Vollfeit - Diellors e ihenes escrita por Kaonashi


Capítulo 6
Capítulo 6




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Capítulo 6

Falhando

 

Aldith limpava o balcão de pedra negra quando uma garota de aparência fraca entrou, encarando-a com olhos cansados. Retornou com um olhar questionador e analítico, observando as bolsas um tanto escuras embaixo dos olhos e a postura desengonçada da figura.

— Meu santo pão, Neri, o que andou fazendo? - disse, suas sobrancelhas se arqueando.

A espiã parou ali perto, apoiando os cotovelos na pia ao lado.

— O tédio de cada dia me mata lentamente - disse de forma arrastada, abaixando a cabeça no meio dos braços.

— Estão te deixando aqui o tempo todo, não é? - continuou quando a jovem concordou com a cabeça. - Existem mais diversos domadores de ar em Ihene, eles que venham aqui também. Vá descansar, garota.

— Preciso de comida, Aldith - seus olhos a fitaram, suplicando dramaticamente.

A cozinheira suspirou e, olhando ao redor, achou um prato com batatas assadas. Pegou-o e o entregou a Neri, que sorriu satisfeita, quase perdendo o olhar cansado.

— Acham que você é faz-tudo? - bufou. - Esses soldados deveriam levantar o corpo mole e ir treinar pra não dependerem de uma garotinha - voltou a limpar o balcão.

Neri respondeu após engolir um dos pedaços de batata.

— Eles estão. Eu que estou aqui porque quero - e comeu mais um pedaço. - E o seu treino, já ganha do Belch em lances errados ao alvo?

— Ainda posso pegar essas batatas de volta! - ameaçou pegar o prato. - Ele está treinando mais agora que o chamaram pra participar do torneio anual.

— Ele irá participar? - um riso parecia tentar escapar de sua boca.

— Bem, os rapazes da jardinagem e da cozinha querem competir, já que estão nos aconselhando a treinar… - deu de ombros, sorrindo ironicamente. - Eles só querem chamar atenção mesmo.

Neri sorriu, divertindo-se, e terminou seu lanche recebido.

— Acho que vou cochilar um pouco - disse, espreguiçando-se.

Naquele momento, a cozinha começava a receber outros cozinheiros, todos com uma expressão sonolenta. Afinal, não passava das seis horas da manhã.

— Já deveria ter ido, garota! Vá, passe aqui mais tarde pra pegar almoço - Neri assentiu e se retirou através da saída para os jardins. - Não deve comer direito desde o banquete - e suspirou.

Neri não ouviu até o fim, já estava caminhando para o parterre no centro do jardim. Quando chegou não viu ninguém lá. Deitou-se no banco de pedra e fechou os olhos. Pensou na cama confortável que tinha em sua antiga casa, a alguns andares dali, porém, de alguma forma, descansar ali fora parecia melhor. Por alguns minutos, sentiria-se mais próxima às pessoas que restaram em sua vida.

 

 

Quando acordou olhos castanhos e divertidos a assistiam de cima. Neri se colocou sentada no banco e ignorou Belchior, que parecia ter chegado a poucos segundos - apesar de ser treinada para sentir qualquer aproximação mesmo adormecida, a presença do amigo nunca lhe era incômoda. Bocejou preguiçosamente antes de se levantar e olhar para o céu. Não tinha dormido mais de uma hora.

— O que estava fazendo? - o rapaz finalmente questionou. Tirava tesouras e outras ferramentas brilhantes da faixa em sua cintura.

— Quando uma pessoa está de olhos fechados, principalmente deitada e com uma expressão serena… Ela pode estar dormindo.

— Sua expressão não era essa.

A espiã suspirou internamente e se despediu do jardineiro, não estava com vontade, naquele dia, de continuar as brincadeiras costumeiras entre eles. Deveria ser culpa das horas de sono que perdera nas diversas bibliotecas de Diellor, pensou. Nem mesmo perguntara a Aldith sobre mais histórias como planejara. Enquanto caminhava para além dos portões do castelo, sentiu uma pontada ínfima dentro de seu peito, como se estivesse arrependida de algo. Suspirou outra vez, lembrando-se de como respondera Belchior. Estava tão exausta a ponto de descontar o cansaço no jovem? Ficou nervosa com ela mesma e com algo mais, sem conseguir distinguir, no entanto, o segundo motivo.

