Foclore Oculto. escrita por Júlia Riber


Capítulo 2
Capítulo 2 (1º parte)


Notas iniciais do capítulo

Como o capítulo é um tanto longo, dividirei em duas partes, mas ambos os textos têm o mesmo tema, a maldição de Ângela.



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O almoço havia sido há uma hora, o trato com o Curupira há três e para Núbia Cabrall aquele dia já havia cumprido sua cota de estranhices e a única coisa que ela queria agora era prosseguir as próximas horas sem se sentir uma esquizofrênica. Porém, ela não se esqueceu daquele peculiar "contrato de amizade" que havia feito com Cissa e assim sendo decidiu procurar algo de comer para levar ao rapaz.

Ao se aproximar da cozinha ouviu Iara e Ângela dialogando em tom baixo e tenso. Núbia inicialmente pensou em voltar outra hora, depois decidiu que não devia ser nada sério, que iria entrar na cozinha de qualquer modo e sair rapidinho, porém, ao se aproximar mais, ouviu parte da conversa, o que a fez decidir ficar na porta escutando o que diziam. Mesmo sendo aquela uma atitude obviamente errada, Núbia era curiosa de mais para evita-la.

— Mal—estares é pouco! — dizia Iara. — Era para aquele veneno durar o dia todo e agora Edgar já está bem! Ou ele realmente é muito forte, ou você não fez o que mandei, Ângela.

— Fiz sim senhora — dizia Ângela amedrontada. — Coloquei a porção exata do veneno na bebida dele. Eu juro! Três tipos de venenos diferentes no vinho de Edgar. Do jeitinho que a senhora mandou. Coloquei sim.

— Pois não deu certo! — exclamou Iara nervosa. — Qualquer um morreria dolorosamente com aquele veneno e Edgar só sentiu um mal—estar? Que raiva!

— Mas é um avanço Iara! — disse Ângela tentando animar a patroa. — Os venenos anteriores sequer faziam efeito! Efeito nem um. Sem contar que isso nem é realmente necessário... Essa brincadeira já basta, não é senhora?

— Eu decido quando a brincadeira acaba, Ângela — Iara encarou a cozinheira a fazendo recuar de medo.

Núbia estava aterrorizada, deu alguns passos para trás, silenciosa o suficiente para não ser notada, porém Iara disse da cozinha:

— Escuto sua respiração mocinha.

Núbia arregalou os olhos, sem saber o que mais lhe dera medo, se era ser descoberta ou a incrível audição de Iara, que aliás, já se aproximava.

Era tarde de mais para fugir. Iara se deparou com Núbia atrás da porta e agarrou-a pela jaqueta jeans que usava.

— O que ouviu? — perguntou Iara ameaçadora.

— Eh... Nada.

Ângela apareceu logo depois.

— Senhora! Não vai fazer nada com ela, vai? — disse a cozinheira preocupada.

— É claro que não, né Ângela.

A mulher largou a menina e suspirou.

— Núbia. Seja lá o que você tenha visto ou ouvido, saiba que não fazemos por mal, é que ele realmente merece. Edgar anda insuportável, tentou me proibir de sair de casa! Porém, ninguém tem direito de me proibir de nada e a única coisa que eu quero é mostrar para Edgar quem é que manda nessa casa, mas para isso tenho que o enfraquecer primeiro. Por isso os venenos. Considere uma brincadeira boba.

Núbia fez cara feia.

— Edgar é um velho, já deve ser fraco o suficiente não acha? Sem dizer que eu ouvi você dizendo que os venenos eram para matar!

Iara e Ângela deram risadinhas sádicas. Iara então pegou o rosto de Núbia com carinho.

— Oh, mocinha, você não conhece Edgar... Acredite, não é qualquer veneno que mata aquele desgraçado, se houvesse eu saberia, da mesma forma que eu sei quais os limites e fraquezas dele. Então pare de me olhar como se eu fosse uma assassina. Hum? Eu sei o que faço.

— Sim, sim. Isso é normal, sempre acontece, Iara sabe o que faz, sempre sabe — disse Ângela com um sorrisinho.

Núbia negou com a cabeça incrédula.

— Sempre acontece... Meu Deus, Iara, se você não gosta o Edgar por que não pede divórcio ao invés de envenena-lo? Isso é insano.

Iara riu.

— Quem disse que eu não gosto dele? Só fique calada, sim? Se eu souber que você contou o que ouviu aqui para alguém, esqueça sua internet.

