Lionhearted escrita por Karenina


Capítulo 3
Contra as probabilidades




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‘Não preciso olhar para o céu para ver as estrelas quando posso olhar para seus olhos’ deveria ser uma frase proibida em qualquer lugar e especialmente naquele momento, em que Cullen Rutherford seria capaz de dar um pedaço de seu reino em troca do céu estrelado para que ele não pudesse ver aqueles cinco segundos de preocupação que cintilavam nos olhos cinza que pairavam acima dele emoldurados por cabelos que lembravam cinzas. Quando aquele olhar se desviou dos olhos dele e veio com um sorriso de esperança ele respirou aliviado. Em troca, ele apenas encarou a escuridão de sua consciência, um lugar que ele andava evitando visitar.

****

Naquele dia mais cedo, Sophie caminhou pelas sombras, seguindo o resto de uma estrada que conduzia a Redcliffe, ou assim ela entendeu pelas placas que indicavam o caminho. De um lado, árvores queimadas; no meio, uma trilha de lama; do outro, um muro de pedra antiga com intervalos quebrados coberto aqui e ali com musgo. Além dos pinheiros, abaixo, a paisagem se estendia pelo vale e ela avistou o que parecia ser uma pequena vila ganhar forma, uma imensa estátua de pedra, uma cachoeira escondida e o que deve ter sido uma fazenda pequena, com o solo negro queimado por fogo mágico. Fazia séculos que ela tinha pisado nesse país, a Ferelden que ela tinha em mente era muito diferente desta aqui, marcada por uma Blight e agora por uma guerra entre magos e Templários.

Ela não era acostumada a topar com cadáveres, mas das Frostback até aqui, a morte parecia ser uma companhia constante. A guerra vitimava qualquer um, e não raro ela encontrava carcaças de cavalos ou animais de estimação, brinquedos, carroças quebradas e toda a sorte de objetos pessoais. O gado mutilado se espalhava pelos campos, e com o calor, os insetos os devoravam em nuvens, rondando a carniça, voando e zumbindo. Havia uma espécie de calmaria no ar, mas era enganosa, afinal além de Templários que poderia saber que ela era um mago, existia bandidos, mercenários e até mesmo as pessoas comuns que fariam de tudo para proteger o que eram deles. Ao longe ela via o que parecia ser ruínas, resquícios da última e de todas as outras blights que Thedas tinha sofrido durante as eras passadas. Muitas dessas ruínas consistiam em muralhas militares, fortalezas, construídas com sólidas vigas de madeiras, pedra grossa, e detalhes arquitetônicos saídos de Tevinter, que um dia foi grande e dominou aquele pedaço do continente.

Ela sentiu o cheiro de sangue, deu mais alguns passos e se deparou com os corpos de dois homens e uma mulher, vestido com roupas civis, mortos a golpe de espadas, caídos na base do muro. Ela deduziu que eram magos, tentando chegar a Redcliffe talvez ou fugindo para outro lugar. Os cadáveres, como se apresentavam no barro, haviam sido executados com os punhos para trás atados com cordas. Próximo deles jazia os pedaços de cajados e uma mochila aberta, seu conteúdo espalhado pelo chão: Algumas ervas secas, poções de lyrium e cura, um inibidor de magia quebrado em pedaços com os elos da fina corrente prateada partida. Mas o que chamou a atenção foi a pequena pedra com veias de lyrium infundido: uma glowstone. Em uma parede, adjacente ao que parecia ser a execução, foi pintado o desenho da espada flamejante, o símbolo dos templários. Ela parou, fechou os olhos em uma silenciosa oração pela alma daqueles três.

Pobres bastardos. Ferelden sempre foi uma terra de histórias com superstições e contos antigos especialmente com relação aos magos. Sophie se lembra de uma antiga história que sua mãe contava, tal lembrança uma das poucas que sobraram, muito mais forte do que a voz que contava. Sobre Witchwood e de que crianças não deveriam ir além do limite da floresta enquanto buscava lenha. Uma bruxa vivia ali e comia criancinhas no café da manhã. Mas claro que isso combinava com a imagem que o pessoal costumava ter. Ela sabia muito bem a ideia que o pessoal fora da torre tinha. Se fosse um mago ruim, a primeira imagem que vinha a cabeça era a de uma velha com verrugas, morando em algum lugar estranho da floresta, cabelos brancos e bagunçados, fazendo sacrifícios envolvendo crianças, escondida nas sombras, dançando ao luar e invocando demônios ou alguém de Tevinter. Se fosse bom, seria um velhinho baixinho, cabelos brancos e olhar bondoso, com a barba abençoada a ponto de se trançar flores nela e livros gigantes, empoeirados debaixo do braço, enquanto usava o cajado como apoio e túnica. Nunca se esqueça da túnica.

Ela por si só não era exatamente a ideia de mago que se tinham. Embora o cabelo e os olhos fossem cinzas, ela mais lembrava alguém elegante, transcendente até ou estranha, misteriosa. Ivan por outro lado, era o contrário dela; quantas vezes ela não ouviu as garotas dizendo que ele era bonito? Comentário que sempre a fazia rir. Ou sofrer de vergonha alheia quando certa vez ela ouviu " Criador, se eu pudesse eu o montaria como um cavalo."

Sophie percorreu a muralha, chegando a uma parte da via. Ela parou, olhou em volta. A chuva voltou a cair, os pingos formando poças, encharcando o lamaçal; andou por uma pequena trilha que levava ao alto, através de uma ravina que desembocava em outra floresta. Cercada por colinas rochosas, tinha as árvores muito próximas, os pinheiros quase espremidos. A temperatura despencou um pouco.

Vez ou outra durante o caminho, ela parava, seja para beber água de algum córrego ou para recuperar o fôlego, ela achou um pequeno lago com alguns peixes e pegou um, suficiente para cozinhar em uma pequena fogueira. Claro que ela não poderia ficar nisso o tempo todo, cada vez que ela parava, ela olhava por cima do ombro, torcendo para que ninguém a encontrasse.  

