Vollfeit - Diellors e ihenes escrita por Kaonashi


Capítulo 8
Capítulo 8


Notas iniciais do capítulo

O capítulo está um pouco (muito) grande dessa vez. Peço perdão, mas espero que gostem, auehae. Boa leitura, c:



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Capítulo 8

Lembranças perdidas

 

Neri não sabia apontar a melhor parte daquele primeiro dia do Festival Anual. As ruas estavam cheias de barris com ramos verdes e flores frescas, com bandeiras longas flutuando nas portas e telhados das construções e cordas coloridas, presas a papéis cortados em diversas formas, passando de um lado para o outro das casas. Era ainda mais enfeitado e alegre que a data onde comemoravam a fundação dos dois reinos. Enquanto caminhava de volta para o castelo de Diellor após mais um treino, deixou-se ouvir os sons melódicos que os trovadores tocavam entre os transeuntes, dançando animadamente com suas flautas e alaúdes. Algumas pessoas paravam para acompanhá-los e, por um momento, Neri sentiu vontade de se juntar à eles. No entanto, precisava almoçar e voltar rapidamente ao seu treinamento. Já estava, afinal, a mais de seis dias tentando teletransportar algo. Com certa tristeza repentina passou pelo amontoado em volta do trovador e continuou a caminhada, agradecendo mentalmente a Deus pelo céu azul e extremamente bonito que se apresentava naquele dia, tornando o festival ainda mais especial.

Quanto mais se aproximava do castelo, menos vozes e músicas ouvia, deixando a agitação que a vila encontrava naquela data para trás. Nos muros que cercavam a casa real cruzou os guardas, cumprimentando-os educadamente, e seguiu para a cozinha, onde Aldith e mais oito cozinheiros pareciam trabalhar sem descanso.

— Não ache que não estou vendo, Neri! - Aldith disse quando a garota passou, sem nada dizer, e alcançou alguns dos pratos com bolo do outro lado.

— Vocês estão ocupados, não quero atrapalhar - disse cinicamente, sorrindo.

— Esses aí são para vender no festival - falou. - Na verdade, esses todos. Pode ir saindo, precisa fazer seu almoço hoje!

— Tudo bem, Neri, você deve estar trabalhando bastante, pegue um - Lorodas, no canto da cozinha e com as mãos amassando uma pasta estranha, sorriu.

— Ele é só um ajudante aqui, portanto não tem autoridade alguma! - a mulher resmungou, fazendo-o piscar para Neri.

A espiã retornou o sorriso, apesar de ficar relativamente triste com a notícia do almoço. Na verdade, bastante triste.

“Venha até o quarto andar da torre leste, ala Leão”. De repente uma voz apareceu em sua mente, enchendo-a de pavor e confusão. Parecia a voz do mestre do ar. Senhor Auren…? “Sim, ande rápido e não seja notada. Você é uma espiã, não é?”. Neri assentiu com a cabeça, tentando ignorar o fato de que o gesto não fazia sentido. Esperando que ninguém tivesse visto e chamado-a mentalmente de doida, retirou-se e se dirigiu até o lugar citado, sempre notando presenças próximas perto de si.  “Ande até o fim do corredor e entre na porta da família Aten”. Seguiu a ordem e, instantes após entrar e fechar a porta, uma sensação de embrulhar o estômago a tomou. Fechou os olhos, recusando-se a ver os pontos brilhantes da primeira vez que fora teleportada, e tentou controlar sua respiração. Então sentiu seus joelhos caírem contra um solo frio e liso. Abriu os olhos, sem no entanto esquecer a dor que começou a assolar sua cabeça, e se viu numa sala pequena e de paredes marrons, sem qualquer janela ou porta aparente.

— Você está bem, querida? - a voz do rei de Ihene a atingiu.

Neri olhou para trás e se colocou de pé. Em sua frente, o rei de Ihene estava ao lado de Auren e um garoto de cabelos sem cor, curtos e bem distribuídos por todo o crânio. Neri nunca o havia visto antes, aumentando sua confusão enquanto fitava seus olhos escuros e distantes, tentando adivinhar quem era.

— Espero que possa me desculpar por isso, pequena Neri - Joseff continuou. - Precisávamos de um local escondido para lhe encontrar.

— Não há problemas, senhor - respondeu após um tempo.