Iara deu uma piscadinha para Núbia e depois voltou-se para Ângela.

— Ângela, querida, leve Núbia com você, ela precisa se distrair um pouco.

Iara lançou uma piscadinha para Ângela, um último olhar repreensivo para Núbia e se foi com um sorrisinho.

Núbia por sua vez, olhou Ângela completamente perdida.

— Ângela... Me explica, por favor, qual o problema do povo dessa casa?

— Ah, meus senhores são assim mesmo, brigam, tentam se matar, Edgar a tranca, Iara o envenena; Edgar a trata mal e ela dá uma flechada nele, mas depois se resolvem, ficam bem por um tempo e então voltam a brigar.

— Que idiotice.

Ângela riu.

— Com o tempo você se acostuma, acostuma sim. Somente aconselho que não se intrometa, é melhor, bem melhor.

Aquilo ainda lhe parecia loucura, mas por dentro Núbia se perguntava o porquê de se preocupar com Edgar e Iara; "que se matem", pensou aquele lado malvado da garota. Logo qualquer pensamento a respeito do casal psicopata ficou para trás quando a garota notou várias sacolas e cestas na mesa, e, o cheiro maravilhoso de comida que vinha delas.

— O que é aquilo?

— Ah sim! Vou levar isso para vila Fim do Mundo. Iara disse para te levar comigo, me acompanhar, quer ir? — disse Ângela com um sorrisinho.

Núbia assentiu, além do mais, uma boa ação de vez enquanto caia bem.

Ainda sim, havia algo há se perguntar antes de qualquer coisa.

— Eh... Ângela, por que você e Iara acham Edgar tão forte?

Ângela desviou o olhar.

— Ah, porque sim. Venha, me ajude a pegar essas coisas. Quem sabe Messias nos de uma carona. Isso seria bom, muito bom.

Núbia revirou os olhos, definitivamente Ângela não era a melhor pessoa para arrancar informações.

...

Messias estava sumido e como nem Ângela nem Núbia dirigiam, elas foram caminhando mesmo, as sacolas não estavam tão pesadas e Ângela sabia atalhos para chegar mais rápido á vila.

No caminho as duas conversaram pouco, a forma medrosa e repetitiva de Ângela falar era fofa e medonha ao mesmo tempo, mas Núbia estava começando a se adaptar com aquilo, ela pensou em perguntar várias vezes por que Ângela era daquele jeito, se ela tinha crise de pânico ou algo assim, mas achou uma pergunta chata de se fazer.

Logo pararam um pouco na estrada de terra para descansar. De um lado da estrada havia um imenso pasto cercado, do outro, uma espeça mata com poucas trilhas. Mais a frente já se via as primeiras casas de Fim do Mundo, faltava pouco.

Ângela então focou seus grandes olhos no braço de Núbia já que o calor a fez arregaçar as mangas.

— O que é isso? No seu braço, um machucado, tem garras no seu braço!

Núbia olhou as próprias cicatrizes, havia se esquecido naquele momento das marcas deixadas pelo Curupira e agora queria dar um tapa na própria cara pela idiotice.

— Ah isso...

Antes que ela precisasse criar uma história, uma voz masculina as chamou, desviando o assunto.

— Ei moças, precisam de ajuda?

As duas se viraram e se depararam com Cissa saindo de uma trilha há alguns metros, e, com seu costumeiro sorriso sapeca.

— Menino Cícero — disse Ângela.

— Vocês se conhecem? — perguntou Núbia.

— Claro, a melhor cozinheira da região — disse Cissa —, mas com uma péssima mania de levar mais peso do que devia.

Cissa se aproximou e estendeu as mãos para Núbia e Ângela então ambas deram metade de suas sacolas para ele.

— Ele me ajuda a levar essas coisas para a vila Fim do Mundo ás vezes — esclareceu Ângela —, ajuda muito.

— Eu sou incrível — concordou Cissa.

Núbia revirou os olhos com o comentário dele, mas estava feliz por enfim conhecer alguém que falasse bem de Cícero.

Os três então continuaram o caminho até a vila Fim do Mundo e Cissa com suas piadas e deboches, fez com que Ângela esquecesse totalmente as marcas no braço de Núbia.

Logos eles andavam pelas ruas de paralelepípedos da vila fim do mundo, com casas em estilo antigo e tintura desbotada.

