Venant d'ailleurs escrita por Lethy


Capítulo 1
Prólogo - De lugar nenhum


Notas iniciais do capítulo

Eu demorei muito para decidir postar essa história (não é a toa que enrolei até quase o prazo final). Muitas coisas aconteceram desde que decidi participar desse amigo oculto. Odiei muitas das versões que escrevi, e confesso que até da final me envergonho.

O Nando postou a história dele quase no primeiro dia, me envergonha que ele tenha sido obrigado a esperar quase até o último minuto. Me envergonha mais ainda entregar a ele algo que é um rascunho antes de qualquer coisa.

Nando, quando eu tirei seu nome, sabia que estava diante de um desafio. Ficcção científica, guerra, espionagem? Nada daquilo fazia parte da minha zona de conforto e abandoná-la seria difícil. Entretanto, eu adoro ser desafiada (enquanto escritora e enquanto pessoa), e busquei desde o início algo em que me inspirar. Tentei ver filmes (mesmo me sentindo burra ao não entender as explicações), pedi conselhos, fiquei maquinando ideias.

Até que, numa noite, eu tive um sonho. Ele era exatamente o que eu precisava. Comprei um livro por causa dele, bolei todo um enredo e, no final, não tive tempo de desenvolver nada do que eu tinha planejado. O que eu posso te oferecer hoje é um prólogo, um prelúdio do que eu pretendo que seja a história inteira um dia.

Quero pedir desculpas por ter, de certa forma, fracassado em desenvolver uma história completa; mas também quero agradecer por ter me dado a oportunidade de descobrir o gosto por um gênero do qual, até então, eu não me aproximava.

Um dia, quando eu conseguir desenvolver tudo que imaginei, o Nando que eu criei para esse pequeno prólogo vai estar lá. E um agradecimento a você e ao Café por me dar essa oportunidade também.

Não soube muito bem como classificar a história. (Observação aleatória)

Enfim, espero que goste do resultado apesar de tudo, Nando. Foi de coração. ♥



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As pessoas costumam temer o que elas desconhecem. Mas o que acontece quando elas não podem reconhecer o desconhecido? 

Eu costumava achar essa pergunta desnecessária, por isso nunca gastei muito tempo refletindo sobre ela. Afinal, o que de tão elaborado podia escapar à ciência que já ia muito à frente de qualquer expectativa? Quase nada, porque havia muitas pessoas para questionarem tudo, e poucas coisas ainda a serem questionadas. Ao menos assim me parecia. Nem mesmo eu estou imune ao egocentrismo.

Foi então que, como se viessem de lugar algum, eles surgiram. Eram como a gente, pelo menos até certo ponto. Respiravam, comiam, falavam, eram fisicamente semelhantes a nós, mas não eram nós.

Não eram humanos.

Quando apareceram, ninguém os notou, simplesmente porque parecia que eles não estavam ali. O princípio de discrição deles era rigoroso demais para ser percebido por um mero ser humano. No entanto, quando se é um veterano de guerra treinado para sobreviver, poucas coisas lhe escapam. Em uma noite de insônia qualquer, eu encontrei um deles. Era uma moça, alta, morena, de seios fartos. Não seria hipócrita de dizer que não a imaginei nua. Encontrei-a num bar, bebendo. Era um daqueles estabelecimentos de esquina, com a iluminação tão boa quanto a de um esgoto e um cheiro tão agradável quanto. Não era a primeira nem a segunda vez que eu ia lá, por isso conhecia todos os clientes de memória e ela com certeza não era um deles.

Veja bem, sou um cavalheiro. Depois da guerra, essa é uma das poucas coisas das quais ainda posso me vangloriar. Perdi um braço e uma perna, ambos substituídos por próteses mecanizadas. Perdi um olho, agora de vidro. Perdi parte da minha fé na vida, também, mas não perdi o senso de cavalheirismo; por isso, ofereci uma bebida e dois versos antes de me aproximar. Quis que ela soubesse que era linda não por me querer, mas apesar disso. Me ignorar era uma opção, mas ela optou por outra coisa e, com passos rebolados, sentou-se do meu lado.

— Não sou isso tudo, você sabe. – ela murmurou no exato tom de voz que leva qualquer homem à loucura.