— O que queremos dizer… Tem extrema importância, querida, e espero que entenda que você é a pessoa em que mais confiamos para seu cargo. Há coisas que você não sabe, assim como a maioria de nossos amigos no reino - deu um suspiro, parando brevemente sua fala. - Há tempos atrás… Quando Vollfeit tinha acabado de ser fundada, existiu um grupo de pessoas exilado por não possuir qualquer magia, qualquer controle de elemento. Elas juraram vingança, mas sumiram. Sumiram até pouco tempo atrás.

Neri mirava seu rei com atenção. Até aquele ponto parecia estar ouvindo uma história de fantasia como as tantas que encontrara nas bibliotecas na última semana. Porém, no fundo, um pressentimento negativo a acompanhava.

— Todos esses ataques às nossas crianças, os traidores e inimigos que prendemos...são provocações dessas pessoas… Devem ser gerações e mais gerações voltadas somente a vingança. Só sei disso, Neri, porque os reis anteriores passaram isso até chegar a mim e Jordan. Não pensávamos que, um dia, essas pessoas realmente aparecessem… E levassem a promessa de seus antepassados a sério.

“No começo achávamos que era algum reino menor tentando nos atacar por sermos um dos maiores da região, alguma revolta. Mas infelizmente pensamos errado. Antes de um dos prisioneiros perder a memória, ouvimos-no dizer que os fracos serão vingados, o sol e a lua se ocultarão como nós. Sabemos que isso também não pode ser nada, mas… Seria muita coincidência.”

Neri ouvia a tudo atentamente, tentando imaginar como aquela conversa terminaria. A cada frase, seu coração dava um pulo e seu sangue parecia gelar suas veias.

— O que está havendo aqui é que estamos sendo atacados por um reino onde só conhecemos seu objetivo: vingança. Tememos que as coisas piorem e nosso povo sofra. Foi por isso, minha querida, que por tantos anos, séculos, mantemos nossas pessoas longe de certas habilidades, de certos poderes. O que você tem treinado e tentado alcançar é uma delas. O que você viu Auren fazer é parte delas - desviou o olhar para as mãos cruzadas em seu colo. - Por todas as gerações existiu alguém para apagar qualquer memória do povo sobre teleporte, telepatia, rastreamento. Qualquer habilidade que levasse nosso povo até esses inimigos e, consequentemente, os deixasse em perigo. Algumas histórias e cantigas ainda existem entre nosso povo, algumas sempre acabam passando por essa filtração... Mas não estão a ponto de serem perigosas e queremos manter nossa cultura, nosso legado.

“Espero que nos perdoe, criança, por te privar de todas essas coisas que você deseja. Espero que compreenda nosso desejo, apesar disso, em deixar o reino em segurança. Auren e Kyprios carregam o fardo de limpar essas memórias sempre que elas aparecem em algum morador nosso. E são os únicos que sabem disso além de mim, Jordan e alguns mestres do fogo e da água. Nós tiramos lembranças boas de você, e sentimos muito, porque você não deveria sofrer por nós.”

A garota não conseguiu domar direito seus olhos, que não aguentaram continuar olhando para Joseff. Encarava a parede vazia ao lado enquanto absorvia aquelas palavras. Eu… não lembro de coisas? E um reino que nos persegue há séculos… Seu coração se apertou dentro do peito e, quando o rei continuou a falar, sentiu seus órgãos se remexerem em oposição. Era como se um raio a partisse no meio.

— Kyprios nos contou que você já foi capaz de se teletransportar e de usar mais habilidades avançadas. Ele esteve com você o tempo todo em suas missões para evitar esses conhecimentos e também para protegê-la de qualquer suspeito.

Neri olhou para os pés daquele jovem desconhecido, sem se atrever a encará-lo. Era uma situação estranha demais. Esse rapaz… Tem a minha idade? Como não pude notá-lo? Raiva, frustração ou o que quer fosse aquela sensação ruim invadiu seus pensamentos, imaginando por quanto tempo tinha sido seguida por aquela pessoa sem perceber. Como ela era fraca… Fraca e ingênua. Mas como aquilo poderia ser verdade? Como seus reis estavam escondendo algo assim? Não conseguia acreditar no que ouvia.

