa dos Arkan.

— É aqui que você está ficando, não é? - perguntou enquanto a colocava em sua cama.

— Aldith te contou? - disse, fazendo uma careta de dor.

O jovem assentiu com a cabeça.

— Não ouse se mexer, vou chamar Rowena - e saiu.

Neri ouviu a porta principal bater e logo o silêncio reinou. Preparando-se mentalmente para o que veria, tirou o manto com certo esforço e subiu sua blusa de linho bege até o tórax. Um corte enfeitava de sua cintura até mais três centímetros, indo em direção ao umbigo. Neri conhecia poucas técnicas de cura através do ar, mas estava fraca demais para sequer tentar usá-las. Continuou analisando seus ferimentos, contando mais de quinze cortes, arranhões e hematomas espalhados. Não era uma visão muito agradável. Sorriu internamente. Aquela dor afastaria qualquer outra por um tempo, ou se esforçaria para que aquilo acontecesse.

Belchior voltou mais tarde. Estava acompanhando por uma das médicas do castelo, que costumava tratar dos príncipes quando necessário.

— Ele me contou que você batalhou a tarde toda - a mulher alta, sem muitas curvas e de cabelo quase todo grisalho, disse. - Deixe-me ver o estrago.

Belchior ficou esperando na sala enquanto Rowena cuidava dela, limpando ferimentos e fechando o mais profundo, em sua barriga, com uma linha escura. A presença da agulha indo e vindo por cima de sua pele não lhe agradava, preferia deixar o corte daquele jeito ao ver o objeto pontiagudo.

No fim do tratamento estava com roupas limpas e quase sem qualquer indício de sangue, com exceção dos arranhões nas palmas de suas mãos.

— Descanse por, no mínimo, três dias antes de retornar aos treinos - falou Rowena enquanto guardava todas as suas coisas médicas numa bolsa de couro. - E tome os remédios que lhe mandarei amanhã. Até espiões como você precisam disso, sabia? Voltarei depois para algumas sessões de regeneração.

Desejando um “bom repouso de três dias”, saiu mancando - sua perna esquerda nunca fora boa. Belchior voltou ao quarto após agradecê-la e trancar a porta.

— Trancou a porta? - Neri o questionou com um sorriso de diversão; estava um tanto surpresa ao perceber o estalo causado pela chave.

— Assim ouvirei caso tente sair - disse naturalmente.

— Irá criar uma prisão de fogo caso eu tente?

— Isso seria só uma parte.

— Ainda posso usar o ar, Belch. Você não ouviria nada.

— Mas eu a veria. Você está cansada, mas eu posso ficar a noite toda acordado.

— Você não deveria estar no festival, aproveitando o torneio e boas companhias? -  com a última frase se lembrou da nova criada, não conseguindo bloquear a decepção que a atingiu.

— Você não deveria estar vigiando Diellor? Mas sabe, nas ruas, não pelo castelo.

— Vá se divertir - respondeu um tanto ressentida. O amigo tinha razão, mas ele não imaginava o que a fizera extravasar no torneio.

— Te impedir de voltar a treinar e se matar é mais empolgante - respondeu com indiferença, fazendo-a suspirar. Não entendia o porquê de ele continuar ali.

— Estava com os rapazes?

— Sim. Jona, Alex, Lorodas e Elluena foram.

Assentiu com a cabeça, imaginando se o amigo os havia avisado antes de procurá-la na floresta. No silêncio que cresceu no cômodo, visualizou Elluena segurando o braço de Belchior, animada por estar ali prestes a assistir o torneio - ou talvez por isso -, enquanto o amigo se sentia sortudo e orgulhoso por tê-la como acompanhante. Bufou baixinho, encostando a cabeça nas almofadas da cama e desviando os olhos para a janela à esquerda, onde uma cortina entreaberta deixava um filete da luz lunar invadir o cômodo. De repente a cortina se abriu mais, revelando uma lua brilhante em meio a poucas nuvens. As estrelas, espalhadas ao seu redor, pareciam competir com o brilho. Seria ela uma estrela ou a lua?

— Comporte-se como uma pessoa responsável e não gaste a pouca energia que restou abrindo cortinas - Belchior se aproximou, dando-lhe um piparote no topo do crânio. - Peça quando quiser algo.

— Quero um suco de goiaba e batatas assadas - disse de imediato, sorrindo como provocação.

— É claro, comida é no que você pensa - respondeu com um sorriso torto.

— Comidas ajudam na recuperação.

— Sim, comidas como cenouras, espinafre e frutas.

— Então você pode trazer o suco - sorriu, vitoriosa.

Belchior suspirou, provavelmente pela infantilidade dela. Deu as costas e se retirou, ficando ausente por algum tempo. Neri ficou deitada, não tinha muitas opções. Antes que pudesse fechar os olhos e entrar em um bom sono, a voz de Kyprios veio da janela.

— Como você está? - questionou, seu corpo entrando agilmente pela abertura na parede.