Os olhos dela se abriram ao perceber a ruína a frente dela. A ponte principal estava destruída, mas a torre principal parecia ter aguentado muito mais do que deveria, permanecendo de pé, exceto por uma parte do telhado. Quantas memórias aquele lugar poderia guardar? Ela se lembrou das histórias que Solas tinha contado nas conversas que teve com ele sobre o Fade. Sobre lugares antigos guardarem memórias que poderiam ser vividas no Fade. Era tão diferente do que a Chantry ensinava nos Círculos: como se o Fade fosse apenas um lugar vil, perigoso e que deveria ser temido. Para ela, o Fade foi sinônimo de liberdade, sonhos inalcançáveis. E tentações: Espíritos - assim como Solas explicou - que tentam a todo custo se comunicar com nosso mundo e são subvertidos por aqueles com que se comunicam, por aqueles que negam seu propósito original: Amor que se torna desejo; justiça que se torna vingança e fúria; admiração que se torna inveja. Magos andavam na tênue linha entre os dois propósitos quando estavam no Fade.

O lugar, silencioso, parecia deserto. Nenhuma alma viva nas redondezas. Havia uma grande árvore no centro do pátio, a erva tomando conta do chão junto com o musgo. Elfroot se espalhava por um canto. O que parecia ser o resto de um antigo e rústico acampamento jazia ali, esquecido. Seja lá quem fosse, já tinha ido a muito deixando para trás apenas uma pequena caixa com alguns mapas dentro de um lugar que ela não reconhecia, muito parecido com uma série de túneis. Ela entrou no lugar, o som da chuva batendo na pedra em um doce ritmo, o cheiro da terra e então ela percebeu: O som tinha sumido, o vento silenciou, a chuva parecia ter parado, um grilo em algum lugar próximo se calou. O véu ali era fino e ela viu além do véu, a memória como uma sombra de muito tempo atrás.

Por todo o terreno, brotavam, um após o outro, corpos em decomposição, empalados com estacas de madeira, os olhos fitando o céu, o rosto contorcido em agonia. Soldados, bandidos, homens e mulheres, jovens e adultos. Mortos em períodos desiguais, vários com o esqueleto à mostra, outros com os músculos secos. O véu era tão suave ali, que os espíritos do Fade não estavam sussurrando: eles gritavam, berravam, sacudiam o véu, de forma tão dolorosa aos ouvidos de Sophie que ela levou as mãos aos ouvidos caindo em seus joelhos na pedra, como se isso pudesse de alguma forma parar o som.

O braço dela se sacudiu em um pulso quando a mão esquerda brilhou, a fantasmagórica luz verde como sinal de algo próximo: Uma rift. Uma suave energia emanou pelo lugar. Não era uma força visível ou uma pulsação auditiva, era como se fosse uma presença. Na verdade, quatro.

Ao olhar para cima, ela viu a rift aberta, suspensa no ar. Quatro demônios menores estavam reunidos, o corpo escuro, o olho roxo brilhando embaixo do capuz, as garras prontas para atacar. Avançando na direção dela, Sophie mal teve tempo para se defender. Era como se um pedaço de escuridão a tivesse agredido, antes dela contra-atacar com uma rajada de gelo mais forte do que o normal.

O véu fino a permitia acessar seus poderes com muito mais facilidade do que nunca e o golpe acertou uma de um dos demônios bem no crânio - ou onde deveria ser o crânio, espirrando gosma negra, uma substância que lembrava piche. Emitindo um silvo, cambaleou, antes de ser puxada de volta para a Rift como poeira. Invocando uma barreira de gelo ela focou em tentar fechar a Rift ou de deixarem as três criaturas que sobraram tontas o suficiente para que ela pudesse atacar com facilidade. Dando fim a mais duas, ela percebeu seu erro ao deixar a guarda aberta para a terceira que a acertou na perna, causando uma dor incomum. Com a perna sangrando, o que aconteceu a seguir foi instintivo. O aroma do sangue, a ferida, a sensação de que ia morrer, mais precisamente a união disto tudo fez com que ela usasse grande parte de sua mana. Com os dedos fechados ela segurou o punho da espada de Knight-Enchanter. Não precisava de muito, apenas um pensamento e a lâmina estava lá. Ela atacou a criatura que com poucos golpes sumiu de volta para o Fade. Com a perna dormente, ela suspirou, ergueu o braço apenas para descobrir que não tinha efeito algum. A rift estava se recarregando antes de lançar mais dois espíritos.

Usando o resto da mana, atacou e com suspiro, no fim, fechou a droga da Rift.

Ela estava exausta, tentou caminhar. Deu cinco passos.

Caiu.

Os músculos ardiam. A perna estava sangrando, ela ficou tonta, respirou fundo para não desmaiar. Se levantando com esforço, tentou um fade step para fora do lugar, fugir. Conseguiu.

Ao chegar fora, olhou em volta procurando umas das poções de cura. A sorte não estava do lado dela quando descobriu que os malditos frascos tinham se quebrado durante a luta. Tentou se curar, mas só veio um imenso vazio branco em sua mente. Merda!

O céu seguia claro a oeste, apenas uma linha dourada sublinhando as colinas. A névoa da noite que se aproximava parecia subir. Coçou os olhos. Fechar os olhos agora e encostar a cabeça no chão gelado parecia tão atraente perante a dor da perna. Lágrimas escaparam de seus olhos devido sua estupidez.

O que aconteceu a seguir foi tão inesperado, tão magnífico e ao mesmo tempo tão comum que ela não acreditou a princípio. Pensou que estava delirando, alucinada pela perda de sangue.

O dia estava no fim.

Os últimos raios de sol despontaram como um borrão, em tons dourados e vermelhos, colorindo a ruína e entregando de vez o lugar a escuridão.

Deitada de costas na pedra, ela se entregou a exaustão e ao confortável frio do chão molhado. O cheiro de madeira podre molhada, e dos demônios que o vento se encarregava de levar foi substituído pelo de elfroot e orvalho. Fechou os olhos e deu um sorriso torto.

Se não fosse pela ferida na perna, Sophie teria se salvado.

Antes de desfalecer, ela teve certeza de ter ouvido o som de passos rápidos na direção dela. Cheiro de flor de sabugueiro e musgo de carvalho invadiu o nariz dela. E ela se arrepiou.

Ela preferia morrer do que ser derrotada por um Templário.

****

Cullen deu um suspiro resignado, uma prece silenciosa quando se abaixou para observar as marcas no chão. Ele tinha começado a seguir a trilha como um maldito perdigueiro de caça, agradecendo pelo fato de tudo está fácil demais. Quase como se ela não estivesse fugindo. Quase como se quisesse que fosse seguida.  Abaixado, Cullen inclinou a cabeça antes de olhar em volta atenciosamente; ele então se levantou e seguiu na direção que a trilha que ela tinha deixado levava. Não era muita coisa, mas ele agradecia pelo fato de ser o suficiente para ele não precisar utilizar um filactério e de ter se mantido quase intacta mesmo com a diferença de horas.