— Nós gostaríamos de poder retornar suas memórias, mas não sabemos como… Nossos antepassados nunca tentaram, deixando-nos com essa falha… - levantou-se, fitando-a. - Não peço que nos perdoe, Neri, mas peço que continue protegendo Vollfeit. Precisamos que você nos ajude, ajude Auren e Kyprios, a manter isso até que o reino volte a ficar em paz.

— De que… O senhor precisa? - foi o que conseguiu dizer em meio ao turbilhão de ideias e mágoas que floresciam em si.

— Os dois - olhou para o mestre do ar ao lado do jovem alto e de músculos fortes. - Não conseguirão lutar contra os próximos ataques, se assim continuar, e vigiar as memórias do povo ao mesmo tempo. Sem eles, tudo que lhe contei pode se espalhar e colocar todos em risco. Você pode aceitar carregar essa função, querida? Eles lhe ensinarão tudo, e você verá que sempre foi forte, como sempre soube alcançar, com sua determinação, seu potencial verdadeiro.

Não sabia o que responder - e como responder. Sua mente estava ocupada demais digerindo todas as informações que ganhara. Precisava falar, e rápido, pois ainda estava diante de um rei e do mestre do ar. Sentia também que não poderia recusar aquilo. Mesmo se vendo numa posição de mártir, também estava em desvantagem. Por mais que pensasse, não queria falar “sim” para alguém que mentira tanto. Mas que também controlava tanto poder.

— Eu fico honrada em aceitar, senhor - Neri se ajoelhou e abaixou a cabeça em sinal de respeito, mas por dentro sentia um enjoo cada vez maior ao se imaginar apagando memórias. Memórias de pessoas inocentes.

— Fico tão feliz em ouvir isso, minha querida - o rei se aproximou e a tocou no ombro. - Auren e Kyprios lhe contarão mais coisas sobre o treinamento assim que tomarem um tempo para isso. Obrigado por confiar em nós após essa situação.

A espiã se levantou e olhou para o sorriso fraco estampado na face de Joseff sem conseguir ignorar um bolo em sua garganta. Queria perguntar se aquilo era sério, se estavam testando sua lealdade ou se não passava de um sonho - ou pesadelo - seu. Queria dizer que aquilo não tinha graça, que aquilo a magoava, pois sempre se importou demais com seu reino. No entanto, só poderia assentir e sair dali o mais rápido possível.

O rei desejou-lhe um bom festival e se desculpou mais uma vez, também em nome do rei de Diellor, e avisou que Kyprios a transportaria de volta ao reino vizinho se assim quisesse - pois estavam em um cômodo sem saída, a metros no subsolo, em Ihene. Aceitando, voltou com o garoto para um corredor quieto de Diellor; queria estar o mais longe possível daquela sala abafada.

A luz da manhã invadiu o rosto da jovem, que puxou o manto para bloquear aquela iluminação tão forte se comparada ao cômodo isolado de antes. Na verdade, queria mesmo ocultar era a indignação que, provavelmente, seus olhos expunham.

— Sei que não tivemos uma apresentação, então… - ouvia o garoto andando atrás dela pelo corredor. - Sou Kyprios, de Ihene.

— É um prazer - Neri falou rapidamente sem parar de avançar até os andares inferiores.

Talvez tivesse soado indiferente, porém seu nome, história ou cor preferida não importavam para Kyprios - ele já deveria ter descoberto isso durante os cinco anos em que a seguira nas missões. O rapaz entrou em silêncio até que Neri chegasse longe dos muros do castelo e se virasse, fitando-o rapidamente.

— Por favor, avise-me quando precisarei me apresentar para os treinamentos - fez uma leve referência e voltou a andar.

A espiã se sentiu um tanto aliviada quando não foi seguida, entendendo que Kyprios conseguira enxergar aquilo como uma despedida. Em direção à vila, mas sem nenhum caminho específico em sua mente, começou a aumentar a velocidade, dando passos cada vez mais curtos e velozes. Sentia o vento vindo na direção oposta, atacando sua pele de forma cortante. Até você me atingindo de alguma maneira, não é?, pensou tristemente ao decidir não controlar o ar para lhe proteger do vento. A região de sua barriga doía e sua garganta parecia fechada, tentando bloquear a vontade profunda de derramar lágrimas. Neri só queria continuar seu treinamento solitário e, hora ou outra, aproveitar o festival naquela semana. No entanto, tinham jogado em sua face um mar de informações. Um mar fundo, escuro e impossível de flutuar na superfície. Não lhe restava opções se não a de aceitar o convite dos reis - se recusasse, sua memória seria apagada pela, talvez, centésima vez. E não, não poderia ter mais sua mente remexida. Não queria mais aquela invasão.