Conforme andava em direção à vila, o sono parecia sumir lentamente. Após passar todos aqueles dias buscando por histórias e lendas que lhe dessem dicas sobre teleporte e outras habilidades desconhecidas em Vollfeit, só ganhara três pistas: a primeira falava sobre um cachorro branco, de nome Milk, que teletransportava os objetos de seus donos e os perdia para sempre; o segundo conto apresentava um trio de anciões pobres que vendiam previsões do futuro quando, na verdade, liam a mente dos clientes; a última história que encontrara tinha, como protagonista, uma garotinha que sonhava em ter poderes, mas era vista como a mais pequena e fraca até que, numa noite de lua cheia, seu corpo cresceu e ganhou a habilidade de controlar o ar. Todas as três histórias eram pequenas e pegavam poucas páginas nos respectivos livros, mas falavam sobre dominadores do ar. Neri também se encontrou com algumas informações sobre os outros elementos, como habilidades da água, por exemplo, que faziam seu usuário rastrear o alvo através do líquido dentro de seu corpo. Não pareciam ser habilidades especialmente voltadas a ataques ou defesas, poderiam ter qualquer função, e Neri sabia bem disso. Se aprendesse teleporte ou até mesmo a invadir mentes… Seria uma espiã muito melhor para Vollfeit.

Olhou ao redor, parando no meio de um bosque ao sul de Diellor. Percorrera toda aquela extensão, de uma ponta à outra, em menos de vinte minutos através das rajadas de ar que criara em seus pés. Os pássaros do local cantavam distante enquanto Neri ouvia o ruído das folhas que eram acertadas pelo vento lá em cima, nos topos das árvores. Uma energia percorreu o corpo da espiã, contrastando com aquela paz e silêncio na floresta. Voltou a andar, adentrando ainda mais o bosque e se distanciando o máximo possível da vila. Então, subindo um morro médio e se sentindo escondida pelos vários arbustos e pinheiros, fechou os olhos, buscando foco em uma única coisa: uma espiral de ar que a sugasse dali.

Por minutos ficou ali, parada na mesma posição. Sentiu a brisa em sua pele, balançando os cabelos incomumente desprotegidos pelo capuz e as pontas do manto. Tentou visualizar por diversas vezes aquele vento se condensando numa esfera que a teleportasse, mas nada aconteceu. Decidiu ficar lá por mais de quatro horas, incansável até que a fome já não pudesse mais ser ignorada. Afinal, tinha comido pouquíssimo nos últimos três dias - as letras transcritas nos livros foram sua única alimentação, mesmo que não naquele sentido.

Deixou-se cair na grama e se deitar, não adiantaria nada voltar para o castelo naquele momento, ainda era cedo para o almoço. Observou o céu azulado, que apresentava uma quantidade razoável de nuvens brancas naquela região. Esperava que, dali a uma semana, o clima continuasse daquele jeito para o Festival Anual. O festival…. Um peso apertou o tórax da espiã, vindo com uma preocupação teimosa. Com toda aquela gente nas ruas comprando presentes e comemorando a data, havia a possibilidade de ter inimigos atacando-os? Neri não queria admitir, mas tinha, sempre tinha. Enquanto tudo não fosse entendido, revelando os inimigos e prendendo-os, Vollfeit sempre poderia estar sob algum risco.

Pensou no quanto perderia do festival naquele ano. Por sorte conseguira voltar a tempo, no ano passado, de uma missão e participar do último dia da semana dedicada à festa. Comeu e assistiu a todos os espetáculos que pôde naquela noite, divertindo-se após três meses fora. Dessa vez, no entanto, não poderia se dar ao luxo de se distrair. Precisava vigiar o reino sem perder um minuto, assim como tantos outros soldados, guardas e controladores de ar que não comemorariam com suas famílias. Então pensou em o que Aldith e Belchior fariam no festival. Riu internamente, imaginando o amigo lutando no Torneio de Verão. Era um pena não ter como assistir aquilo. No entanto, sentia que ele não se sairia mal. Mesmo com todas as brincadeiras que fazia, Neri sabia que Belchior era corajoso. Talvez não fosse um exemplo de lutador ou controlador de fogo, mas sabia que lutaria quando necessário, assim como quando se impôs entre ela e três garotos maiores nos anos de escola.