Para os olhos comuns era apenas mais uma pegada, um galho partido, uma teia de aranha destruída, mas para ele era um sinal que tornava não só a dela, mas qualquer captura um pouco mais fácil. Olhando em direção ao céu ele avistou os pequenos pontos negros se movendo no céu riscado por nuvens. Os pássaros descreviam círculos voando lentamente. De súbito interrompiam o voo e desciam, para logo, em seguida, voltarem a se erguer com um bater de asas. Ele as observou por um tempo e caminhou.

A ravina era uma terra de ninguém. As copas das árvores estavam secas, sem espinhos nem troncos apodrecidos. A neve ia desaparecendo aos poucos, deixando todo o caminho apenas um lamaçal. Atravessando a ravina com facilidade, ele caminhou pela campina.

Com uma mão descansando no punho da espada, ele atravessou calmamente. Acima, assustadas pela aparição de Cullen, as árvores passaram a voar mais alto, soltando estridentes grasnados. Totalmente alerta, ele viu os corpos caídos no caminho. Mais longe, havia um outro, onde três lobos, sentados sobre as patas traseiras, apenas o observavam calmamente.

Cullen se afastou, seguindo seu caminho enquanto um pensamento se formava em sua mente. Nós estamos em Guerra, ele dizia a si mesmo. Era fácil de esquecer, não? O silêncio do lugar só era quebrado pelo som dos gritos e das espadas cruzadas em algum lugar mais ao longe, o vento agia como um mensageiro de um mau presságio. As árvores, as cores das Hinterlands só eram quebradas pelos corpos que surgiam aqui e ali e não precisava olhar duas vezes para saber que tanto os lobos como os pássaros estiveram ocupados.

Redcliffe. Sophie estava indo em direção à Redcliffe.

Por um segundo, ele pensou que poderia ser para se juntar a rebelião dos magos que se abrigou lá, mas havia essa hipótese sussurrando em suas orelhas de que o motivo não era tão simples.

No fim da tarde, ele percebeu que estava cada vez mais próximo de encontrá-la. Os arredores eram despovoados, selvagens, inóspitos e ameaçadores e ele esperava encontrá-la ao anoitecer. Ele então encontrou o que procurava. Cullen viu a torre antiga acima das árvores, no topo de uma elevação que ele alcançou cortando a curva de uma sinuosa trilha. E cada parte dele se arrepiou com a quantidade de magia que o chamava, ou melhor, que chamava o resto de Lyrium que corria no sangue dele. Com os dentes cerrados, Cada parte dele gritava que algo ali estava errado. Muito errado.

Ele praticamente correu na direção daquilo, a cada passo reconhecendo quem tinha causado aquilo. Sophie. E algo mais. O mesmo tipo que ele encarou por exatamente três dias - e que o quase o levou à exaustão e a querer voltar a utilizar o Lyrium - no Templo das Cinzas Sagradas. Demônios. Rift. Uma maldição escapou de seus lábios. Mas quando chegou a Calenhad's Foothold, o silêncio parecia indicar que nada tinha acontecido ali. A magia era um vestígio que sumia. A energia tão característica da Brecha, desapareceu. E então ele viu alguém deitado no chão. Sophie Trevelyan. Acelerando o passo, ele desejou: Não, não, não morra agora.

****

When waked, we walked where willows wail,

whose withered windings wont wassail

Sophie despertou com o perfume de terra molhada. Era noite e chovia fraco - uma noite fria, sem lua ou estrelas, com os pingos estalando nas telhas partidas. Ela experimentou uma sensação esquisita, de reconforto e disposição, parecida com aquela depois de uma crise de febre, quando o corpo aquece e a energia retorna. O corpo não doía, a perna estava enfaixada. Ela estava em um saco de dormir, coberta pelo casaco dela, suficientemente quente para protegê-la do orvalho. As gotas caíam através de um buraco no teto, formando poças cristalinas entre as rochas de Calehad's Foothold.

When wishing waned, we wighters warred.

A fonte de luz vinha de uma fogueira acesa por Cullen, que encontrara outra área seca para descansar. Ele estava sentado sobre uma viga de carvalho, mexendo com um graveto as brasas da fogueira. Junto dele, a espada descansava com a alça da bainha indo em direção ao chão, e agora, o Comandante apenas contemplava as chamas que criavam sombras em seu rosto enquanto seus lábios se moviam em palavras num tom tão baixo que parecia um sussurro, enquanto que nos dedos uma pedra de afiar se movia de uma mão para a outra. Ele estava diferente, não era o Comandante em armadura completa e cabelo arrumado que ela sempre observava treinando os soldados. Ele usava uma jaqueta simples de couro, luvas de cavalaria e o cabelo bagunçado com alguns cachos. Dois segundos e nunca imaginaria que ele era o Comandante. A princípio ela achava que ele recitava mais uma oração, mas a melodia tão antiga surgiu, algo da infância, que a mãe dela costumava cantar como canção de ninar.

"When wolfen wan, we wastrel warred.", ela falou, enquanto se sentava e olhava em direção a ele.

"Arauto de Andraste." Ele disse, o som das sílabas soando de forma deliciosa em sua voz calma carregada com o sotaque de Ferelden. "Eu não sabia que cantavam isto em Ostwick" o Comandante se mostrou descrente. "Não é exatamente algo conhecido."

"Eu não sou exatamente de Ostwick, sabe?"

"Não? De onde é então, Trevelyan?"

"Ferelden. Meu pai me adotou quando eu era uma criança. Ele me salvou de uma vila em chamas e resolveu cuidar de mim. E você, Cullen? Eu suponho que não seja de Kirkwall.", ela falou em um tom desafiador de quem sabia muito mais do que dizia.

"Não... Ferelden. Honnleath.", ele disse enquanto desviava o olhar e esfregava o pescoço.

Sophie o olhou de cima a baixo, curiosa sobre ele. Uma voz em seu interior dizendo para dar uma chance, para ter um pouco de paciência e tentar observá-lo de outra maneira. Mas não era uma tarefa fácil. Como se a primeira impressão sobre ele fosse tão permanente quanto um fantasma pairando acima da cabeça dela.