Seu corpo foi tomado por um arrepio frio quando pensou em Kyprios tomando suas lembranças, ou até mesmo vendo-as como quisesse. Um garoto como ela, talvez da mesma idade, superando-a em tudo e controlando-a durante todo aquele tempo. O que deveria achar daquilo? Talvez notável, inspirador, assustador ou preocupante. Talvez muito preocupante. Todavia, Neri não sabia o que era pior, aquilo ou o fato iminente de inimigos misteriosos e treinados para destruir exclusivamente Vollfeit estarem batendo na porta - os reis não tinham motivos para mentir sobre aquilo. Ou tinham?

Chegou numa área relativamente movimentada da vila, onde um grupo de artistas de rua parecia apresentar um de seus shows. Neri diminuiu a velocidade para uma caminhada normal, passando sem interesse algum pelas pessoas felizes em assistir a apresentação. Será que já conhecera algum acrobata antes? Nunca saberia. Então uma súbita ideia apareceu. Pensou por um momento em sua localização antes de se colocar para a direção leste, onde sabia que uma grande arquibancada de madeira havia sido montada próxima às fronteiras com Ihene. Não se importava mais em ficar longe daquele reino - afinal, Diellor era tão falso quanto o reino da Lua.

Não sabia em quanto tempo havia feito o trajeto. Tentou direcionar sua mente para apenas uma coisa: o Torneio de Verão. Ao se aproximar de uma grande redoma feita por controladores de ar, pôde ouvir as palmas e gritos animados daqueles que vieram assistir. Neri passou por um arco, alto e imponente de madeira bruta, e pelo véu de ar da redoma antes de se ver no meio das arquibancadas, que subiam mais de seis degraus. O local ainda não estava cheio como Neri havia presenciado anos atrás, podendo escolher um espaço mais isolado lá em cima. E, se não estava verdadeiramente agitado, era porque nenhum participante famoso e habilidoso ainda havia aparecido.

Lá na arena, num círculo arenoso centralizado na redoma transparente, dois homens batalhavam em busca da vitória, talvez a quarta do dia se levasse em conta o horário de abertura das lutas, às sete da manhã. Ambos eram dominadores do fogo e tentavam acertar um ao outro com lanças em chamas. Neri os assistiu até o fim, tentando não pensar em nada além das próximas batalhas. Viu de mais duplas de controladores de fogo, quartetos da água e da terra competindo cooperativamente até outros participantes, solitários e tentando evitar, com garra, a derrota. Em certo momento, algumas pessoas saíram para, em seguida, voltarem com sacos repletos de batatas assadas e carnes cortadas em cubos. Neri via algumas pessoas se sentando próximas à ela, sem, no entanto, ter seu apetite comum despertado. Não conseguia nem ao menos pensar em comer sem piorar o desconforto em seu estômago.

Pouco tempo depois do almoço as arquibancadas começaram a lotar. Os grupos de moradores que chegavam pareciam acompanhar um homem mais alto no centro do tumulto. Ele distribuía acenos simpáticos e arremessava beijos certas vezes para o público mais em cima, que também notara sua entrada. Passou pela arena e seguiu até uma passagem nos fundos, onde desapareceu atrás das arquibancadas. O grupo o observou no limite da passagem por mais um tempo antes de pegar parte dos assentos livres ali perto. “Innavoi, Innavoi!”, puxaram um coro. Rapidamente o homem retornou, dessa vez sem o colete e cinto que usava antes. Segurava uma lança comprida ao lado do corpo fino, mas forte, e acenava enquanto ia em direção a um homem menor perto da passagem. Trocaram poucas palavras antes que o último tivesse sua voz expandida, através do ar, para toda a arena.

— Senhoras, senhores e crianças… Innavoi está aqui para sua primeira batalha do dia! Palmas para um dos favoritos a campeão desse ano!