— Você não se vê pelos meus olhos. É maravilhosa. Sou Fernando, a propósito. Como devo chamar a bela dama?

Ela riu com um tom que parecia música e disse que se chamava Natália. Me  senti enfeitiçado. Até aquele momento, não pensei que poderia desejar tanto uma mulher de cabelos curtos. Conversamos por mais uma ou duas horas antes que um dos dois, a embriaguez não me deixa lembrar qual, sugerisse que saíssemos dali. “Muito cheio, barulhento, você não quer conversar em um lugar mais quieto?”. Ambos éramos grandinhos para sabermos que a conversa se faria com os corpos despidos, não com palavras. O idioma mais primitivo que o homem conhece.

Pela manhã, quando acordei numa cama que eu desconhecia ainda de cueca, ela já tinha partido. Eu não tinha lembranças concretas da noite anterior, mas algo naquela mulher me incomodava. Demorei para entender o quê, porém acabei percebendo que era sua insistência em me fazer olhar para seus olhos. Queria gravar todas as suas curvas com a precisão de um escultor, mas tudo que ela me permitia era fitar seus olhos infinitamente.

Depois de tentar atravessar a névoa de seu olhar, compreendi por que ela insistira tanto para que não me desviasse deles. Sob as lembranças turvas, tive vislumbres do que conseguira gravar de seu corpo. Era majestoso, é verdade, mas não era humano. Toda a pele de seus seios, barriga e coxas estava colorida em tons de azul e verde brilhantes, perceptíveis mesmo sob a penumbra da madrugada. Por mais que minha racionalidade insistisse que só podia ser tinta, algo nas lembranças embaçadas me dizia que aquelas cores pertenciam mesmo à pele dela.

Ela foi a primeira, a mais memorável, mas não foi a única. A lembrança de sua pele me manteve alerta, minha mente insistia em procurar uma justificativa, não importando qual fosse. Aos poucos, me pegava procurando outras pessoas com a pele como a dela. Pessoas de cachecol ou casaco no calor sempre eram meus alvos favoritos, e algumas vezes consegui segui-los o suficiente para vê-los sem as peças. Nada de cores, Natália era a única.

Até que, numa caminhada insone pela madrugada, eu vi um homem de três braços. Inicialmente, achei que fosse efeito da bebida. Eu tinha tomado um ou dois copos de uísque a mais e não estava tão sóbrio quanto costumava. Ozzy, meu cachorro e alarme de coisas estranhas, não estava caminhando comigo hoje, então nem a confirmação dele eu podia ter. Eu estava de frente com algo bizarro, mas que eu não podia confirmar como tal. Excelente situação.

A rua estava deserta àquela hora, éramos eu e o senhor tribraço. Fiquei o mais distante que era possível e esperei. Apesar do meu olho de vidro, meu olho restante ainda me permitia enxergar o suficiente para acompanhar os movimentos do estranho, então eu esperei.

E esperei.

E esperei.

Durante quase duas horas, nenhum de nós dois nos movemos. Todo movimento que pude captar dele foi o de suas narinas anormalmente grandes inflando com o ar. Até que um pássaro passou voando à frente do estranho e, com seu terceiro braço que saia do meio do peitoral, ele o apanhou e o mastigou vivo. Nem seu deu ao trabalho de cuspir as penas.

Concluindo que minha imaginação bêbada não podia ser tão criativa, dei meia volta e só parei quando já estava seguro em meu apartamento. Não era um homem de muitos medos, mas de muita cautela. Em uma guerra, é imprudente lutar contra um inimigo que você não conhece ou compreende; e nunca, em mil anos, minha mente ia compreender um homem que comia pássaros vivos.

Afinal, era mesmo um homem?

Imagino o que você está pensando agora: Mas, Nando, você acabou de dizer que eles tinham um princípio rigoroso. Como um homem de três braços simplesmente se expõe na madrugada assim? Se você não está se perguntando isso, talvez devesse. Prestar atenção aos mínimos detalhes é essencial.