"Como me achou? Até onde sei nenhum de vocês tem meu filactério."

"Acho que não te ensinaram como fugir em Ostwick. Você deixou uma trilha em direção a Redcliffe que..."

"Eu não estava fugindo." Ela olhou para ele, o olhar e o tom de voz tão afiado quanto uma faca.

"Não? E então?"

"E então que não é da sua conta." Ela desviou o olhar.

"Se você tivesse dito o que gostaria de fazer em Redcliffe enquanto estávamos em Haven, nós poderíamos ter lhe ajudado, sabe? Nenhum de nós tem a mínima noção do que você poderia fazer lá além de querer se juntar a Rebelião."

"Eu não ia me juntar a rebelião." Ela voltou o olhar para ele, encarando-o. "Como eu disse, não é da sua conta."

"Agora você está agindo como uma criança mimada."

"E você como um estúpido."

Sophie mordeu a língua assim que as palavras saíram de sua boca.

"Vê a Brecha no Céu? Pessoas morreram por causa daquilo, pessoas ainda morrerão enquanto aquilo não for fechado." Havia um certo cansaço na voz dele. "Você não precisa ser um herói, não precisa ser a Arauto de Andraste. Eu - quero dizer, nós - apenas precisamos de você. Precisamos da Sophie Trevelyan. Aquilo não pode ser fechado sem você."

Sophie apenas rolou os olhos e ficou em silêncio. Que educado. Por um segundo, ela quase sentiu pena pelo seu pedido e "Não pode ser feito sem você". Deve ter custado muito a orgulho dele este pequeno golpe.

Ele apenas suspirou, antes de virar em direção a fogueira e mexer as brasas com um graveto.

"Você não é um templário como os outros em Haven. Embora você tenha me dito nas últimas semanas que não é mais um. Por que saiu da ordem?"

"Fala como se fosse algo ruim. Porque se importa em perguntar? ”, ele lançou uma pinha à fogueira. "A ordem não tinha mais nada a me oferecer. E eu não tinha mais... " ele se perdeu no pensamento. Ele não tinha mais nada a dar a ordem. Ele não tinha mais como olhar para si mesmo e não assumir que ele tinha culpa na maneira como ele via e ainda ver os magos. Como uma sombra no canto da mente que vez o outra o domina e o preenche com medo. Aqui na frente de Sophie, ele ainda estava desconfiado do que ela faria com ele se ele não tivesse suprimido a magia dela. Covarde, talvez fosse a palavra correta e talvez ele estivesse pegando leve consigo mesmo. "Você nunca entenderia."

"Tente."

"Será melhor se não te contar a história da minha vida."

"Porque não me surpreende que tenha dado essa resposta?", ela falou com um sorriso. "Esta guerra é apenas oportuna. E ainda por cima tem a Brecha. E enquanto Templários e Magos tentam se matar, outros sofrem no fogo cruzado."

"A Inquisição tenta arbitrar o conflito.", Cullen falou.

"Baseado em quê? No que a Chantry considera certo? No que o Criador ou o cântico da luz diz? Eu não posso confiar na fé quando ela precisa de uma arma cuja munição justifica o errado. Aqui estou tentando imaginar qual critério que a Inquisição está usando para dizer o que é certo e errado. O que você usa para dizer o que é certo e errado."

"Eu...”, e ele pensou por alguns segundos, preso na ideia de que ele não era a melhor pessoa para falar sobre isso. Então, ele falou, como uma lição para si mesmo. “Certo é um só um conceito. Seu verdadeiro significado transcende qualquer pensamento, está além da ideia de ser ou não ser." ele alimentou o fogo. "A Inquisição quer ajudar aquele pessoal que está lá embaixo no vale. Fechar a Brecha no céu e tentar achar quem é o culpado. Quer ajudar baseado nisso? Decida por você mesma. Se magos e Templários estão se matando, não é o Criador que devemos culpar."

Sophie guardou silêncio por vários minutos, vislumbrando o crepitar da fogueira. Talvez ele tivesse razão, talvez ela precisasse apenas ajudar. Mas talvez estas decisões viessem com o tempo, embora por enquanto ela não conseguisse esperar. De outro ponto de vista, talvez fosse necessário aprender a fazer as decisões só, sem esperar. O círculo tem um certo poder: Ele te torna incrivelmente submisso em relação ao mundo. Os Templários apenas te mantém sob constante vigilância e lhe mantém em uma coleira e uma focinheira. Não importa quão severa fosse a situação, se continuar a ficar nela, todas as coisas são aceitas como parte do dia a dia. Não à toa, foi preciso que alguém fora do círculo funcionasse como um gatilho para que a estrada chegasse até aqui. E mesmo que o Círculo de Ostwick fosse diferente, ela sabia os rumores que ocorriam. Todo mundo sabia sobre Kinloch Hold - e de como ninguém fez uma revolução naquela época- e pelo que todo mundo falava, Kirkwall era um terrível pesadelo. Ela suspirou. " Então devo culpar sua ordem? Me fale, você saiu da ordem para tentar se livrar da culpa?"

"Eu sei qual o tamanho de meu fardo, Trevelyan, e eu não estou tentando me livrar dele."

O silêncio preencheu o vazio entre os dois novamente, se esticando para muito além daquela ruína. Ela o observou com curiosidade. Talvez ele não fosse tão ruim, ainda assim, ela preferia manter a desconfiança em relação a ele. Ela olhou em direção a perna, enfaixada com quase nenhuma mancha de sangue mostrando que o Comandante tinha feito um excelente trabalho. Estava sarando, mas lentamente. Ela tentou invocar alguma mana para tentar curar um pouco e foi quando ela percebeu algo faltando.

"Como está a perna?", Cullen perguntou.

"Me dê minha maldita magia de volta!", ela se levantou, se colocando de pé, as mãos em soco, irritada.

"Eu não acho que seja..."

Antes que ele completasse a frase, ela avançou na direção dele e ele recuou com rapidez. Antes que ele percebesse, um soco o atingiu no estômago. "Eu posso não ter magia, filho de uma puta, mas eu ainda posso acrescentar mais umas cicatrizes ao seu maldito rosto!"

Naquele instante, ele deu alguns passos para trás quando ela tentou acertá-lo novamente, apenas para que ele segurasse a mão dela fechada em um punho. "Pare! Acha que a Marca na sua mão lhe dá permissão..."