Os homens se cumprimentaram antes que o oponente de Innavoi, uma mulher tão alta quanto ele e manejando uma espada, entrasse e fosse apresentada como Thadora. Neri se levantou e desceu as arquibancadas. Deu a volta na estrutura enorme e, vestindo seu capuz, passou sorrateiramente por onde Innavoi havia entrado minutos antes. Uma trilha de terra batida e avermelhada a levou até um gramado que sustentava inúmeras tendas coloridas. Era ali que os participantes do torneio se preparavam. Pessoas corriam de um lado para o outro trazendo ou levando armaduras, armas e comida, enquanto outras pareciam descansar dentro de suas cabanas. Neri avançou rapidamente até o fundo, onde uma tenda azul e preto estava focada em sua visão. Ao lado dela, Battle falava com um dos soldados que se mudara recentemente para o castelo - os chefes de todos os departamentos, principalmente dos soldados e guardas, incentivavam seus agentes a participar do torneio como forma de treinar.

— Ah, decidiu participar? - Battle perguntou assim que a viu. Estava naturalmente surpreso após ela aparecer mesmo dizendo que estaria treinando. Não se importava mais com treinos.

— Sim, senhor. Gostaria que me desse uma máscara.

— Bom, só tenho as antigas… - disse pensativo. - Teria arranjado uma nova se me avisasse antes.

— Aceito qualquer uma, senhor.

— Bem, então… - e entrou na tenda. Não demorou até que saísse segurando uma máscara grossa de cor branca. - Essa foi a do seu primeiro ano, certo? - disse com certa nostalgia, sorrindo.

— Sim. Obrigada, senhor.

Então pegou a máscara e a colocou no rosto, afastando-se. Escondeu suas madeixas dentro do manto fechado e voltou para a passagem, analisando brevemente a batalha que acontecia no centro da arena. Innavoi apresentava vantagem, já que Thadora não usava mais sua espada. Neri ficou ali, aguardando o fim. Todo aquele tempo em que esperara nas arquibancadas acumulou uma quantidade de energia dentro de si que não via a hora de se soltar, liberando toda a raiva, dor e coisas que não sabia citar ganhas ao longo dos últimos dias. Queria se livrar daquele peso e angústia e o único modo confiável que encontrara era o torneio. Ela soltaria toda a sua angústia ali e não teria ninguém para pará-la.

— Torcedores de Innavoi… Cumprimentem seu vitorioso desta batalha! - a voz do homem de antes disparou quando Thadora  parou com uma lança apontada para seu pescoço, milímetros distante.

Urros e palmas preencheram a plateia, cada vez mais cheia. Innavoi se retirou, passando sorridente por Neri. O narrador também veio, encarando-a com dúvida.

— Você é o próximo desafiante?

— Sim - a voz de Neri se alterou, ficando rouca e um tanto grossa. Graças ao ar que passava por sua traqueia, era capaz de mudar qualquer característica de sua voz.

— Precisa esperar alguém novo também aparecer para que vocês lutem.

— Mande qualquer um.

— Bem… Tem certeza? Só os desafiantes mais fortes já estão se preparando.

— Qualquer um deles - falou impassível.

— Certo, você deve ser confiante! - sorriu. - Então iremos procurar alguém agora. Espere aqui até que eu volte.

O homem correu para a área das tendas com pressa. Voltou minutos depois com Innavoi, que a encarou feliz.

— Você é novo, nunca o vi aqui antes.

— Talvez você seja o novo - e andou para dentro da arena.

— E olha quem temos novamente! Senhoras, senhores e crianças, Innavoi está de volta para um misterioso desafiante! - virou-se para Neri. - Você quer dizer seu nome?

A espiã balançou a cabeça negativamente e se posicionou a quatro metros de Innavoi, que acenava para seus fãs. Das arquibancadas, ouvia parcamente poucas pessoas dizendo, surpresas, “É Erikan!” ou “Erikan voltou!”.

— Bem… A luta é livre, como ambos concordaram. Mostrem seus potenciais e conquistem a vitória!

As pessoas gritaram com animação, a maioria torcendo pelo homem. Neri fechou os olhos por um instante, focando-se em seu próprio corpo e sua força; focando-se em tudo que aprendera e tudo que deveria ter aprendido; em tudo que tiraram dela; em toda a mistura de sentimentos pesados em seu peito.

