Larissa chegou da escola com a cara emburrada, bateu a porta com força e entrou como se estivesse marchando.

—__  O que foi meu anjo? ___ pergunta a mãe Lurdes ___ aconteceu alguma coisa na escola?

—__ A minha vida é uma droga, é isso o que aconteceu ___ responde a menina de quatorze anos indo direto pro quarto e trancando a porta.

Lurdes foi atrás, bateu cinco vezes na porta até Larissa resolver abrir.

—__ Conta pra mamãe o que aconteceu

Larissa não disse nada, apenas ficou deitada na cama com a cara enfiada no travesseiro. Lurdes sabe que essa é uma fase difícil, a adolescência, sempre complicado.

—__ Você disse que sua vida é uma droga ___ disse Lurdes ___ por que acha isso? Sua vida é tão boa, você tem de tudo.

—__ É exatamente esse o problema, minha vida é perfeita demais ___ diz Larissa ___ e você é a culpada, você e o  papai, vocês nunca nem brigam

Lurdes fica perdida tentando entender o que a filha esta dizendo

—__ Você quer que eu e o seu pai briguemos?

—__ Quero. Podia até se separar por uns tempo, assim eu ia ter alguma coisa pra contar pra minhas amigas.

Aquilo era a coisa mais absurda que Lurdes já tinha ouvido na vida. Ela e o marido, Paulo, eram casados há dezoitos anos e tinham um casamento feliz, é claro que discutiam de vez em quando, mas eles sempre fizeram de tudo para não discutir na frente da filha, e agora a filha estava pedindo exatamente o contrário.

—__ Deixa ver se eu entendi. Você quer que eu me divorcie do seu pai?

—__ Só por um tempo ___ disse a menina ___ depois vocês voltam. É que a Carol fica contando sobre o divorcio dos pais, a Sarah sobre a briga dos dela por causa de dinheiro,  a Juliana sobre a doença do irmão e eu nunca  tenho nada dramático para contar, minha vida é muito chata.

Lurdes não disse mais nada, ela não sabia o que dizer, só saiu do quarto e deixou a filha sozinha, com certeza aquela historia absurda era algo do momento, logo ia passar.

Larissa ficou na cama, emburrada e chorando, ela não aguentava mais as amigas falando de seus problemas. Os pais de Carol tinha se separado há dois meses e agora a menina ficava contando como a vida tinha mudado, ela passava a semana com a mãe, mas ia pra casa do pai nos fins de semana. Larissa ficava imaginando que legal era ter duas casas. O pai de Sarah havia perdido o emprego e a condição financeira da família havia mudado, agora eles não saiam mais, não iam ao cinema, nem ao shopping como antes. A mãe de Sarah, que antes era apenas dona de casa, começou a fazer doces para vender, todos esses problemas fizeram com que o casal começasse a discutir frequentemente e Sarah desabafava com as amigas. Já Juliana, do curso de inglês, estava enfrentando uma barra com o irmão de sete anos. O menino foi diagnosticado com uma doença grave no fígado e ia precisar de um transplante. Toda a família ficou abalada e agora a vida deles era ficar indo e vindo do hospital, correndo atrás de exames e rezando para um doador aparecer.

Larissa era aquela amiga que ouvia o problema de todas, mas nunca contava nada, porque sua vida era perfeita demais. Seus pais nunca brigavam, faziam questão de jantar todos juntos a mesa, tipo comercial de margarina. A situação financeira da família também era muito boa, o pai era engenheiro civil e tinha um ótimo salario e para completar a saúde de todos estava perfeita, não havia nada de errado com aquela família e Larissa não tinha nenhum drama para contar as amigas.

Naquela noite durante o jantar, Larissa não falou nada. Paulo contou sobre algumas coisas do trabalho, mas ela nem ligou e também quase não comeu, ficava jogando os pedaços de frango para sua cachorra Maggie que estava debaixo da mesa. Meggie era uma Golden Retriever de três anos, linda, com o pelo brilhante e uma alegria contagiante. O cão perfeito da família perfeita.

Mais tarde quando Lurdes foi dar boa noite para a filha, Larissa perguntou

—__ Falou com o papai?

—__ Falar o que com seu pai?