"Me. Dê. Minha. Magia. De volta, Cullen Rutherford!" Ela se afastou dele, caminhou alguns passos ficando de costas para ele. As mãos apertadas em punho de tal forma que as unhas quase cortavam as palmas. Ela soltou o ar lentamente, contando até dez tentando dissipar a raiva. Ficou em silêncio.

"Eu peço desculpas...", ele começou.

"Sim? E espera que eu te desculpe?"

"Não, eu espero que compreenda."

Ela deu um riso sarcástico. Se virou para encará-lo. Ele estava com os braços cruzados, as sobrancelhas enrugadas, numa expressão descontente. Ela grunhiu antes de avançar na direção dele e apontar o dedo na direção dele e ficar em silêncio, engolindo a maldição que pensava em falar.

Ela se lançou em direção ao saco de dormir novamente, sentou-se com os braços encostados nos joelhos, os dentes rangendo como se faltasse um maldito pedaço dela e isto estivesse coçando embaixo da pele dela, um incômodo.

"Meu irmão."

"Hein?", ele perguntou, se sentando próximo da fogueira, olhando-a sem entender.

"Você perguntou porque estava indo para Redcliffe. Meu irmão."

"Ele é um mago?"

"Não. Ele era o Capitão Templário da Torre de Ostwick. Esperava encontrar algum mago que soubesse o paradeiro dele. Pensava em encontrá-lo no Conclave, mas curiosamente ele não estava. E eu imagino que tenha acontecido o pior."

"Podemos te ajudar a encontrá-lo.", ele falou. Inclinou a cabeça, empatia nas palavras. “Embora eu ache que um Templário não esteja em Redcliffe agora. ”

"Podem?", ela o observou com um brilho nos olhos. “Qualquer notícia sobre Ivan acalmaria meu coração. Desde o Conclave minha mente anda em círculos imaginando onde ele podia estar.", ela olhou em direção a ele, evitando os olhos.

Ele deu um sorriso leve. "Vou ficar de guarda pela noite. Tente dormir um pouco, Trevelyan. Amanhã cedo nós partimos."

Sophie se deitou, o observando enquanto fechava os olhos. O sono a carregando mais rápido do que imaginava. Enquanto isto, Cullen permanecia ali, olhando a fogueira, ele deu um olhar na direção dela. Apoiou os braços no joelho e abaixou a cabeça levando a mão aos cabelos antes de retirar um inibidor de dentro da camisa que usava. O cristal brilhava e pulsava com um brilho azulado lembrando-o Lyrium. Ele balançou a cabeça, afastando o pensamento. Não, fique aí.

Olhando para fora, o vento uivava entre as ruínas e parecia chamar o nome dele em um tom suave que lembrava alguém do passado que sempre atormentava seus sonhos. Ou era atrás do véu?

Cullen... você chorou e eu vim correndo, me diga, é meu sorriso ou minhas garras que são afiadas?

Ele fechou os olhos, fez um som com a ponta da língua no céu da boca e virou a cabeça para olhar para as chamas novamente enquanto um arrepio o percorria. Ele se concentrou naquela luz como se fosse a única coisa que o prendesse a este mundo, porque ele tinha certeza, que se olhasse para o lado, para onde uma certa voz sussurrava baixinho em suas orelhas, ele veria seus pesadelos tomarem forma. Tirando a moeda do bolso, ele apenas a girou entre os dedos, ansioso, enquanto cantarolava apenas para si mesmo as palavras do cântico de luz que, por agora, ainda soavam como conforto.

Devia ter se passado algumas horas quando tudo começou. Veio sem aviso, puxando Sophie de um pesadelo onde encontrava seu irmão preso e de uma forma irreconhecível. Parado em meio a um campo coberto de mortos. Quando ela abriu os olhos, assustada, o grito foi suprimido pela mão de Cullen em sua boca e ele estava acima dela. Por alguns segundos quando ele viu que ela não ia gritar ele levou um dedo sobre os lábios, pedindo silêncio. O escudo estava preso em suas costas e a espada estava na sua outra mão. A questão sobre o motivo ficou presa em sua garganta. A fogueira estava apagada, e ela se levantou silenciosamente caminhando atrás dele.

Chegando a saída, ele se colocou contra a parede.

"O que foi?", ela sussurrou.

"Templários."

"Você pode pedir para eles nos deixar, não?"

"Se eles estão aqui não atenderam as ordens para ir à Orlais. Acha que eles aceitariam as minhas?"

Ela o observou irritada com a situação, rolando os olhos.

" Merda." Ela observou.

Cullen esfregou o pescoço, nervoso. Estava intrigado. Aqueles Templários não estavam apenas infringindo ordens, havia algo de estranho neles. Um certo zumbido que fazia sua cabeça doer. Havia um certo jeito no comportamento dele que não era usual; uma certa conduta que não se encaixava no procedimento da ordem. Um dos Templários era claramente um guerreiro, os outros dois pareciam ser arqueiros e ele praguejou mentalmente diante disso.

“Nós estivemos dando voltas por aqui e não encontramos nada”, alguém gemeu, um homem com um timbre profundo na voz.

“Eles estão em algum lugar, continue procurando”, um outro disse com um sotaque forte de alguém de Ferelden.

“Eles estão longe, Kalen, olhe para essas marcas, elas têm pelo menos um dia. Os magos foram embora, provavelmente para Redcliffe para implorar por santuário. Nós devíamos voltar. ” A terceira voz falou, uma voz bem jovem.

“Não”, gritou Kalen. “Esses ratos mataram Gideon e Gregory, não podemos deixá-los simplesmente ir. Se espalhe e procurem. ”

Cullen olhou antes de tentar espreitar por trás do grupo e fugir dali. Fazendo um aceno para que Sophie o seguisse. Quando estava próximo, ele apenas ouviu a voz em direção a eles, os fazendo parar nos passos.

"Veja os dois ratinhos que acabamos de encontrar...", o Templário caminhou na direção deles.

****

Sophie se inclinou para a frente enquanto o Templário que prendeu Cullen e ela empurravam ambos para o meio do pátio da ruína, os joelhos arranhando no chão ao lado de Cullen. Ela mordeu o lábio em um grito de dor quando seu tornozelo bate em uma pedra particularmente afiada. Ela observou os Templários e pensou que provavelmente eram eles que mataram os magos que tinha encontrado anteriormente. Tal pensamento fez com que seus dentes se apertassem de tal forma que ela achava que a mandíbula dela poderia estalar. Quando ela olhou de soslaio para Cullen, não pode deixar de notar a raiva brilhando em seu olhar.

