Contos e crônicas com humor escrita por Cherrys moon


Capítulo 2
Picolé de laranja




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Sábado de manhã e a família Pereira chega em peso na praia. O casal Marcos e Letícia, a filha de seis anos Luana e o filho de doze anos Lucas.

Já chamam a atenção logo que chegam, Marcos carrega um imenso isopor com latinhas de cerveja, refrigerante e espetinho de carne congelada. Nas costas ele carrega um guarda sol colorido. Letícia vem com uma bolsa tão grande que só Deus sabe o que tem dentro, além de cadeiras de praia na mão. Luana carrega baldinhos, brinquedinhos e uma boia rosa choque presa na cintura combinando com seu biquíni da Penélope Charmosa. O mais discreto é Lucas, talvez o mais envergonhado, vem com uma bermuda com desenhos do Pac-Man e uma prancha pequena de surf.

—__ Aqui tá bom amor ___ diz Letícia escolhendo um local na areia ___ monta o guarda sol aqui

Marcos arma o guarda sol e as duas cadeiras de praia. Letícia estica uma canga de oncinha na areia e coloca os chinelos nas bordas pro tecido não voar com o vento.

—__ Todo mundo pra águaaaaaa ___ grita Luana já correndo em direção ao mar

E lá se vão os quatro pra água, é aquela alegria.

—__ Cadê o celular Marcos? ___ pergunta Letícia ___ quero fazer uma selfie

—__ Tá lá na bolsa. Vou trazer o celular pra água?

—__ É só ter cuidado, vai lá pegar vai

E lá se vai Marcos pegar o celular e bancar o fotografo da família. É pose nadando, é pose boiando, é pose quase se afogando.

—__ Vou preparar o almoço ___ diz ele não aguentando mais tirar foto ___ aquele troço demora muito.

Marcos volta para a areia, retira da bolsa de Letícia um grill movido a bateria e já liga a coisa. Leva quinze minutos só pra esquentar, e quando a luz vermelha se acende Marcos coloca os espetinhos congelados lá.

—__ Beleza agora é só esperar ___ diz ele se sentando numa cadeira de praia e pegando uma latinha de Skoll.

Duas horas depois a carne finalmente fica pronta e Marcos chama a família para comer. Ninguém queria sair da água, mas a barriga já estava roncando e quando finalmente saíram os três estavam com os dedos mais enrugados que casca de maracujá maduro.

—__ Tô com fome ___ diz Lucas

—__ Senta aí que já vou servir ___ diz Letícia

As crianças se sentam na canga, e Letícia pega um pratinho descartável onde serve farofa pronta e batata palha, que ela havia comprado no mercado e os espetinhos de carne.

—__ Por que a gente não almoça no restaurante da praia? ___ pergunta Luana sentindo o cheirinho de peixe e batata frita vindo do restaurante

—__ Tá doida. Restaurante de praia é muito caro ___ diz Marcos pegando refrigerante para os filhos.

E almoçam, se esbaldam no churrasquinho com farofa. Só não comem mais porque a bateria do grill acaba.

—__ Podemos voltar pra água? ___ pergunta Luana

—__ Não, tem que esperar a digestão ___ responde Letícia

—__ Por que?

—__ Não sei o porque, mas sempre disseram que faz mal entrar na água de estomago cheio, então fica quieta ai e espera.

Lucas pega um gibi dos X-men na bolsa, deita na canga fazendo um montinho de areia como travesseiro e começa a ler. Em menos de dez minutos ele já esta dormindo.  Luana pega seus brinquedos e começa a fazer castelos de areia que mais parecem barracos de areia.

Tudo indo bem, até que um rapaz magrelo passa gritando

—__ Olha o picolé, água pura ninguém quer

—__ Quer picolé querida? ___ pergunta Letícia para a filha

—__ Quero

Letícia se vira para ver se Marcos também quer, mas ele também já esta no decimo sono.

—__ Homens ___ diz Letícia se levantando

Mãe e filha se aproximam do vendedor de picolé

—__ Tem de que? ___ pergunta Letícia

—__ Coco, uva, chocolate, leite condensado, morango, maracujá, limão e milho verde.

—__ Quero um de coco ___ pede Letícia ___ E você querida?

—__ De laranja ___ diz Luana

—__ Tem de laranja moço?

—__ Não, só de Coco, uva, chocolate, leite condensado, morango, maracujá, limão e milho verde.