—__ Sobre o divorcio. Só por um tempo

—__ Tá doida Larissa, não vou me separar do seu pai por um capricho seu

—__ Mas mãe não é capricho, é a minha vida ___ disse a menina implorando com os olhos ___ eu preciso que vocês se separem

—__ Larissa eu não vou nem te responder isso. Boa noite

Lurdes saiu do quarto irritada, onde a filha estava com a cabeça para pedir uma coisa daquelas?

Larissa nem conseguiu dormir direito, ficou a noite toda pensando no que fazer, ela não ia mais aguentar as amigas relatando seus dramas enquanto ela não tinha nada para contar. Ah, não mesmo.

Na manhã seguinte Larissa chegou na escola com óculos escuros e uma cara de tristeza, sentou-se em seu lugar ao lado de Carol, que também estava com  a cara triste

—__ Ai amiga  nem te conto o que aconteceu ___ disse Carol

—__ Hoje não amiga ___ disse Larissa ___ hoje eu é que estou mal

—__ O que aconteceu?

Larissa fez cara de choro, ela daria uma ótima atriz, uma lágrima até brotou do olho esquerdo

—__ Meus pais passaram a noite toda brigando ___ disse Larissa com aquele olhar sofredor de mocinha de novela mexicana

—__ Seus pais? ___ perguntou Carol assustada, os pais de Larissa eram um modelo de casal feliz ___ Por que?

—__ Eu não sei o porque, mas acho que tem a ver com dinheiro

—__ Mas a sua família tem grana

—__ Não sei amiga, as coisas mudam, ainda mais nessa crise. O fato é que eles brigaram a noite toda e eu nem consegui dormir direito.

Assim que Sarah chegou, Carol contou o que tinha acontecido e as duas passaram a manhã toda consolando Larissa. Na hora do intervalo Carol ficou na fila da cantina para comprar o lanche da amiga, que estava sentada num canto do pátio com ar de tristeza.

—__ Eu já passei por isso e sei como é ___ disse Carol entregando o lanche a Larissa ___ mas seus pais se amam, com certeza vão resolver isso

Os outros alunos começaram a estranhar a tristeza de Larissa, ninguém nunca tinha visto ela chorando daquele jeito antes e a fofoca logo começou a rolar.

—__ Quer almoçar na minha casa? ___ perguntou Sarah quando a aula já estava quase no fim

—__ Aceito sim ___ respondeu Larissa.

Assim que o sinal tocou Larissa ligou para a mãe avisando que ia pra casa de Sarah e de lá ia pro curso de inglês, as 15 hs.

O pai de Sarah estava na sala vendo Globo Esporte quando a filha chegou acompanhada da amiga.

—__ Oi pai, essa é Larissa minha amiga

—__ Oi ___ disse Seu José com um ar tristonho

—__ Vem pro meu quarto ___ disse Sarah puxando Larissa

O quarto de Sarah era pequeno mas aconchegante todo decorado em tons pasteis. Larissa reparou no suporte de tevê na parede, sem a tevê

—__ O que aconteceu com sua tevê? ___ perguntou Larissa

—__ Tivemos que vender ___ respondeu Sarah tirando o tênis e colocando o chinelo ___ vou avisar a minha mãe que você esta aqui

Assim que Sarah saiu, Larissa começou a olhar atentamente para o quarto da amiga, apesar de tudo estar arrumado, varias prateleiras estavam vazias e ela se perguntou o que mais a amiga teve que vender.

Larissa resolveu tirar seus tênis também e pedir um chinelo emprestado, afinal estava muito calor, mas assim que ela chegou no corredor ouviu a mãe de Sarah brigando com a filha

—__ Já disse pra não trazer visitas aqui, não estamos em condições

—__ Mas mãe, ela esta com problemas, os pais dela brigaram a noite toda e...

Larissa foi se afastando lentamente e voltou para o quarto, ela sentiu algo estranho. Tinha conseguido o que queria, ser o centro das atenções, ter um drama para compartilhar, mas por outro lado se sentia mal por estar mentindo e agora a noticia estava se espalhando.

