Vollfeit - Diellors e ihenes escrita por Kaonashi


Capítulo 10
Capítulo 10




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Capítulo 10

Quem eu sou?

 

Não sabia em que parte do dia estava quando ouviu os ruídos cada vez mais altos vindo de algum lugar acima do teto. Gritos abafados, estalos e batidas mais fortes em alguma parede apareceram do nada, agitando os cinco homens que sempre estavam naquele corredor, prostrados na porta da cela.

Sentado na cama dura, observava-os através da pequena abertura na porta grossa de ferro, desejando que saíssem dali daquela vez. Ao mesmo tempo em que se sentia injustiçado por estar ali, preso a semanas no cômodo fechado, escuro e frio sem motivo aparente, também se perguntava o que poderia ter feito no passado para merecer aquilo. Ninguém, no entanto, parecia saber. Poderiam ao menos falar meu nome, pensou pela vigésima vez.

Olhou para os braços, onde hematomas quase sarados pegavam uma pequena parte de cada um. Então passou as mãos pelo pescoço, onde sabia ter uma marca, um tanto mais escura que as outras, em toda a volta. Com aqueles machucados já tinha imaginado diversas lutas, mal-entendidos e castigos que passara para chegar onde estava; não tinha muito o que fazer mesmo.

O ruído incomum fora de sua cela se estendeu por alguns minutos, talvez horas. Ele desejou poder se juntar aos berros quase incompreensíveis de homens. Levantou-se e deu poucos passos até uma pia escura, com um espelho sujo logo acima. Através das manchas no vidro encarou sua face, pálida e com poucos arranhões espalhados. Quem é você? Diga-me por que estou aqui… Pensou com certo cansaço, encarando os olhos castanhos claros do reflexo. Só desejava entender o motivo de estar ali, preso, vigiado e isolado de qualquer outro humano.

O que você fez?

 

(...)

 

Neri não dormira. Ficou de olhos fechados durante algumas horas para que Belchior não ralhasse com ela, mas sua mente estava ligada a diversos andares abaixo de onde estavam, onde a aura de agitação e violência perduraram por horas. Já era quase manhã, com os raios de sol começando a aparecer através da cortina, quando Neri se colocou sentada na cama e encarou um Belchior com olheiras leves na poltrona à frente.

— Não posso ficar mais aqui, sentada - disparou.

— E o que gostaria de fazer? Caçar joaninhas ou, talvez, uma pintura de uma família de patos? - sua voz era uma mistura de sono e ironia.

— Preciso falar com o rei.

Belchior a encarou, intrigado.

— Acha uma boa ideia se apresentar ao rei nesse estado?

— Ele não perceberá - falou com pressa. - Por favor, Belch.

— Pedindo com educação assim até fico em dúvida - sorriu falsamente.

— Bom, não que eu precise de permissão - voltou o sorriso e se levantou, gemendo pelas dores que retornaram.

Belchior suspirou e se aproximou, pegando-a no colo.

— Por que você é assim? - murmurou, levando-a para fora.

Neri o ignorou e passou um braço ao redor do pescoço masculino, agradecendo-o mentalmente, mas tentando ignorar a sensação estranha de antes, que voltara. Iniciou um ritual que aprendera com Battle para diminuir os batimentos cardíacos, que se intensificaram naquele momento, e voltou sua atenção para as janelas fechadas, de vidraças brancas, do corredor.

O local estava vazio e apresentava tochas quase com chamas extintas. Desceram as escadas silenciosamente até chegarem numa intersecção com uma nova ala. Seguiram pelo corredor seguinte, usando uma escada igual à anterior quase até o térreo.

Agora o andar, onde o rei costumava ficar para tratar assuntos cotidianos, apresentava um pequeno grupo de soldados vigiando representantes da vila, que formavam uma fila pequena esperando que fossem atendidos. Eram pessoas demais aguardando às seis horas de uma manhã.

— Isso não é comum, certo? - Belchior questionou, observando de longe a fileira na frente da sala real.