—__ Mas eu quero de laranja ___ diz a garotinha

—__ De laranja não tem, minha filha. Escolhe outro sabor

—__ Eu quero de laranja

—__ Me vê um de chocolate pra ela ___ diz Letícia já irritada

—__ Mãe, eu não quero picolé de chocolate, eu quero picolé de laranja ___ reclama a garota voltando para a perto do pai e do irmão que continuam dormindo, Marcos até roncando.

Luana se senta na canga emburrada.

—__ O picolé esta derretendo, toma ___ diz Letícia oferecendo o picolé á filha

—__ Quero picolé de laranja

—__ Tá, depois a mamãe compra um picolé de laranja pra você, mas agora toma esse, é gostoso, experimenta só

A menina aceita o picolé de chocolate e devora tudo se lambuzando imensamente. 

Uma hora depois, os quatro voltam para a água e passam a tarde toda se divertindo. Vão embora já anoitecendo e chegam em casa exaustos e ardidos. Depois do banho, se jogam no sofá e o cochilo é geral. Acordam oito e meia da noite

—__ Mãe tô com fome ___ reclama Lucas

—__ Ah! não vou fazer comida não ___ diz Letícia ___ faz um sanduíche, tem pão no armário

—__ Vamos comer pizza ___ sugere  Luana

A família concorda, pizza é sempre uma boa pedida e tem uma ótima pizzaria na esquina da casa deles.

Chegam lá esfomeados e pedem uma maracanã metade calabresa, metade portuguesa. Devoram tudo e quando Letícia acha que os filhos não aguentam mais nada, Lucas pede

—__ Posso comprar um açaí?

Letícia concorda.

—__ Quer um também Luana?

—__ Quero picolé ___ responde a menina ___ picolé de laranja

Letícia pede o açaí pro filho e o picolé para a filha, mas a resposta é

—__ Picolé de laranja não tem ___ diz a atendente da pizzaria ___ na verdade eu nunca vi picolé de laranja

Pronto, saber que aquilo era um item raro aguçou ainda mais a vontade de Luana de tomar picolé de laranja, virou uma ideia fixa.

 

A vida de Letícia virou um tormento, todo santo dia a filha ficava pedindo o bendito picolé de laranja. Letícia foi em todas as sorveterias, lanchonetes e barzinhos na cidade e nada de picolé de laranja.

—__ Minha filha, eu acho que não existe picolé de laranja

—__ Como não? Tem que existir. Se existe picolé de uva, de maracujá, de abacaxi, de morango e de todas as frutas, porque não existe picolé de laranja? Laranja não é fruta?

—__ É filha, laranja é fruta, mas eu não sei porque não fazem picolé de laranja

Luana não aceitava isso, ela queria um picolé de laranja e coisa foi ficando tão séria que a menina adoeceu, teve febre alta e delirando pedia o picolé de laranja.

Letícia não sabia mais o que fazer, então ela teve uma ideia. Foi ao mercado comprou laranja e um pacote de saquinhos de sacolé. Em casa, fez uma laranjada caprichada, colocou no saquinho e levou ao freezer. Quatro horas depois serviu a filha.

—__ Isso é sacolé ___ reclama a menina ___ eu não quero sacolé, eu quero picolé, com o palitinho e tudo. E não quero caseiro, quero comprado

Eita! menina exigente.

 

Letícia estava de volta a estaca zero e  a situação foi ficando cada vez mais complicada. As notas de Luana na escola começaram a cair, ela não prestava mais atenção na aula e a professora sugeriu à Letícia levar a menina para uma conversa com a psicóloga da escola.

Foram. E a psicóloga disse que Luana estava entrando em um quadro pré depressivo.  Marcos achava que era besteira, um capricho de criança, mas Letícia sabia que a coisa era séria, a filha já não era como antes, já não brincava nem sorria como antes, e ela como mãe precisava fazer alguma coisa. E quando você não sabe mais o que fazer, só existe um lugar que pode te dar as respostas: no Google.

 

Após uma longa pesquisa, Letícia enfim tinha um plano. Ela pegou três ônibus para chegar a um bairro do outro lado da cidade e se perdeu varias vezes até encontrar a Dick festas

—__ Boa tarde ___ diz Letícia entrando na Dick Festas

—__ Boa tarde. Em que podemos servir? ___ responde uma simpática funcionaria

—__ Vocês fazem picolés personalizados né?

—__ Sim, fazemos vários itens personalizados para sua festa. Picolé, algodão doce, maçã do amor, pé de...