O almoço foi servido quase duas da tarde, arroz, feijão e linguiça

—__ Se eu soubesse que você vinha tinha preparado mais coisas ___ disse a mãe de Sarah

—__ Ah não se preocupe, tá ótimo, eu não estou com muita fome ___ respondeu Larissa

—__ Se não gostar de linguiça, tem sardinhas. Em lata ___ disse Sarah

—__ Linguiça tá ótimo.

O pai de Sarah não se sentou a mesa, preferiu almoçar na sala vendo Jornal Hoje, e Sarah percebeu que os pais da amiga mal se olharam.

Após o almoço Larissa descansou um pouco no quarto da amiga e logo teve que ir embora, para o curso de inglês.

—__ Tchau, até amanhã na escola ___ disse Sarah

Sarah chegou ao curso disposta a não mentir mais, não ia contar a historia das briga dos pais para ninguém.

—__ É verdade que seus pais estão brigados? ____ perguntou Juliana

—__ Como sabe disso?

—__ Minha prima Susana me contou

Susana estudava na sala de Larissa, mas as duas nunca foram muito amigas, e o fato de Susana já saber da noticia significava que a turma toda já sabia.

—__ É, eles discutiram a noite

—__ Ai eu sinto muito amiga, quer falar sobre isso?

—__ Não, não quero falar.

Larissa que sempre sonhou em contar seus dramas pras amigas, agora não queria mais falar, ela queria acabar logo com aquilo, só não sabia como.

Naquela noite Larissa não quis conversar com os pais. Lurdes preferiu não insistir, afinal sabia que aquilo era coisa da idade, mas na manhã seguinte se surpreendeu quando a filha não quis ir para escola

—__ Não quer ir porque filha? ___ perguntou Lurdes

—__ Não estou me sentindo bem

Lurdes imediatamente pegou um termômetro para medir a temperatura da filha

—__ O que você esta sentindo?

—__ Nada demais, só um pouco cansada, por favor deixa eu ficar em casa hoje

—__ Você não ta com febre ___ disse Lurdes analisando o termômetro ___ mas talvez seja melhor a gente ligar pra doutora Cristina

—__ Mãe, a doutora Cristina é pediatra ___ disse Larissa brava ___ eu sou adolescente

—__ Verdade, temos que achar outro medico para você

—__ Eu não quero médico, só quero ficar em casa descansando

—__ Tá bem, tá bem ___concordou a mãe ___ eu ia sair pra jogar tênis com a Marcela, mas vou ligar cancelando, vou ficar aqui com você

—__ Não precisa mãe, eu vou ficar bem. Na verdade até prefiro ficar sozinha

Lurdes demorou para concordar com isso, mas acabou cedendo. Assim, as dez horas ela saiu para jogar tênis com a amiga e Larissa ficou sozinha. A menina não sabia o que fazer, só não queria ter que encarar as amigas de novo. O celular dela não parou de tocar, mas ela não atendeu, e também não respondeu as mensagens do whatssap, as amigas estavam doidas querendo saber se tinha acontecido alguma coisa, por que ela não tinha ido a escola.

Pouco antes do meio dia, Larissa levantou e pediu comida japonesa, mas antes mesmo da entrega chegar ela ouviu o barulho de um carro parando em frente de casa e olhou pela janela. Era a mãe, Lurdes, chegando de taxi.

—__ Mãe, o que aconteceu com seu carro? ___ perguntou Larissa vendo a mãe entrar com óculos escuros e parecendo muito cansada

Lourdes tirou os óculos e Larissa levou um susto ao ver o olho esquerdo da mãe inchado e com um grande galo roxo

—__ Ai meu Deus! O que foi isso?

—__ A bola de tênis me acertou em cheio ___ disse Lurdes se sentando ___ tive que pegar um taxi, pois estava sem condições de dirigir

—__ Mas a senhora joga tão bem

—__ Sim, mas estava distraída hoje, acho que era preocupação

—__ Preocupação comigo né.

Larissa se sentiu mal, todas as suas mentiras acabaram causando um acidente com a mãe, se algo mais grave tivesse acontecido ela não ia se perdoar.

—__ Descansa ___ disse Larissa ___ pedi comida japonesa deve estar quase chegando.

Vinte minutos depois a campainha tocou, Larissa estava no banho e Lurdes colocou os óculos escuros foi atender a porta achando que era a comida.