Seu coração disparou no início, tomada pelo susto. Suas sobrancelhas franziram por um instante, lembrando-se do quanto Kyprios era mais treinado que ela. Olhou para ele, parado ali perto. A segunda vez que o via no dia e já preferia dar de cara com um urso faminto.

— Poderia estar pior - disse ao relaxar.

— Iria dizer para começarmos o treino amanhã, mas deixemos para o fim do festival. Estará disposta até lá?

— Sim.

O garoto de cabelos brancos assentiu, parecia não saber mais o que falar.

— Sinto muito pelas coisas que aconteceram - falou meio sem jeito. - Direi a Auren que você se machucou enquanto treinávamos - e saltou para a beira da janela, desaparecendo.

Por que não se teleporta?, pensou ao se ver sozinha outra vez. Bem, talvez ele esteja evitando perto de mim… Talvez esteja tentando me ajudar também…? Abandonou o pensamento e tentou cochilar, mas sua cabeça não queria mais descansar naquele momento, repassando as melhores lutas daquele torneio misturadas a partes aleatórias do dia. Então criou uma pequena esfera de ar e ficou jogando-a de uma mão para a outra, brincando até que o tédio lhe atacasse novamente.

Já tinha desistido da esfera e criado sombras em formas de árvores através de suas mãos quando Belchior chegou. Carregava um saco de papel bege e uma garrafa média com líquido laranja. Não pareciam ter vindo da cozinha real.

— Suco de laranja? - Neri questionou enquanto Belchior pousava as coisas em sua cama.

— Disseram que é bom pra pessoas que precisam se recuperar de uma tentativa de suicídio - respondeu, concordando com a cabeça.

A espiã abriu o saco, encontrando uma porção de batatas assadas e legumes cozidos. O cheiro era incrível - ou talvez fosse só sua fome - e o vapor quente que subia com ele a deixava ainda mais faminta.

— Obrigada, Belch - agradeceu com um sorriso e iniciou suas refeições atrasadas do dia.

Dentro de sua mente, imaginava se Aldith tinha impedido o amigo de trazer comida e, consequentemente, feito-o sair e comprar em alguma barraca do festival. Suspirou, torcendo para que Aldith - nem ninguém além de Kyprios - não tivesse descoberto sobre seu estado atual. Olhou para Belchior, oferecendo as batatas e pensando no tempo que roubara dele.

Mas não prejudicaria aquele momento, as batatas e o odor hipnotizante que emanavam seriam seu foco até que dormisse.

 

(...)

 

Seus olhos pareciam ter se fechado por pouco tempo e, seus sonhos, durado menos de dois parágrafos de uma história. Neri se mexeu levemente na cama, percebendo o silêncio que se instalara no castelo. Talvez, então, tivesse dormido mais do que imaginava e acordado no meio da madrugada, quando os festeiros do festival já estavam em suas casas e os moradores do castelo aquietados.

Abriu os olhos e, lentamente, colocou-se de pé. As dores voltaram a pulsar, desejando que não tivesse se movimentado. No entanto também ansiava por um banho após aquela tarde. Foi até uma segunda porta no quarto, que o conectava a um cômodo menor, e a abriu.

— Neri… - Belchior logo apareceu, encarando-a sonolento da soleira.

— Pensei em tomar banho. Não consigo dormir.

— Certo. Volte pra cama, te aviso quando a água estiver aquecida.

— Fiquei deitada por muito tempo, não consigo mais - falou em um tom de choramingo.

— Então fique sentada - rebateu.

— Quem vai ficar sent..

Foi interrompida pelo amigo, que se aproximou e tampou sua boca com a mão direita e a apertou, pelo ombro, com a restante. Foi guiada de volta para a cama e, de lá, ficou assistindo-o abrir uma tampa no meio da parede, logo acima da banheira de pedra clara, e cair uma corrente de água que parecia não acabar. Após um tempo o jardineiro fechou o repositório, sempre preenchido pelos dominadores do elemento - que trabalhavam em Diellor especialmente para o caso -, e o observou esquentar o líquido com uma nuvem grande de fogo, cobrindo toda a extensão da banheira e dando voltas na mesma. Aos poucos o calor criou uma fumaça fina sobre a água, avisando que esta havia alcançado uma temperatura boa.

— Precisa de ajuda para chegar lá? - disse gentilmente, saindo do banheiro.