A garota participava de um sistema de ensino dentro do próprio castelo, criado para as crianças que moravam  ali. A escola ficava numa parte mais distante dos dormitórios, na torre norte de frente para os últimos jardins do território. Durante o pequeno intervalo entre as aulas, costumavam ficar na beira da floresta Urso’jad, que circundava aquela área do reino. Num dia comum de aulas Neri aguardava o fim da pausa sentada em um dos bancos de pedra cinza postos lá, entre árvores baixas, quando um trio de garotos de outra turma a abordou. Chamaram-na de mentirosa e falsa por sempre ir bem nas aulas de luta que tinham exclusivamente, apontando que usava trapaças para se destacar dos outros estudantes. Os três garotos avançaram e a pegaram pelos braços, levantando-a bruscamente.

— Lute com a gente! Vamos mostrar pra todo mundo que você não é boa coisa nenhuma! - o maior exclamou e a empurrou para o chão.

Neri caíra sobre uma camada de ar que criara no último segundo, protegendo seus joelhos e palmas das mãos.

— Se levanta e tente bater na gente, fraca!

Antes que Neri pudesse se colocar de pé, a perna direita de Dordin, o que exclamava antes, começou a se movimentar até ela. No entanto, não a alcançou. Outra perna, mais fina e curta, bloqueava o caminho. Belchior se pusera no meio do trajeto e os encarava seriamente.

— Já chamei os professores, podem ir embora agora — dissera.

— Você não é o sem-amigos que os professores gostam? Deve ser da mesma laia que essa falsa - e apontou para Neri, que conseguira se levantar. Sem respostas, continuou, adotando uma pose torta e desengonçada, colocando os ombros para frente. - Se vocês querem apanhar sem ao menos se desculpar, então problema de vocês!

Um dos meninos se jogou sobre Belchior enquanto os outros dois começaram a perseguir Neri. Na época a espiã tinha um controle instável do ar, mas tentara algo pela primeira vez e que, até hoje, usava constantemente: fez o ar circundar todo o corpo pequeno de Belchior, criando uma armadura invisível. Percebeu, após correr para o lado da floresta, que a proteção começava a se desfazer; não conseguia manter a habilidade naquela distância. Então retornou um pouco e se encontrou novamente com a dupla de jovens - eram um tanto lentos para ela. Respirou fundo, repassando em sua cabeça as dicas que ouvira para batalhas corpo-a-corpo, e se preparou. Neri não se lembrava muito bem de como a batalha fluíra, apenas de seu fim, quando os garotos estavam cansados e foram assustados pelos professores que chegaram poucos minutos depois. A espiã ganhara alguns hematomas pequenos em suas mãos por usá-las com força tanto para atacar quanto defender. Ao voltar para as aulas, viu que Belchior estava intacto, apesar de apresentar uma expressão um tanto assustada ao vê-la entrar na sala. Apesar de ter ganhado algumas dores temporárias naquele dia, também fora presenteada com uma amizade duradoura.

Sorriu internamente e se pôs de pé num salto rápido. Como se a lembrança tivesse lhe recarregado as energias, recomeçou seu novo treino, concentrando-se na sensação desconfortável que tivera quando se teletransportou pela primeira vez, com o mensageiro. Como naquela noite, não poderia falhar. Não poderia depender de Auren e outras pessoas para fazer sua parte, sua função, em proteger o reino.

 

(...)

 

Sua barriga reclamava involuntariamente através de roncos estranhos, que pareciam ficar mais altos no meio do bosque. Neri tentou ignorar por mais um tempo aquela fome, mas não pôde resistir ao pensar que, após mais três horas treinando, o almoço já estava pronto e acabando. Correu de volta para o castelo, ficando mais incomodada com cada queixa de seu estômago, e depois já se encontrava encarando os olhos autoritários e questionadores de Aldith.

— Não te falei pra voltar no horário certo? - a mulher retirava o avental amarrado em sua cintura. - Até pra comida você se atrasa?!

— Desculpe, Aldith… Perdi a noção do tempo - deu um sorriso fraco, tentando ganhar a compaixão da amiga.

— Ah, sério… - bufou e, após deixar o avental num canto do balcão, apontou para uma abertura, um forno antigo, na parede oposta. - Peça pra Gilliad esquentar… Sobraram abóboras com carne.

Neri assentiu, sorrindo.

— Obrigada, Gilliad. Digo… Obrigada, Aldith!

— Não ouse aparecer mais aqui! - exclamou um tanto irritada e se retirou, finalmente fechando seu período do almoço.