Bem, na época, nem eu mesmo entendi.  Na época, eu não entendi nada. É engraçado como a existência humana é um vazio preenchido de ego. Quando algo o fere, toda a substância do ser se esvai como pó ao vento, e você se pega se perguntando, às cinco da madrugada, como um homem pode ter três braços na sua cara e você não saber explicar. Eu não sabia explicar. Eu não sabia nada.

Depois de anos decorando todas as rotas e possibilidades de ataque e defesa, depois de estudar tantos mapas quantos eram os lugares da Terra, eu finalmente experimentava uma sensação da qual nem sabia sentir tanta falta: a de estar perdido. Entretanto, ao contrário do que eu imaginei, isso não me desesperava. Isso me dava a sensação de estar vivo.

Comecei a procurá-los como um marinheiro procura um farol. Na época, eu ainda não sabia o que isso significava. Talvez até hoje eu não saiba de fato. Eu vivia alerta, às vezes caminhava até o sol nascer atrás de outro deles.

Voltei ao bar dezenas de vezes, caminhei pela rua do homem do pássaro quase toda madrugada durante duas semanas, mas nunca mais vi qualquer sinal. Era como se eles surgissem e desaparecessem quando bem entendiam. Nem a frustração de morar sozinho com sete cachorros e cozinhar todo dia para mim mesmo era tão torturante como aquilo.

Então, numa noite em que eu caminhava com o Ozzy pelo bairro, algo me ocorreu. Das duas únicas vezes em que eu consegui vê-los, eu não os estava procurando. Eles permitiram, seja por descuido, seja por solidão, que eu os visse. Eles me deram acesso porque eles não estavam me esperando. No caso de Natália, ela não supôs que eu pudesse me lembrar. No caso do homem, ele simplesmente não sabia que eu estava ali, embora eu desconfie que algo o estava cegando da minha presença.

A guerra traz desolações que vão muito além de uma bomba explodir na sua cabeça. Durante a caminhada, você enfrenta o medo, a saudade, os pensamentos autodestrutivos. A insegurança. Mas, dentre todas as coisas que enfraquecem um exército, a fome, a sede e o tempo são as mais cruéis. Se você morre em batalha, você é um herói. Se você morre congelado ou implorando por comida e água, você fracassou.

A verdade é que, numa guerra, existem três inimigos: o exército oponente, a sua mente e as suas limitações físicas. E, no momento em que o encontrei, aquele homem lutava com a necessidade de seu próprio estômago. Sua fome o cegou. Caso eu precisasse apunhalá-lo, aquele seria o momento.

Mas as batalhas que eu atualmente enfrentava em minha vida tinham muito mais a ver com a minha própria existência. E acho que as táticas tinham suas variações quando se tratava de homens com um braço extra e um desejo quase sexual por pássaros vivos.

Depois daquela caminhada, eu parei de procurá-los. Eu tinha uma rotina mais ou menos estabelecida. Com quase nenhuma variação, eu dividia meu dia entre cuidar dos cachorros, cozinhar o que me desse vontade e estudar. Quando se é um combatente aposentado que, por determinação do estado, está inválido; e, por honra do exército, é pago por ter ficado aleijado, não resta muito que fazer. Eu podia tentar trabalhar extra-oficialmente, mas, em um mundo cheio de más intenções, quase ninguém confiava num caolho sem carteira de trabalho.

Era de manhã quando a janela da sala começou a rachar. O primeiro sinal veio do lado esquerdo, logo ao lado da tranca; e, aos poucos, foi se espalhando por toda ela. De início, fiquei alarmado. Nunca tive problemas com nenhum centímetro do meu apartamento. Sua organização e estado impecáveis eram uma coisa, inclusive, de que eu adorava me gabar. No entanto, a despeito do meu amor-próprio, a janela continuou rachando, centímetro por centímetro, até que atingiu o outro lado.

No meu vidro, em linha reta interrompida, estava grafada a batida de um coração.

Havia um eletrocardiograma na minha janela e tudo que eu conseguia era ficar maravilhado. Não era descuido ou solidão. Era intencional, eles queriam falar comigo.

O que aconteceu em seguida foi mais ou menos o que acontece quando um homem ganha o primeiro carro ou conquista a primeira garota: eu me senti especial. Além de todo desgosto, da parcela da minha alma faltante, do fígado maltratado, eu me senti importante de verdade.