Neri o encarou e torceu os lábios, sabia bem a intenção do garoto de jogá-la, sem gentileza alguma, na banheira. Levantou-se e, após Belchior ir para a sala, entrou no cômodo, encostando a porta para que a temperatura ali continuasse quente. A única janela da área tinha as vidraças amareladas embaçadas, com gotículas enfeitando-as magicamente. Despiu-se, tentando não murmurar de dor a cada movimento e tecido raspando em seus cortes, e se colocou sob a água. Dobrou-se na banheira, deixando até o nível de sua boca submersa. Seus machucados instantaneamente arderam, fazendo-na cerrar seus olhos e apertar, com força, a beirada da banheira devido a dor excruciante que tomou cada parte de si. Reclamou baixinho, ansiosa para que aquele momento passasse ou desistisse, retirando-se da banheira. Porém permaneceu lá, precisava daquele banho. Um minuto depois o conforto veio, com a água quente se transformando num manto macio e delicado sobre seu corpo. Neri fechou os olhos, sentindo o ar aquecido acertar suas bochechas. Seus músculos relaxaram, e assim tentou levar a boa sensação até sua mente. Bloqueou qualquer pensamento sobre aquele primeiro dia de festival, procurando memórias boas para se concentrar e manter o momento de paz. Lembrou-se de sua primeira tentativa de torta de frango, que saíra um tanto sem sal, de sua primeira apresentação de teatro, onde tivera que encenar a avó de Belchior, que era um jovem fazendeiro, e de uma festa tradicional de Aladoana, um reino pequeno que visitara há mais de três anos. Lá dançou no meio de diversas crianças com roupas coloridas, que lhe deram peças parecidas para que não se sentisse ignorada ou diferente. Sorriu internamente, repassando em sua mente a dança e a música alegre, feita com flautas e harpas no meio da praça, daquele dia.

Ficou ali, domando seus próprios pensamentos, até a água começar a esfriar demasiadamente. Mergulhou a cabeça pela última vez e então abandonou a banheira, sentindo uma leve tristeza por deixar aquele conforto. Seu corpo estremeceu pelo frio temporário que lhe atingiu, agradecendo quando já estava seca e vestida outra vez. Caminhou até a sala, os cabelos ainda pingando um pouco em volta da toalha. Lá encontrou Belchior remexendo algo na parte funda da lareira.

— Ainda tinha lenha aqui? - questionou feliz ao ver os tocos de madeira.

— Talvez tenham reposto aqui por engano - explicou após concordar com a cabeça.

Neri se aproximou, sentando-se cuidadosamente no sofá em frente à lareira. O jardineiro parou de ajeitar a lenha pouco depois, lançando uma bolinha de fogo na mesma e criando as primeiras fagulhas.

— Como se sente sem poder usar o ar pra secar seu cabelo? - perguntou, sentando-se ao seu lado.

— Desde que eu use o pouco que posso pra coisas mais úteis, não me sentirei mal.

— Coisas como abrir a janela ou espantar moscas? - arqueou a sobrancelha.

— Ah, um dia você saberá - proferiu, imaginando o que poderia aprontar com Belchior naquele estado.

O garoto suspirou e esticou os braços para ela.

— Irei secar, fique parada.

Neri o encarou, suspeita.

— Não me sacuda tão forte, esses cortes realmente doem - finalmente respondeu, pedindo chateada.

— Não farei isso.

E se aproximou, retirando a toalha mal enrolada em sua cabeça e passando-a por toda a extensão do cabelo. As mãos masculinas eram leves, enxugando com calma cada mecha. Neri começou a sentir os olhos pesados, a sequência de um banho quente e massagem em suas madeixas era mais relaxante do que poderia imaginar. Quando o cabelo passara do molhado para úmido, Belchior parou. Naquele ponto a madeira já crepitava alegre na lareira, tornando a sala ainda mais aconchegante - não se importava com o atual verão, sempre adoraria ver uma lareira acesa. O cheiro também era bom, fortalecendo a sensação positiva que preenchia a espiã mais que as dores. Talvez o vazio forçado fosse mais simpático que os sentimentos.

— Seu pai ficará preocupado se não avisar que está aqui - disse de repente.

— Ele entenderá que algo aconteceu - respondeu, mirando a lareira de pedras acinzentadas.

— Não comigo, mas com você. Vá avisá-lo, Belch - insistiu.

— Já deve estar dormindo, teve folga hoje, ou ontem - levantou-se, oferecendo uma mão. - E você, vá dormir também.

— Não estou com sono - suspirou.

— Em algum lugar você está. Pelo menos um pouco, depois de seu treino diferenciado.

— Talvez seja sua presença incomodando meu so… - e parou de falar.

— O quê? - Belchior esperou pacientemente por uma resposta rebelde como de costume. No entanto, nada tinha a ver com o que ouviu.

— Alguma coisa está acontecendo lá embaixo… - franziu o cenho, concentrando-se. - Tem pessoas batalhando lá.  

O jovem a encarou com confusão, piscando e provavelmente pensando se Neri estava sã ou se estava traumatizada pela tarde passada. Porém o que dizia era verdade, a metros deles sentia a presença de outros elementos conflitando contra pessoas. Neri automaticamente se levantou, mas o movimento repentino pareceu partir sua barriga em pedaços. Gemeu, sentindo outras partes do corpo protestarem. Droga… Sua imprudência no torneio agora a impedia de fazer algo realmente importante.

— Neri, fique quieta - Belchior também se levantara e segurava seus ombros. - Verei o que aconteceu, então volte pra cama e espere, entendeu?

Assentiu com a cabeça, atordoada pela dor e tentando se concentrar nas presenças incômodas que sentia de longe. Queria ela mesma ir e ajudar no que precisassem, mas nada poderia realmente fazer naquela situação. Reclamou outra vez e voltou ao sofá, esperando que Belchior não trouxesse notícias ruins.


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