A construção que se erguia no centro da cidade, com vidros coloridos e paredes brancas era claramente uma igreja católica. Ao chegarem a praça matriz viram um senhor com batina e cara de cansado que estava na porta e este ao ver Ângela sorriu.

— Ângela! Enfim chegaste, as famílias estão aqui dentro esperando a doação.

Ângela sorriu e assentiu.

— Perdão, padre. Demorei um pouquinho porque vim andando. Por isso.

Os três subiram os degraus no mesmo instante em que uma senhora, com roupas recatadas e floridas saía da igreja. Ela parecia ser o tipo de pessoa que por natureza é mal—encarada, mas quando fitou Cissa o olhou de baixo a cima com nojo, e Núbia, notou bem aquilo, o que a fez encarar a senhora da mesma maneira.

O padre pegou as sacolas de Núbia e Cissa com gentileza.

— se quiserem entrar... – convidou o padre já adentrando a igreja.

— Melhor não... — disse Cissa olhando para dentro com certo medo.

A senhora mal—encarada não se conteve em dizer:

— Bom mesmo que não entre alguém como você na casa de Deus.

Cissa somente a encarou, mas parecia acostumado com aquilo já Núbia se segurou muito para não mandar ela se catar. Ângela, por sua vez, foi a mais esperta de todas.

— Exatamente, Malvina, a casa é de Deus não sua para decidir quem entra ou não. Núbia, também não quer entrar?

—Vou te esperar aqui fora com o Cissa — conseguiu dizer Núbia.

Ângela assentiu e foi fazer sua boa ação, já a mulher mal—encarada, depois de um tempo paralisada pela “patada”, também entrou, agora com a expressão ainda mais ranzinza.

Logo após as duas partirem, Núbia e Cissa se fitaram e riram, riram muito.

— Viu a cara daquela vaca? — disse Cissa.

— Nunca imaginei a Ângela fazendo isso. Mas adorei, ela é das minhas.

— Ela é estrainha, mas não é fraca não, menina.

— Né.

Os dois riram mais um pouco e logo recuperaram o ar.

—Bem, acho que ela vai demorar. Vamos nos sentar? — disse Cissa apontando para os degraus.

Núbia deu de ombros e os dois sentaram-se no primeiro degrau, tendo como vista somente aquela praça pequena e sem movimento.

— Por que ela disse aquilo para você? — disse Núbia do nada.

Cissa respirou fundo.

— Porque sigo religião afro—brasileira e não tenho vergonha de dizer isso. Eu particularmente estou acostumado de me chamarem de macumbeiro, de dizerem que sou do diabo, sendo que minha religião nem acredita no diabo — ele riu, depois deu de ombros —, Mas desisti de explicar isso para as pessoas.

Núbia assentiu compreendendo.

— Isso é idiota, alguém tratar outra pessoa mal só por causa de uma crença.

— Infelizmente, isso é rotineiro, menina, o lado bom é que existem pessoas como a Ângela, que acredita na crença dela, mas não descrimina a dos outros.

— É... Sabe, quando eu tinha 11 anos o pastor da igreja da minha tia disse que eu era possuída, por andar toda de preto e ver coisas que ninguém mais vê.

Cissa deu uma risadinha com a naturalidade com qual Núbia contou tal acontecimento.

— E sua tia fez o que?

— Trocou de igreja — respondeu Núbia com um sorrisinho. — O outro pastor, aliás, disse que eu somente era especial, ele era um cara legal, mas eu nunca fui muito de ir aos cultos e minha tia sempre respeitou minha decisão como eu respeitava a dela.

— Isso é ótimo — observou Cissa e Núbia assentiu.

— Minha tia era maravilhosa — murmurou Núbia lembrando-se de Rita de Ellis o que a fez entristecer — O que acha de mudar de assunto?

Cissa notou o desconforto de Núbia e assentiu.

— Claro, que tal, “e minha comida”?

Núbia revirou os olhos.

— Eu separei algo para você, mas deixei no casarão.

Cissa aproximou dois dedos dos olhos depois apontou para Núbia em uma clara mensagem: Tô de olho em você. E Núbia fez aquela costumeira cara de tédio misturada a "queria te matar".

...

Horas mais tarde, quando Núbia e Ângela já haviam voltado para casarão Núbia tratou de pegar um lanche e saiu à procura de Cissa, que como de costume havia sumido, um pouco antes de chegarem ao casarão. Ela caminhou pelo jardim e notou que os dois portões da baia estavam aberto, porém, lembrou-se de ver todos na casa, então quem teria aberto?