A garota esperou Gilliad, um ajudante de Aldith que ficava mais tempo para cuidar das louças, conjurar fogo para aquecer as abóboras. Grata, comeu-as rapidamente como se fosse uma criança provando torta de creme doce - também não queria segurar o cozinheiro por mais tempo só por sua causa. Agradeceu outra vez antes de sair e caminhou lentamente até o campo de treinamento - sentia como se as abóboras com carne tivessem adicionado bons quilos em seu corpo. Passou pelo jardim de espirais e arbustos sempre bem aparados até se ver de frente para a grande área esverdeada dos fundos, com alguns trabalhadores e soldados praticando. Neri passou os olhos por toda a extensão, vendo que usavam lanças, flechas e até seus próprios punhos em lutas de um contra um. Num canto mais próximo a uma larga caixa, que sabia acomodar certas armas de longa distância, um grupo familiar parecia se divertir enquanto tentava acertar uma placa pintada de amarelo, com um círculo vermelho no centro.

Jona, Lorodas, Alexander e Belchior revezavam a posse do arco e de uma aljava de flechas e se entusiasmavam a cada tiro. Neri notou, pouco depois, um corpo menor escondido pelo grupo. A garota da noite do banquete estava atrás de Belchior e parecia assistir à tudo alegremente, com um sorriso envolvendo seus lábios rosados. Neri se aproximou um pouco e mudou de direção, podendo vê-la melhor. Seu rosto um tanto bronzeado parecia irradiar luz, quase tanto quanto seus olhos azuis brilhantes. Hora ou outra ela batia leves palmas para os companheiros, que continuavam errando o alvo. Mas, nas vezes de Belchior, ela tocava por instantes seus ombros, como se aquilo desse mais foco e força a ele para ser o primeiro a conquistar o objetivo. Neri sentiu algo quente se remexer em seu peito, questionando-a sobre aquela sensação incomum. Queria se aproximar dos colegas e se juntar ao treino, mas, após presenciar aquilo, já não tinha certeza do que queria. Talvez só sair dali como se não tivesse voltado ao castelo. Sim, aquilo parecia o melhor a se fazer… Começou a girar o corpo, mas parou. Endireitou-se e avançou pelo campo até o grupo de trabalhadores, que a cumprimentaram animados.

— Neri, mostre a eles como se faz! - Jona disse.

— A você também! Do que está falando? - Lorodas rebateu chateado.

— Vocês poderiam pedir ajuda pra Aldith - Neri começou, sorrindo. - Ela arremessa pães velhos como ninguém.

O grupo riu. Jona pegou o arco, com uma flecha posta torta no meio, e o passou para a espiã. Neri ajeitou a flecha e esticou o braço.

— Você precisa alinhar o cotovelo e controlar sua respiração - encarou o alvo através da corda do arco. - Com o tempo você se acostumará com a distância e a altura de sua flecha - então soltou-a e a fincou no meio da placa.

— Oh! Você nasceu com o talento, não adianta tentar nos explicar mesmo… - Lorodas suspirou, maravilhado pela precisão da flecha.

Jona e a nova ajudante de Aldith – Neri descobriu a informação dias atrás– bateram palmas, parabenizando-a pelo feito. A espiã sorriu, mas não queria receber palmas da garota. Afastou o pensamento, era estranho não gostar de alguém em pouco tempo. Então não gostava dela? Talvez fosse apenas um pressentimento errado. Concentrou sua mente de volta na placa a metros dali, com a flecha no meio da área vermelha.

— Estão praticando para o Torneio de Verão?

— Exato - Jona respondeu. - Você nunca participou, não é? Deveria, mas longe de nós, porque…

— Não queremos perder de imediato - Alexander balançou a cabeça positivamente.

Neri sorriu e concordou, sentindo os olhos de Belchior a atingirem por um momento. Fique quieto, Belch….

— Se quiserem minha ajuda, posso vir durante meus intervalos de refeição - disse gentilmente.

— Venha, a mira precária de Lorodas agradecerá - Jona sorriu com os outros, menos com o cozinheiro, que pegou uma flecha e a quicou na cabeça do amigo. - Lorodas!

— Tenho que ir agora - Neri começou a se virar. - Tenham um bom treino - e saiu, acenando duas vezes antes de se afastar completamente.

As vozes do grupo se despediram em coral enquanto voltava para o castelo. Um formigamento percorria levemente o corpo de Neri. Aquela garota era realmente bonita… Combinava com o porte elegante de Belchior. Suspirou, retornando seus pensamentos a coisas que realmente importavam, como seu próprio treino que não dera resultado algum. Voltaria à floresta de antes e passaria todo o seu tempo lá até que fosse capaz de transportar algo com o ar. Até que fosse capaz de se sentir um pouco menos pequena.


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