“Tentando escapar? ” O templário falou novamente, a ponta da espada se movendo para descansar contra o pescoço de Sophie quando ele sem dúvida sentiu uma tentativa por parte dela de invocar mágica. Ela certamente podia sentir o Lyrium irradiando dele. Fallin e os outros Templários se aproximaram, um sorriso de satisfação no rosto deles.

“Não é um dos que estávamos procurando, é? ”

Kalen balançou a cabeça e seus olhos examinaram cuidadosamente o rosto de Sophie. “Não, não é, mas é um mago. Bom trabalho Faulk, e quem é esse? ”

A armadura de Faulk fez um barulho quando ele deu de ombros. “Não sei, o encontrei com ela. ”

Kalen avançou e desembainhou a espada colocando a ponta sob a mandíbula de Cullen e levantando o rosto dele. Kalen estudou por alguns segundos, em seguida, removeu a lâmina de aço raspando contra o queixo.

“Ele não tem utilidade para nós. O mago é quem queremos. ” Kalen disse, jogando uma corda para Faulk. “Amarre-os. ”

Faulk se ajoelhou atrás de Sophie e rapidamente amarrou os pulsos juntos apertando a corda até que ela machucasse sua pele. Cullen recebeu o mesmo tratamento e ele estremeceu com a aspereza de seus laços.

“Faulk, ela é sua. ” Kalen zombou. Sophie abriu os olhos em desespero quando Faulk apareceu em sua linha de visão, sua língua molhando os lábios rachados enquanto os lambia antecipadamente. Ao lado dela Cullen endureceu.

“Ela está um pouquinho assustada, mas dá para o gasto. ” Faulk a olhou com curiosidade se inclinando para agarra o queixo de Sophie entre seu polegar e o indicador. Suas unhas estavam cheias de sujeira e manchas de sangue. “Ela parece bonita e tem uma pele macia, muito bonita, embora eu suspeite que ela ficará muito melhor com o que colocarei entre seus lábios. “ Ele deu um riso doentio, um que prometia uma quantidade de dor que ele iria gostar de infligir.

Sophie juntou saliva em sua boca e cuspiu no rosto sorridente de Faulk.

“Ah! Sua pequena…”ele levantou o braço para golpeá-la, mas Kalen agarrou seu pulso e o deixou suspenso no ar.

“Calma irmão, poderia haver mais do que esses dois lá fora, precisamos ter certeza que nós não estamos cercados. “

Faulk deu um olhar desafiador em direção a Kalen, mas deixou sua mão cair de volta para junto dele, embora seus olhos permanecessem em Sophie.

“Vá com Torien e faça uma busca no perímetro. Vou ficar aqui com estes dois”, Kalen ordenou. Faulk apertou a espada enquanto o Templário que se chamava Torien tirava uma flecha da aljava e ambos desapareceram nos bosques em volta do lugar. Os ombros de Cullen se contraíram enquanto ele tentava liberar as mãos, mas os nós de Faulk se mantinham firmes mesmos com todos os seus esforços. Sophie, por outro lado, permaneceu imóvel, deixando seu olhar penetrar nos de Kalen. Os olhos brilhantes e maldosos do Templários encontraram os olhos cinza dela com veemência e os lábios de Kalen se contraíram em um grunhido.

“Tentando me amaldiçoar, Mago? ”

Sophie sorriu em resposta e deixou que seus ombros se erguessem em um meio dar de ombros. Os olhos de Kalen se estreitaram e sua boca diminuiu.

“Continue fazendo isso e sua cabeça rolará pelo chão em um único golpe. ”

“Eu gostaria de ver você tentar, ” Sophie respondeu. Kalen deu um passo à frente e envolveu uma mão enluvada na frente do casaco de Sophie puxando-a para tão próximo dele quase nariz com nariz.

“Você parece ser durona, mas eu vou gostar de ver o que o Faulk fará com você. Eu acho que eles vão te ouvir daqui até Redcliffe.”

Sophie rosnou e sua visão se tornou turva. Ela sentiu a estática dos raios começarem a arrepiar sua pele. Você está morto Kalen... você está morto. Tudo ficou preto e seu corpo parecia como se tivesse batido em uma parede. Um zumbido ensurdeceu suas orelhas em uma rápida sucessão junto com seu pulso pesado. Ela piscou cegamente, sua bochecha pressionando no chão, algo suspeitosamente quente escorrendo em sua testa. Ela gemeu enquanto seu estômago se revolvia em uma náusea. Que merda?!

Quando seus ouvidos voltaram ao normal, ela ouviu um riso desarticulado, em um timbre de excitação maníaca e cada vez mais alto a cada segundo. Lentamente, a escuridão que tinha tomado seus olhos começou a se dissipar e o lugar onde estavam voltou a sua visão, confusa e fora de foco, antes que tudo se reafirmasse. Ela piscou novamente, tentando olhar em volta, mas achando incrivelmente difícil pelo fato de que ela estava aparentemente deitada no chão.

“Och, faz algum tempo desde que vi um purge tão forte. Como você não está usando armadura? É um desertor como o resto de nós? Não, você me parece muito certinho para ser um desertor. ”

“Soldado, como antigo Cavaleiro-Comandante de Kirkwall, eu ordeno...”

“Ah não, ninguém está obedecendo ordens por aqui. E ninguém que esteja usando armaduras aqui realmente se importa com o que acontece quanto a Ordem. Você não vai ganhar nenhum tratamento especial aqui. Pelo menos, você cuidou dessa vadia para mim. ”

Pelo menos você cuidou desta... não, maldito bastardo. Sophie se esforçou tentando se sentar, só conseguindo se sujar ainda mais com a poeira em meio a grunhidos frustrados. Um par de mão ásperas e desajeitadas a segurou nos braços e a puxou para trás. Ela se encontrou novamente de joelhos, um pouco mais desconfortável que antes pelo jeito que ela se deixou cair para a frente ligeiramente. Kalen saiu de trás dela, o Templário ainda estava rindo.

“Parece que te acertaram direito, mas você que mereceu. Você e o resto dos malditos apóstatas que se espalham pela terra como os ratos que são. VocÊ apenas está colhendo o que plantou, pode esperar. ” Kalen cuspiu, por pouco não acertando as calças de Sophie. Sophie apertou os dentes e olhou furiosamente quando o Templário se afastou deles para se sentar nos degraus que levava ao prédio principal, apoiando sua espada nos joelhos.