A primeira entrada dava a um cômodo com montes até o teto de feno e ração de cavalo, o segundo portão também entreaberto provavelmente dava nos estábulos então Núbia foi explorar. Ao entrar na área dos cavalos, porém, ficou pasma. Os seis animais estavam amarrados uns aos outros pelas caldas, suas crinas estavam trançadas e estavam todos desesperados e já cansados de tentarem se soltar. Núbia deixou o lanche cair no espanto, mas alguém o segurou.

— Oh, cuidado — disse Cissa ao seu lado, pegando os lanches. — Demorou um pouco, hein, mas está perdoada.

— Os cavalos — disse ela ainda pasma.

— Bem, isso é uma baia de cavalos, se você encontrasse ornitorrincos ia ser estranho né? — disse Cissa natural, enquanto abocanhava um lanche.

— Eu sei! — rosnou Núbia. — Eu quero dizer: Os cavalos, eles estão amarrados. O que aconteceu? Olha só pra eles, estão desesperados!

— Eu achei que ficou legal — disse Cissa com a boca cheia, algo nada educado. — Uma arte! Em todos os sentidos.

Núbia o fitou.

— Você fez isso? — perguntou ela.

— Foi você? — perguntou ele de volta.

— Não!

— Então fui eu — concluiu ele.

— Isso é perverso, Cissa!

— Ah, deixa de drama, menina, depois eu os desamarro, não se preocupa não. Só não conte pro Edgar, ele detesta quando eu faço isso.

— Não consigo imaginar o porquê — ironizou Núbia.

— Nem eu — disse Cissa.

Ele acabou com o lanche em segundos. Depois começou a desamarrar as caldas dos cavalos. Quando livres, os animais se afastavam amedrontado de Cissa, depois por algum motivo, voltavam devagarinho em direção á ele.

— Esses cavalos me amam — comentou Cissa.

— Algo bem estranho — disse Núbia.

Cissa riu.

— Eu tenho fixação em tranças e em crinas de cavalo, mas não faço mal á eles, ás vezes deixo eles cansados quando saiu cavalgar, mas depois eu mesmo alimento e dou água para os animais, então acho que deixo os cavalos confusos sobre se devem ou não gostar de mim.

— Você quer deixa-los loucos como você? — questionou Núbia levantando uma sobrancelha.

—Quem sabe... Seja como for, obrigado pelos lanches, menina — disse. — Eu amo lanches de carne, até parece que você adivinhou.

— Por nada

Cissa então, sem delongas, pegou a mão de Núbia e a levou com ele.

— Sente-se — disse ele já se sentando no feno que havia na entrada.

— Por quê? — disse ela meio estranhada, mas Cissa voltou a puxa-la pelo braço a fazendo sentar ao lado dele.

— hey — reclamou ela — Já ouviu falar em livre arbítrio?

— Já, várias vezes.

— Então poderia parar de ficar me puxando para onde você quer.

Cissa revirou os olhos.

— É que você é muito travada, prefiro agilizar as coisas. Seja como for, você me pagou com o lanche agora vou fazer meu papel de amigo. Então amiga, desabafa — brincou ele com jeitinho afeminado.

Núbia revirou, aquele garoto era um grande idiota e ela era ainda mais por gostar disso.

Seja como for ela queria muito se abrir com alguém e acabou contando para Cissa sobre a conversa de Iara e Ângela. Ela pensou que Cissa lhe acharia uma louca por ouvir algo assim e ainda se calar, mas ele foi até bem compreensivo.

— Você está certa em não dedura-las. Sério, não quer ter Iara como inimiga. O que tem de bonita aquela mulher tem de ruim.

— Você sabe por que eles brigam tanto?

— Preciso responder? Acho que você já está tempo o suficiente naquela casa para saber que nem um dos dois é um amor de pessoa, Edgar então... Grosso, ranzinza, revoltado entre outras coisas nadas positivas.

— Então por que ela se casou com ele?

Cissa começou a falar, depois parou, como se pensasse melhor no que diria.

— Ela não teve escolha, menina. Foi obrigada — disse ele por fim —, e Ângela também não tem muita liberdade naquela casa. Por isso as duas se uniram, eu acho. Se você não atrapalhar nos planos delas, fica ilesa, pois o assunto não é você. Então esqueça isso.