—__ Não, eu só quero o picolé ___ disse Letícia esperançosa

—__ Claro. Já tem uma arte pronta ou quer ver nosso catalogo?

—__ Arte? Que arte?

—__ Pra embalagem do picolé ___ diz a atendente ___ podemos colocar o tema da festa, a foto e nome da criança ou que você quiser

—__ Ah não. Nada de arte quero uma embalagem simples. Com laranjas

—__ Laranjas?

—__ Isso, laranjas. Quero picolé de laranja

A vendedora fica olhando pra Letícia se perguntando se aquela mulher era normal

—__ Não temos picolé de laranja. Mas pode olhar nosso catalogo, temos mais de  200 sabores

—__ Moça, pelo amor de Deus, eu não preciso de 200 sabores, eu só preciso de um sabor: Laranja

Letícia sabia que estava parecendo uma louca, então resolveu contar a historia toda, desde o início.

—__ Ah, entendi ___ diz a atendente achando aquela historia um grande absurdo.

—__ Então, eu preciso que façam uma laranjada coloquem na forminha com o palito e levem pro freezer. Depois coloquem numa embalagem bonita com fotos de laranja. Pode ser?

—__ Claro, vamos ver o que podemos fazer. Quantos a senhora vai querer

—__ Um só

—__ Desculpe, nosso pedido mínimo é de cem unidade

—__ Cem? Vou ter que comprar cem picolés de laranja?

—__ Sim, sinto muito

—__ Quanto custa cada um?

—__ Três reais

Letícia levou um susto

—__ Três reais um picolé? Isso é um absurdo

—__ Veja bem, não é só o picolé ___ explica a atendente ___ tem todo o trabalho da embalagem, da personalização e....

—__ Tá bom, tá bom eu fico com as cem unidades

—__ Perfeito. Vou fazer o pedido, mas cobramos 50% do valor adiantando

 

E assim Letícia sai da loja com o pedido de cem picolés de laranja que seriam entregues em quatro dias e lhe custaram trezentos reais.

No dia da entrega, Marcos foi cedinho a Dick festas com seu fusca velho pegar a encomenda. Veio numa caixa de isopor com a logo da loja, tudo muito no capricho  e ele teve que pagar os cento e cinquenta reais que faltavam

—__ Mulher quando cisma com uma coisa é fogo ___ diz ele colocando o isopor na traseira do fusca ___ E começam cedo, se aos seis anos já esta assim imagina quando dezoito.

Quando Marcos chegou em casa, Letícia inspecionou a mercadoria minuciosamente e colocou tudo no freezer. Quase não coube, ela teve que tirar os potes com feijão congelado pra caber cem picolés ai.

 

Letícia entrou no quarto da filha com o presente nas mãos e aquele sentimento de missão cumprida. Luana estava deitada na cama vendo desenho, mais uma vez ela não tinha ido na escola alegando que estava se sentindo mal.

—__ Filha, trouxe uma coisa pra você ___ diz Letícia entrando no quarto

—__ Quero nada não ___ resmunga Luana

—__ Mas eu acho que isso você vai querer. Olha o que eu consegui achar: Picolé de laranja

A menina arregalou os olhos e deu um pulo da cama

—__ Serio? Ai meu Deus! Onde conseguiu?

—__ Numa sorveteria em outro bairro. Você nem sabe o quanto eu tive que andar pra encontrar isso

—__ Obrigada mãe ___ diz Luana dando um abraço apertado em Letícia.

Ela se sentiu a melhor mãe do mundo, estava até com lágrimas nos olhos

—__ Vai, come logo antes que derreta

Luana abriu a embalagem e logo ali estava o que ela tanto queria, um picolé de laranja.

Colocou na boca com gosto, mas logo na primeira mordida fez uma careta.

—__ Hummm gostei não ___ diz a menina entregando o picolé pra mãe

—__ O que? Como assim não gostou?

—__ Não gostei ué

—__ Minha filha, você esta a um mês enchendo o saco por causa desse picolé e agora vem me dizer que não gostou. Por que não gostou?

—__ Sei lá. Acho que é porque eu não gosto de laranja ___ disse a menina saindo do quarto, feliz novamente.

 

A vida de Luana voltou ao normal, ela não teve mais febre e seus notas na escola aumentaram. Letícia tinha um freezer com 99 picolés de laranja e para não desperdiçar, já que foi caro, ela obrigou o marido e o filho a comerem.  Cada um pegou um picolé e de cara entenderam porque nenhum fabricante se aventurou a fazer picolé de laranja. O troço era ruim demais.


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