Ela, com ou sem Kyprios e Auren, chegaria até onde realmente pudesse.

 

(...)

 

As arquibancadas estavam lotadas quando Belchior chegou para ver algumas partidas do torneio.

— Acho que precisaremos nos dividir - disse Elluena, olhando para os degraus ao redor.

— Ali tem espaço pra duas pessoas - Jona apontou  para uma pequena área mais à direita, logo no início.

— Vão lá rápido, nós vamos procurar um lugar - Lorodas sinalizou com os braços e, junto a Jona e Alexander, distanciaram-se para a arquibancada oposta.

Belchior acompanhou Elluena, a criada que entrara recentemente para trabalhar no castelo, olhando para a arena um tanto receioso.

— Não vejo a hora de ver vocês ali amanhã - Elluena sorriu, sentando-se no espaço livre no primeiro degrau.

— Bem, não me sinto do mesmo jeito - deu um sorriso irônico. Não queria lutar.

— Você irá se sair bem, tenho certeza.

O jovem apenas assentiu com a cabeça para não ser rude diante da gentileza da garota.

— SENHORAS, SENHORES, CRIANÇAS, ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO E QUALQUER COISA… - a voz de um homem, parado no centro do campo arenoso, surgiu entre a arquibancada enquanto seu dono esticava os braços animadamente. - As batalhas de hoje irão retornar agora! Quem será o oponente que ERIKAN, NOSSO GRANDE DESAFIADOR DO DIA, irá enfrentar agora?

Belchior sentiu um calafrio percorrer seu corpo ao ouvir o nome Erikan, como um mal pressentimento. O grande desafiador do dia… Suspirou.

Duas silhuetas apareceram na entrada dos fundos para a arena. Uma figura encapuzada levantou um coral alto da torcida, que parecia pegar praticamente todas as arquibancadas. Belchior encarou a máscara branca, que tinha dois triângulos em forma de orelha de lobo no topo e adornos azulados ao redor dos olhos e das bochechas. Não precisava ver o rosto por trás daquela grande máscara para saber quem era seu dono.

— Apresento-lhes Sinae!

Um homem bem mais alto que seu adversário - que parecia um adolescente mal crescido - estava ao lado do narrador, que deu o sinal para que a batalha se iniciasse. O mascarado atacou primeiro, mostrando uma sequência rápida de golpes, mas não tão precisa.

— Quem você acha que vai ganhar? - uma voz vinda dos degraus superiores estava animada.

— É o décimo segundo oponente que Erikan enfrenta hoje… Ele ganhou o torneio do ano retrasado e apareceu do nada esse ano, ganhando tudo.

Décimo segundo?, pensou abismado. Aquele era um número elevado até para o lutador. Um número perigoso, na verdade.

— Então você está apostando nele agora também? - a dupla continuou.

— Bom, por mais que eu queira que ele ganhe, é óbvio que está cansado depois de lutar a tarde toda. E ele está lutando agressivo hoje. Parece meio doido.

— É… - bufou. - Nunca vi esse cara antes, mas ele não me parece nada de mais além de energético. Não para de tentar acertar o outro.

— Sim, ele está estranho hoje. Estranho…

A cada ataque de Erikan, a torcida gritava em apoio, esperando que tivesse sucesso. De cinco tentativas, no entanto, acertava dois golpes, no máximo. Não era nada parecido com o estilo e com a habilidade de Erikan. Ele estava imprudente e afrontoso. Belchior descobriu depois, ainda com o falatório alheio, que seu oponente era um guarda de alto nível de Diellor, acostumado com o torneio após dois anos participando. O homem desviava com facilidade e olhava intrigado para Erikan, como se visse nele apenas uma criança rebelde tentando ganhar. Ficou um tanto irritado, pois sabia que Erikan não era assim. No entanto, não sabia se deveria se sentir mais incomodado com ele ou Sinae.

O mascarado não fazia progresso na luta, mas desviava, com um tanto de esforço, de Sinae. Em períodos um tanto longos, jogava esferas brilhantes de ar, que ainda se mantinham rápidas; talvez estivesse acumulando sua força restante para criar os ataques. Após o que pareceu dez minutos, Erikan flutuava uma adaga na nuca de seu adversário, enquanto três outras estavam no chão, derrubadas por Sinae antes que pudesse perceber o impasse. O narrador o declarou vitorioso e marcou um intervalo de cinco minutos até a próxima batalha.