— Não… Acho que o senhor Anorus não está aqui - deu mais uma olhada nas pessoas ali presentes antes de continuar. - Volte pra casa, Belch, vou procurar o rei - o garoto a ignorou, começando a voltar para a escada. - Você sumiu do nada ontem, estão preocupados. Volte antes que eu te deixe de castigo.

— Você é quem parece estar num castigo.

Olhou para cima, encarando o rosto neutro do amigo, que ainda a segurava. Seus olhos castanhos, mais escuros que o dela, sustentavam o olhar de forma misteriosa.

— Seu pai, Jona, Alluena… Não vão te encher de perguntas? – não pôde deixar de citar a garota.

— Falarei que achei um coelho machucado a caminho da arena. Soa verdadeiro, não é?

— Prefiro esquilos - respondeu chateada.

— Esquilos são pacíficos, Neri.

A espiã torceu os lábios e criou uma massa forte de ar ao redor das pernas de Belchior, prendendo-o no chão. Quando ele voltou a se mover, quase perdeu o equilíbrio ao sentir os pés paralisados. Neri aproveitou e jogou o corpo para o lado, saindo de seus braços. Sabia que aquilo lhe custaria longos minutos de dores, mas era o certo a fazer.

— Volte pra casa e avise todos que está vivo - falou ao se pôr de pé. - Obrigada, Belch - e sorriu rapidamente, descendo as escadas em seguida.

Quando já estava andares longe, desabilitou a camada de ar posta no jardineiro. Soltou um suspiro, sentindo seu corpo reclamando pela perda de energia, mas era pouca se comparada a um ataque de verdade. Moveu-se para uma outra ala, quase até o penúltimo andar, onde sabia que encontraria a sala real de reunião. Com toda a confusão que vinha dos calabouços durante a madrugada, havia a possibilidade do rei de Diellor estar resolvendo diversas questões ali ao invés de estar lidando com o povo como de costume.

Na porta do cômodo, um trio de guardas protegia o local. Neri ficou ali, segurando todas as suas dores, em especial a da cintura, enquanto aguardava pela saída do rei. Vagueou mentalmente por diversas alternativas para explicar o que sentira na madrugada. Eram presenças de má índole em meio a auras surpresas, batalhando entre elas até que um lado desaparecesse e se espalhasse para fora do castelo como se não existissem mais obstáculos. Neri sentiu medo, e receio, por imaginar aquelas pessoas negativas invadindo as casas simples e de inocentes da vila. Sentiu raiva, e tristeza, por não estar apta, naquele momento, a protegê-los - talvez nunca estivesse.

A reunião demorou quase uma hora para acabar. Um grupo médio de pessoas saiu apressado depois do período, dando o sinal que Neri aguardava. Ajeitou-se, convencendo-se de que não possuía machucado algum, e bateu na porta, pedindo permissão para entrar.

— Neri, querida… - o rei Jordan disse ao vê-la em sua frente.

— Senhor - cumprimentou-o com uma reverência, forçando-se a agir normalmente e engolindo uma dor. - Peço perdão por aparecer sem ordem. Mas senti algo como uma invasão ontem.

— Sim, sim… - suspirou. Parecia cansado, talvez por também passar a noite em claro. - Traidores entraram no calabouço e começaram uma fuga. Inventaram uma briga de rua, como se fossem bêbados, para serem levados até a prisão. Mas… Você está bem, querida? Soube que se machucou.

Neri o fitou por um tempo. Mesmo que sua face estivesse limpa de sentimentos, dentro de si sentia a raiva ameaçar voltar. Ela tinha mesmo se machucado ao ouvir a verdadeira história de Vollfeit, isso sim.

— Sim, senhor. Me machuquei no novo treino, mas quero fazer algo para ajudar. Não posso ficar sentada vendo o reino assim, senhor.

— Eu entendo… - calou-se por um tempo. - Me desculpe por tudo, Neri - sua voz parecia conter tristeza. - Sei que Joseff já disse, mas sentimos muito por tudo o que houve - continuou ao ver que Neri só assentira. - Não sei se há algo que precise ser feito de imediato, todos estão empenhados nisso também.