Sophie se virou para olhar para Cullen, sua mandíbula estralando com raiva enquanto ela assumia o modo como ele a estava considerando. Porém, ela não pode deixar de notar que ele balançou a cabeça rapidamente com os olhos fechados enquanto chiava por entre os dentes em uma expressão desconfortável.

“Você, ” ela cuspiu, chocada e indignada por ele ter ousado drenar a magia dela. “Foda-se.”

Cullen balançou a cabeça lentamente, olhos abertos e a voz quase em um sussurro. “Eu tinha que fazer isso. Você estava perdendo a calma, foi uma reação natural. ”

“Perdendo a calma? Você ouviu o que ele disse? Eles vão me entregar nas mãos daquele... daquele...” Sophie engasgou as palavras, incapaz de terminar a frase.

“Sei o que ela disse, mas cutucá-la não vai nos ajudar. ”

Sophie riu amargamente. “Eu não esperaria que você entendesse. Foi uma reação natural para você fazer isso comigo. E vocês todos usam a mesma armadura no fim das contas. ”

“Eu não sou nada como eles. ” Cullen silvou com os olhos piscando. “Eu nunca tratei magos como eles tratam você. ”

Sophie zombou e desviou o olhar. “Aposto, ” ela murmurou. Ela não queria admitir, mas doía que ele usasse suas habilidades nela. Faulk e Torien voltaram alguns minutos depois para conversar com Kalen, suas vozes tão abafadas que ela não conseguia entender. Sophie sentiu um arrepio atravessá-la enquanto Faulk lhe dirigia um olhar malicioso.

“Você pode queimar sua corda? ” A voz de Cullen estava tão baixa que ela quase não ouviu.

“O que? ”

“Eu disse: Você pode queimar sua corda? Você pode se libertar? ”

Sophie olhou para ele. “Você quer mais prática para me neutralizar? ”

Cullen praguejou em voz baixa. “Você já está, Trevelyan. Há um inibidor em meu pescoço. Ele não dá conta de todo seu poder. ”

Sophie deu de ombros em indiferença.

“Tudo bem então, vamos morrer. ” Cullen gritou, seus olhos piscando.

“Oh, não seja dramático, comandante”, Sophie desdenhou. Ela manteve os olhos nos Templários falando nas proximidades, esperando que a conversa deles continuasse por tempo suficiente para que ela e Cullen conseguissem combinar um plano de fuga.

“Sim, eu posso. ”

“Mas você não tem cajado e eu estou sem minha espada, estamos indefesos. ”

“Por favor, ” ela bufou. “Um mago nunca está indefeso. Você por outro lado, estaria morto rapidinho”, ela comentou com uma ponta desdenhosa na voz, notando Cullen ficar tenso de irritação. Talvez ela devesse irritá-lo mais um pouco, como punição por ter dando um Purge nela. “Relaxe, eu vou tentar. Apenas consiga duas espadas rapidamente e não me deixe lutar com estes filhos da puta por conta própria. ”

Cullen assentiu com a cabeça. “Entendido. ”

Sophie colocou as mãos em forma de copo atrás dela e se concentrou em conjurar uma pequena chama. Ela sentiu o calor daquilo contra a pele e então, enquanto ela girou os pulsos para dentro, sentiu que as cordas estavam ficando folgadas. Com um pequeno barulho, elas se soltaram e Sophie observou os Templários cuidadosamente. Eles ainda estavam conversando e ela soltou um pequeno suspiro de alívio. Soltar Cullen é que seria difícil. Não tinha outra opção sem ir até ele e soltá-lo e isto não dava para fazer discretamente.

“Ok”, Sophie disse com o canto da boca. “Eu vou te soltar e você corre como se o Fade estivesse atrás de você, ok? Me traga uma maldita espada. ”

“Tudo bem, ” Cullen falou. “Me tire daqui. ”

Sophie respirou fundo, orou silenciosamente para que ela pudesse ver o dia de amanhã e pulou atrás de Cullen com a mão direita conjurando uma chama. Suas cordas foram soltas em segundos e ele se colocou rapidamente de pé.

Kalen, Torien e Faulk pareciam abismados quando Sophie levantou a mão esquerda na direção deles e conjurou toda a mana dela produzindo uma gaiola estática. Uma bola brilhante de luz branca e roxa se materializou sobre os três parafusos e raios elétricos os derrubaram no chão efetivamente prendendo-os.

“Pensei que você os tinha prendido! ” Faulk gritou enquanto tirava a espada e depois congelou claramente sem saber o que fazer em seguida.

“A puta se soltou! ” Kalen retorquiu seus olhos piscando ansiosamente de um lado para o outro observando os raios que o cercavam. Três Templários contra um pequeno Mago e eles estão tão assustados assim, Sophie pensou com uma ponta de satisfação.

“Arauto! ”

Sua mão direita estendeu a mão automaticamente enquanto Cullen atirava uma espada pelo ar. Ela agarrou o punho e girou a espada, mais do que pronta para a batalha. Cullen se aproximou do lado dela, segurando a espada com as duas mãos.

“Quanto tempo vai durar? ”

“Apenas mais alguns segundos, talvez um pouco mais. Qual deles você quer? ”

Ele parecia confuso com a pergunta, mas então ele entendeu. “Eu fico com aquele”, Cullen disse, acenando para Torien. Sophie grunhiu em aprovação e fixou seu olhar em Kalen.

“Então isso deixa os outros dois para mim. ”

Sem mais delongas, Sophie correu na direção deles conjurando um feitiço de imolação. A grama sob os pés de Kalen e Faulk subitamente explodiu em chamas e os dois gritaram de dor. Eles se arrastaram tentando fugir, mas foram presos ao chão por descargas elétricas.

A gaiola estática fez um som alto e se dissipou deixando o ar com um cheiro de ozônio e queimado. Cullen não perdeu tempo em ir em direção a Torien, se esquivando de uma flecha mal apontada, enquanto que o Templário voltava a esticar o arco. Sophie lançou uma barreira em torno de si mesma enquanto Kalen lutava para se levantar, um corte desagradável na testa escorrendo sangue pelo rosto.