—__ Oi, a Larissa esta? ___ perguntaram Carol e Sarah juntas

—__ Esta no banho, podem entrar

Carol e Sarah entraram e logo em seguida o entregador de comida japonesa estacionou a moto. Lourdes pegou a comida e levou para cozinha deixando Sarah e Carol esperando por Larissa na sala.

—__ Viu o olho dela? ___ sussurrou Sarah ___ tá roxo por debaixo do óculos

—__ Eu notei ___ respondeu Carol

Larissa desceu as escadas e levou um susto ao ver as amigas na sala

—__ O que estão fazendo aqui?

—__ Ficamos preocupadas porque você não foi na aula ___ disse Carol

—__ Ta tudo bem? ___ perguntou Sarah

—__ Tá, esta tudo bem, mas eu quero ficar sozinha, tenho que cuidar da minha mãe, ela se machucou.

Carol deu um forte abraço em Larissa

—__ Você sabe que pode contar com a gente né? ___ disse ela

—__ Claro

—__ Qualquer coisa liga, não importa a hora ___ disse Sarah

As meninas foram embora, e Larissa almoçou em paz com a mãe. As duas passaram a tarde toda juntas, Larissa colocou gelo no olho de Lurdes e fez tudo para agrada-la. Quando Paulo chegou do trabalho quis levar a esposa ao hospital para se certificar de que a pancada não foi grave.

Na manhã seguinte, assim que chegou a escola Larissa notou todo mundo olhando para ela.

—__ Como você esta? ___ perguntou carol

—__ Bem, mas não estou com animo para conversas hoje

Larissa passou a aula toda calada, e as amigas respeitaram. Assim que o sinal para o intervalo tocou, a professora Helena pediu para Larissa ficar na sala

—__ Tá tudo bem em casa? ___ perguntou a professora assim que todos os outros alunos já tinham saído

—__ Sim, tudo bem ___ respondeu Larissa 

A professora começou um papo sobre violência domestica, sobre a importância de denunciar e falou sobre a lei Maria da Penha. Larissa não estava entendendo o porque daquela conversa, mas assim que ela chegou em casa descobriu.

—__ Larissa o que você andou inventando na escola? ___ perguntou Lurdes muito brava

—__ O que? Eu? Nada. Por que?___ questionou Larissa sem saber do que a mãe estava falando

—__ A assistente social da sua escola esteve aqui para conversar comigo. Queria saber se eu estava sendo vitima de violência domestica. Disse que você contou as amigas sobre as brigas que eu estava tendo com seu pai.

Larissa danou a chorar

—__ Desculpa mãe, eu não queria, era só porque eu queria ter um drama pra contar

—__ É, muito bem, você vai ter uma coisa pra contar amanhã na escola

E assim, no dia seguinte Larissa teve que contar as amigas que os pais nunca brigaram, que tudo foi uma invenção dela

—__ Eu não acredito que você fez isso com a gente ___ disse Carol

—__ Estou muito decepcionada com você ___ comentou Sarah

—__ É que eu não aguento mais vocês falando sobre os seus problemas, e eu não ter problema nenhum pra contar

—__ Isso é a coisa mais estupida que eu já ouvi.

A fofoca sobre a mentira de Larissa correu pela escola toda, e ela ficou morrendo de vergonha de olhar na cara das pessoas, até mesmo da professora Helena.

Naquela noite, quando Paulo descobriu as mentiras da filha ficou muito chateado e decepcionado.

—__ Ela já tinha me dito que queria que a gente se separasse por uns tempos pra ela poder contar as amigas ___ disse Lourdes

—__ Ela disse isso? ___ perguntou Paulo ___ e você não me contou nada por que?

—__ Achei que fosse besteira, que logo ela ia esquecer

—__ Mas não era besteira ___ disse Paulo já bravo ___ se tivesse me contado eu teria conversado com ela e evitado tudo isso

—__ Eu conversei com ela

—__ Ela não te escuta, ela sempre escutou mais a mim

—__ Esta dizendo que eu não sou uma boa mãe....

E assim, naquela noite pela primeira vez na vida Larissa ouviu os pais discutirem. Discutirem de verdade