— Posso substituir algum guarda, ou alguma função menos exigente, para que essa pessoa possa aproveitar o festival… Quero ajudar de alguma forma, senhor.

— Entendo… – deu uma pausa. – Nossos astrólogos e astrônomos precisam ser escoltados para uma viagem de estudo aqui perto… Há também um grupo de soldados vigiando aquele mensageiro… Estão lá desde que ele foi capturado - suas sobrancelhas se dobraram.

Neri sentiu uma energia percorrer seu corpo ao ouvir a palavra “mensageiro”. Parecia ter passado muito mais de duas semanas desde sua luta com ele.

— É um grupo seleto para isso, então são raras as vezes em que saem de lá, revezando quando precisam para comerem e questões desse gênero. Se aceitarem… Você pode ficar no lugar deles. Mas não se esforce ou se preocupe, querida - balançou a mão negativamente. - Nós temos soldados confiáveis para proteger nosso povo. E você sempre faz muito por Vollfeit, e sempre seremos gratos.

— Obrigada, senhor - curvou a cabeça, embora não se sentisse mais honrada como nas últimas vezes.

Até o fim de sua pequena reunião com o rei, pegou a localização exata do mensageiro. Ela queria aquela missão. De imediato foi até os calabouços, tateando as paredes do início até achar uma saliência. Era uma entrada secreta. Entrou na passagem, úmida e quase totalmente escura, encontrando mais escadas. Andou tantos degraus que parecia estar chegando ao centro do mundo; por ser um invasor mais forte que os outros, fazia sentido isolá-lo daquele jeito.

De volta a um corredor extenso e mais iluminado, avançou a passos lentos, na velocidade que seu cansaço e suas dores a permitiam após toda aquela caminhada, e alcançou um grupo de soldados que, embora imóveis, acompanhavam-na com os olhos. - Senhores, venho em nome do rei Anorus - cumprimentou-os com um aceno de cabeça. - Se aceitarem, ficarei cobrindo suas posições até que descansem.

Os homens se entreolharam. Pareciam confusos embaixo das faces sérias.

— Nossa majestade nos deu como ordem permanecer aqui até que ele nos mande se retirar - um deles disse, tocando a espada na bainha em sua cintura.

— Sou Neri Arkan, vim em nome de Nossa Majestade - repetiu. - Não sou uma traidora, espiã inimiga ou invasora.

— Você está machucada - outro apontou para ela. - Suas costas estão meio dobradas e suas mãos estão cheias de cortes.

Neri suspirou mentalmente. Estava ali para presenteá-los com dias de folga, porém era aquilo que ouvia.

— Um de vocês pode me acompanhar de volta ao rei e questioná-lo sobre isso.

Os homens ficaram em silêncio. Só após a insistência - mesmo tão quieta quanto eles de permanecer ali - da garota que finalmente aceitaram a informação, retirando-se com certa suspeita. Aliviada, andou até o fim do corredor, passando por duas celas vazias. Na última parou de frente para a porta metálica, encarando, pela abertura retangular, os olhos âmbar que antes tanto a provocara. Um arrepio subiu até seus cabelos, relembrando seu primeiro encontro com o mensageiro enquanto analisava seu rosto. Estava pálido, desajeitado e com um ar melancólico o percorrendo.

Queria desviar o olhar, não se deparando mais com aqueles olhos caídos e confusos que a observavam, porém aquela pessoa lhe trazia memórias tão fortes que não conseguia deixar de olhá-la. Continuou fitando-o, acompanhando-o enquanto ele também a encarava. Ele estava diferente do primeiro invasor que vira na prisão antes, completamente distante e vazio. O mensageiro também perdera a memória, mas apresentava raciocínio. Apresentava sentimentos, mesmo que negativos, e ação como qualquer outra pessoa. Talvez fosse melhor estar como os outros, pensou. Afinal, não estaria sofrendo.

— É um nome diferente… Neri.

O coração da espiã acelerou ao ouvir a voz do jovem. Era tão doce e melódica como conseguia se lembrar. Algo se acendeu dentro de si.