Sua boca estava aberta em um rosnado e seus olhos estavam arregalado em fúria. Um grito inarticulado a deixou e ela se moveu para frente. Atrás dela, Faulk estava de bruços. Sophie não teve tempo de se perguntar se ele estava morto ou não antes que a espada de Kalen cortasse bem na frente de seu rosto. Ela pulou para trás, apenas evitando um arco que a teria dividido em dois.

“Venha aqui, mago! ”

Sophie usou a espada para bloquear outro ataque, a força dele a fazendo deslizar para trás alguns centímetros, suas botas cavando no chão. Kalen deu outro grito e levantou a espada acima da cabeça pronta para derrubá-la em um ataque fatal. Sophie se esquivou em um fade Step apenas para ouvir o som da espada acertando a espada no chão.

Ela olhou para Cullen para vê-lo tentando se defender dos ataques descuidados de Torien que tinha recuperado a espada de Faulk de junto de seu corpo. O templário claramente era um arqueiro e não um guerreiro pelo modo como estava exausto com os golpes que tentava acertar. Sophie ficou paralisada e se virou para ver Kalen a perseguindo, com os ombros curvados e a cabeça abaixada.

“Vamos ver como você se vira sem sua magia”, o Templário sibilou, suas mãos se apertando em um ritmo. A espada arrastou-se pelo chão enquanto caminhava, a ponta deixando um sulco profundo na terra. Sophie rangeu os dentes tentando lutar contra o segundo purge, mas ela era impotente para deter aquilo. A visão dela escureceu novamente, voltando a si mesma aos poucos, sentindo-se como se tivesse sido engolida por uma onda que a jogou contra as rochas.

Sua visão nadou quando ela piscou, tentando afastar as estrelas de sua mente. Ela caiu no chão e conseguiu rastejar – de alguma forma – com as mãos e os joelhos, se esforçando para colocar alguma distância entre ela e o Templário que avançava em direção a ela exibindo uma expressão assassina no rosto.

“É isso mesmo, mago. Diga suas últimas palavras, você está prestes a conhecer o seu criador em breve”, Kalen zombou enquanto se aproximava. Sophie se colocou de pé rapidamente para se encontrar abruptamente com Kalen.

Sophie então tomou a decisão de enfrentá-lo com seus punhos. Por poucos centímetros a espada não a acertou quando ela se jogou em direção a Kalen dando três socos rápidos na face dele antes de mais uma vez fugir. A cada segundo ela esperava sentir a espada de Kalen dando um golpe mortal a suas costas indefesas, mas o golpe nunca chegou e um rápido olhar sobre seu ombro mostrou o motivo.

Kalen estava de pé com uma expressão de horror no rosto, os braços frouxos nos lados dele, a espada caída aos pés. A espada de Cullen tinha acertado em um golpe através de sua armadura e se projetava de forma grotesca através da placa do peito. Ele puxou a lâmina para trás com uma resistência por conta do metal e Kalen caiu de joelhos, vacilando um pouco antes de cair para a frente e descansar no chão, sua cabeça virando para o lado e os olhos fixos cada vez ficando mais ficando nublados.

A respiração de Sophie saiu como um assovio de alívio. Cullen olhou para ela com um rosto raivoso e olhos perspicazes que a observavam de cima a baixo.

“Você está bem? ”, ele perguntou dando um passo em direção a ela. Sophie o parou com uma mão.

“Eu estou. ” Sophie disse. “O mesmo não pode ser dito de você. ” Ela apontou com o queixo para a mão dele que tremia mesmo segurando a espada.

“Não é nada. ” Ele falou enquanto tentava esconder a mão da vista dela. “Devemos ir...” ele se sentiu zonzo e balançou a cabeça rapidamente. “ Eles estão mortos? ”

“Acredito que sim. ”

“Ainda bem. ” Cullen passou uma mão pelo cabelo dele, em seguida parando quando ele viu sua luva coberta de sangue. Com um olhar de desgosto ele passou as mãos nas calças deixando uma mancha marrom. “Devemos ir. Para a vila mais próxima ou...”

Ele apenas escutou o zumbido cortando o ar. Os olhos de Cullen se arregalaram em surpresa e ele cambaleou para trás, antes dos joelhos cederem e ele cair sem jeito no chão e a cabeça bater com força na pedra. Os olhos de Sophie se arregalaram enquanto ela se virou para ver que Faulk estava ajoelhado com o arco de Torien na mão, o rosto sorridente coberto de terra e sangue.

Acho que o bastardo não estava morto depois de tudo...

Lançando uma barreira em torno de si mesma, Sophie andou em direção a espada de Cullen torcendo para que ela pudesse alcançá-la antes que Faulk encontrasse o próximo alvo nas costas dela. Ela agarrou a arma e se virou, simultaneamente conjurando um raio. Acertou próximo de Faulk estava, errando por um fio de cabelo.

“Oh, por favor!” Ela se apressou em um ataque antes que o Templário pudesse se recuperar o suficiente para se mover. O raio o acertou em cheio e Faulk caiu como um saco de batatas no chão, a fumaça ondulando para fora de seu corpo. Ela sentiu seus ombros caírem em alívio, largando a espada no chão enquanto olhava para Torien e Kalen estavam concluindo que não haveria mais surpresas. Ambos os Templários estavam de bruços no próprio sangue com feridas da espada de Cullen, mortos.

Ela caminhou rapidamente em direção a Cullen sibilando quando viu que ainda estava inconsciente no chão – e ela esperava que não estivesse morto – com uma mancha escura se espalhando pelo peito de onde a flecha estava encaixada. Sophie o deixou por alguns segundos para examinar as flechas deixadas na aljava e agradecendo silenciosamente por seres pontas simples. Ela poderia puxar a flecha sem que ele sangrasse até a morte. Então ela seria capaz de curá-lo. Exceto que ela não era exatamente boa com cura e provavelmente ficaria uma bela cicatriz como lembrança.

Sophie se inclinou sobre ele, conjurando o que restava da mana dela para curar a ferida. E ela percebeu que Cullen a observava silenciosamente. Foi quando ela desviou o olhar dele e olhou para a frente, na direção do lugar onde surgiu diversas tochas brilhando na escuridão. Ela se preparou para atacar quando percebeu a armadura característica da Inquisição e não pode deixar de expressar alívio em um sorriso cansado que preencheu o rosto dela coberto de sujeira, suor e manchas de sangue. Quando olhou para Cullen novamente, os olhos dele estavam fechados e a leve respiração indicava que ele dormia, navegando pelas águas do fade.


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