Belchior se levantou, tinha que dar um jeito naquilo.

— O que há? - Elluena questionou. Sua voz era doce e calma.

— Irei comprar algo para comermos -mentiu.

— Ah, irei junto, te ajudarei - sorriu.

— Não se preocupe - e saiu rapidamente, torcendo para que não fosse seguido.

Belchior abandonou a arena, passando o arco das arquibancadas, para contornar toda a área e chegar próximo à Floresta Central, onde seu início era marcado pelas tendas dos participantes. Procurou por alguém de máscara, mas sem sucesso.

— Senhor Battle, sabe onde ela está? - perguntou assim que localizou o homem, que suspirou.

— Está perto do morro, vendo sabe-se lá o que - encarou-o. - Tente convencê-la a parar, está lutando há horas e do jeito errado. Vai machucar ainda mais seu corpo todo se continuar assim - disse um tanto cansado, provavelmente de tentar fazer o citado antes.

O jovem assentiu e voltou a correr, agora em direção reta, para onde a floresta começava a ficar mais densa. No topo de uma inclinação média, o corpo pequeno de Erikan estava virado para o horizonte, onde o sol se escondia cada vez mais. Sua máscara estava posta ao lado de sua cabeça, ocultando seu rosto naquele ângulo.

— O que está fazendo? - disse ao se aproximar.

— Pensando - a figura virou o rosto e revelou a face de Neri. Estava pálida e com o suor fazendo sua pele brilhar. O pior de tudo era seu olhar, vago e distante.

Belchior se sentou ao lado da espiã. No que ela estaria pensando? A região de seus ombros estava ensanguentada, com alguns cortes visíveis através do manto despedaçado. Parte de seus antebraços também mostrava sangue, que secara quase por inteiro ali.

— Você derrotou treze pessoas seguidas?

— Sim - sua voz era como um rio calmo, gelado e indiferente às pessoas que caíam ao seu redor durante uma guerra.

— Por quê? - seu tom tinha um tanto de decepção.

— Parece certo. Treinar o quanto eu puder.

— Você sempre passou os limites, mas não assim. Por que estava lutando daquele jeito?

— Novos métodos.

— Neri - chamou-a, fazendo-a encará-lo. - O que houve?

O olhar feminino, mesmo que por um instante, vacilou. Belchior enxergou dor através daqueles olhos que sempre estavam mansos e alegres. Até então, não havia presenciado aquela versão fria e vidrada, mesmo quando a vira treinar outras vezes.  

— Não sei o que deu em sua cabeça, mas vá descansar. Aldith não lhe dará comida se continuar te vendo assim.

— O que você faria… Se soubesse que sua vida é irreal? Se descobrisse que foi só um peão qualquer numa história ruim?

O jovem a fitou por um tempo antes de responder. Eram palavras estranhas saindo da amiga.

— Nada. Sou realmente só um peão. Um jardineiro que não consegue acertar bolas em chamas no alvo.

Neri suspirou. Abaixou a cabeça entre as pernas dobradas, escondendo seu rosto. Belchior queria que ela contasse o que sentia. Queria saber qual o imenso peso que ela carregava dessa vez e se recusava a dividir, como sempre.

— Você não pode continuar segurando tudo dentro de você. Sei que quer melhorar, e proteger todo o reino, mas não desse jeito.

A espiã se levantou, vestindo a máscara e o capuz outra vez.

— É a minha última batalha. Eu prometo - acrescentou quando Belchior franziu as sobrancelhas. - Meu último oponente não é de Vollfeit, e eu preciso ser a prova de que nosso reino não está desprotegido.

Balançou a cabeça, assentindo. Não poderia fazer nada, às vezes ela se mostrava teimosa demais. Antes que a visse partir, segurou-a pelos ombros.

— Lute como o Erikan que conhecemos.  E tente não perder de maneira tão ruim.

— Eu preciso ganhar. De qualquer maneira - seu olhar se endureceu outra vez, fazendo uma preocupação e raiva estranhas cutucarem-no por dentro.

Viu a garota descer o morro e, através das árvores, voltar para a área das tendas. Por mais que fosse Neri, só conseguia sentir algo ruim preenchê-lo enquanto a observava voltar para a arena.


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