— Não sei se é algo bom - respondeu, sentindo certo prazer ao, finalmente, poder conversar com seu oponente.

— Não sei se é algo ruim.

Neri apenas assentiu. Era um momento difícil de explicar, sentia ânimo e curiosidade ao mesmo tempo em que estava desconfiada e com receios.

— Posso me… Aproximar da porta? Sempre ficam me olhando como se eu fosse matá-los quando me movo - explicou, referindo-se aos guardas anteriores.

— Tudo bem, não te olharei desse jeito - disse naturalmente.

O garoto veio até a porta, deixando seus olhos cor de mel ainda mais visíveis sobre a iluminação das tochas. Neri sentiu vontade de perguntar-lhe sobre diversas coisas. Sobre sua origem, suas habilidades, seus treinos, a luta travada entre eles… Porém de nada adiantaria.

— O que faz durante todo esse tempo aqui?

— Às vezes… Uma mulher vem me fazer perguntas. Coisas como “de onde vim”, “minha função” e “meus líderes “. Depois disso só durmo… Eu acho.

— As únicas pessoas que vê são essa mulher e os guardas? - perguntou. Parecia torturante até para um inimigo.

— Além de um outro homem que traz as refeições, é isso. E você é a primeira a falar comigo durante mais de três frases aleatórias sem perguntar meu nome.

— Acha que isso é algo bom?

— Não acho que seja ruim - repetiu e se manteve quieto por um tempo. - Você tem a minha idade…? - disse, seus olhos um tanto curiosos.

— E quantos anos você teria? 

— Ah… - suspirou, mas logo se recompôs. - Acho que me esqueci disso, perdoe-me.

Neri tentou conter o sorriso em seus lábios, mas não conseguiu. Ela estava sozinha ali, sem ninguém para julgá-la ao vê-la sorrindo para um inimigo e, mesmo que a vissem, não importaria mais. O rapaz parecia ainda manter certo humor e ironia, e aquilo a confortou de algum modo.

A conversa evoluiu a partir de então, como se o sorriso da espiã tivesse espantado a atmosfera pesada daquele calabouço. Ficaram lá, conversando sobre inúmeros assuntos fúteis, de possíveis alimentos feitos com feijão até argumentos concretos sobre mundos desconhecidos. Uma porcentagem da necessidade que sentia de responder o garoto, na noite da luta, foi suavizada ali, conhecendo uma parte dele que não imaginava existir antes - era possível que nem ele mesmo sabia tê-la. Talvez os reis não apoiassem aquela ideia, mas tinham Kyprios para apagar qualquer memória acrescentada através daquela conversa, não tinham? Ele apagaria as do mensageiro caso precisassem.

O diálogo foi cortada quando Neri sentiu alguém descer pelos corredores ocultos nas paredes. Era um guarda trazendo o almoço do prisioneiro.

— Como soube? - ele perguntou após o guarda sumir.

— Consigo sentir algumas presenças facilmente.

O mensageiro balançou a cabeça, tentando entender.

— As mais fáceis… São por serem mais fortes?

— Nem sempre. Às vezes a mais difícil de detectar é a mais forte - disse em um tom profundo, lembrando-se da aura que seu interlocutor costumava emanar. Uma aura inusitada e tão distante quanto o sol no horizonte.

Então passou a bandeja para dentro da prisão. Continha um pote com líquido bege, com pedaços de cenoura boiando, um pão e um copo escuro com água. Não parecia a melhor refeição que já vira. O garoto agradeceu com um aceno de cabeça e pegou a bandeja, sentando-se numa cama de aparência velha e frágil no fundo da sala. Observando-o discretamente, imaginou qual seria a reação dele se estivesse provando a sopa de frango que Aldith preparava. Por um instante o viu sorrindo torto, como fizera naquela segunda noite, dizendo que aquele jantar não era o que ele esperava para um dia tão especial. Seu coração acelerou e, durante aquele momento, desejou intensamente vê-lo recuperar suas memórias.


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