Apesar de tudo, não pude deixar de rir o riso amargo da ironia. Foi necessário que seres vindos de outro lugar, talvez mesmo de outro planeta (estou velho demais para ceticismo), dessem atenção a mim para que eu me sentisse notado. A alma humana é mesmo estúpida.

Durante o resto do dia, sentei diante da janela e fiquei me perguntando o sentido daquilo. Ao ser dispensado do exército, ganhei um tempo ocioso considerável; e gastei grande parte dele lendo. Desde o jornal até clássicos da ficção científica, tudo era aproveitado. Eu sabia tudo sobre o amor dos livros, embora discordasse de metade do que era passado. Eu conhecia os desdobramentos das guerras atuais e das antigas. Até algumas páginas do dicionário eu decorei; mas nenhuma dessas informações estava me ajudando a compreender o que eles queriam me dizer.

Que também tinham coração? Que queriam meu coração? Que eu não tinha coração? Que iam comer meu coração?

Tudo era uma possibilidade; e, antes de eu perceber, mais uma vez me envolvia em problemas.

Dessa vez, pelo menos, o problema não usava saia.

Ao longo de uma semana, eu dediquei pelo menos duas horas do meu dia para observar a janela. Na sexta-feira, aceitei que o vidro não me diria nada e resolvi sair. De qualquer forma, Ozzy estava com o olhar assassino de um cão que precisa urgentemente passear, e minhas pernas já estavam criando raízes em frente ao vidro rachado.

Naquela noite, Ozzy estava estranhamente agitado. Eu costumava o deixar escolher o caminho que queria seguir; mas, hoje, ele parecia querer ir em todas as direções ao mesmo tempo. Por fim, como se ouvisse uma ordem inaudível, tomou a rua que virava a direita, perto de uma praça.

Ele puxava a coleira como se quisesse rasgar a própria pele.

Não prestei muita atenção nas ruas que viramos nem em quantas voltas demos. Sempre fui muito bom em me localizar e tinha certeza de que não encontraria dificuldades para voltar para casa. Quando pensei que Ozzy faria mais uma curva, ele estacou. Arfava como se fosse morrer a qualquer minuto.

— Bem-vindo, Fernando. – a voz musical preencheu o ambiente, que identifiquei ser uma boate vazia.

Encarei a dona da voz. Natália estava parada a poucos metros de mim, apoiada em uma das pilastras e ferro que sustentavam a estrutura da boate. Mais uma vez me surpreendi com o quanto ela era linda. Vestida com um sobretudo roxo, ela parecia uma deusa em forma de mulher.

— Obrigado... Eu acho.

Ela riu.

— Creio que você já conheceu Tobias. – ela apontou com o indicador para um balcão aos fundos. Lá, o homem de três braços manuseava com habilidade taças e garradas, enchendo uma por uma com uma quantidade considerável de uísque.

— Tivemos um encontro agradável.

Ela riu novamente. Era o tipo de som do qual eu nunca me cansaria.

— Bem, esse é o Ozzy. – apontei para o cão arfante de aparência insana ao meu lado. – Ele é a cara do dono.

— Ah, eu conheço o Ozzy. Ele tem sido um bom garoto.

Franzi as sobrancelhas, confuso. Confusão, na verdade, era o que mais vinha preenchendo a minha vida desde aquela noite no bar; e, por mais que eu gostasse de me sentir perdido uma vez na vida, a completa cegueira e incompreensão estavam me atormentando.

Aquele era o momento. Havia tantas perguntas sem resposta, tanto a descobrir... E então fiz a pergunta mais inocente de toda a minha vida.

— Por que eu?

Em outro contexto, eu podia ser um garoto apaixonado conversando com a menina que amava. Eu podia ser alguém que reclama do próprio azar. Eu podia ser muitas coisas. Entretanto, sempre haveria uma constante.

Em qualquer contexto, eu soaria como um idiota. Exatamente como agora.

— Ah, Fernando... 

Então, ela deu a resposta mais simples de todas:

— Por que não?

Mesmo sabendo que era mentira, eu sorri.

 

(...)


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Notas finais do capítulo

Abraço de urso. ♥