— Não foi isso que pareceu, Ângela e Iara falavam sobre o que estavam fazendo com Edgar como algo normal, uma brincadeira de mau gosto, mas... Elas não pareciam querer mata-lo de verdade.

Cissa franziu os olhos, depois soltou uma risadinha sarcástica.

— Elas só disseram isso para te deixar mais tranquila, óbvio.

— Todo mundo nesse lugar é maluco! — protestou Núbia com as mãos na cabeça — E não é no bom sentido.

Cissa riu.

— Calma, menina, não se preocupe que logo você vai ficar maluquinha também.

— Isso era para me acalmar? — disse Núbia com uma sobrancelha levantada.

— Não, pra te assustar mesmo.

Núbia fez sua cara entediada e Cissa novamente riu.

— Essa sua cara fechada misturada com "aff", é para dar medo? — perguntou Cissa.

— Ás vezes sim, mas em geral, minha cara natural é de mal—humorada. Não posso evitar — disse Núbia dando de ombros.

Cissa levantou uma sobrancelha.

— Hum... Sabe, eu tenho uma teoria de que todo mundo tem um lado cômico e maluco dentro de sí, só que elas só libertam esse lado quando se sentem totalmente à—vontade.

— O que não é meu caso.

Cissa aproximou o rosto do dela.

— Veremos até quando — murmurou ele desafiador.

Núbia deu uma risadinha sarcástica.

— É, veremos...

Foi então que ouviram gritos vindos do casarão. Isso os fez levantar rapidamente e sair da baia para tentar entender o que estava ocorrendo.

Os gritos eram femininos, mas não pareciam ser de Iara e nem de desespero, não, eram de ódio.

Núbia era muito curiosa, não podia evitar isso, então pegou na mão de Cissa e disse:

— Vamos ver o que é?

Cissa olhou nervoso para o caminho até o casarão.

— Eu... Não posso entrar aí, Edgar colocou um limite para mim. Não posso chegar a sequer 10 metros do casarão.

— Cissa! Tem medo do Edgar? — disse ela provocativa.

Cissa largou bruscamente a mão dela.

— Não é medo, menina — disse ele bravo. — Eu lá tenho medo de algo? Não! É... precaução. Agora, se quiser, pode lá ver o que é, depois me conta.

Núbia bufou, mas não discutiu, simplesmente correu até o casarão saber o que ocorria.

...

Na cozinha, Ângela jogava todas as panelas e talheres do armário e gritava em fúria. Atrás dela, Iara se esquivava dos objetos voadores identificados, tentando apazigua a situação.

— Calma Ângela! Já disse que desse jeito é que você não vai achar.

— Estava aqui! — berrava Ângela batendo no fundo do armário. — Sempre está aqui!

— Com essa gritaria a única coisa que vai conseguir é irritar Edgar! Sua louca!

Aquilo pareceu assustar Ângela, ela então se sentou no chão e ficou encolhida, agarrada as próprias pernas.

— Pronto — disse Iara irritada. — Agora vai entrar em modo depressão.

— O que aconteceu? — perguntou Núbia.

Iara se voltou a ela.

— Ângela perdeu os remédios dela.

— Esses remédios eram muito importantes?

— Bem, a única coisa que posso dizer, é que sem eles, é melhor que todos durmam de portas trancadas.

Núbia não entendeu o que ela queria dizer, mas Ângela desabou em lagrimas ao ouvir isso.

— Não! — dizia ela. — Eu não quero aquilo de novo, não quero.

Iara revirou os olhos.

— Pare de drama, Ângela! Eu vou tentar a ajuda de Edgar.

Ela então subiu, falar com o marido.

Núbia caminhou devagar até Ângela e se agachou para tentar falar com ela.

— Ângela, posso ajudar em algo?

A cozinheira não a olhou, somente negou com a cabeça e a garota suspirou e ficou um tempo ali, só para não deixa-la sozinha.

Após Iara pedir para ficar a sós com Ângela, Núbia voltou á baia de cavalos, mas Cissa não estava mais lá, ela revirou os olhos e foi para o quarto e ao pegar o celular viu uma mensagem.

Lucas: Oi Núbs? Tudo bem?

Núbia abriu um amplo sorriso, o que lhe doeu um pouco o maxilar por falta de costume, quem sabe. Ela já se perguntava á alguns dias onde andava Lucas, já havia uma semana que não o via pessoalmente, pois enquanto estava na casa de Wiliam ele por algum motivo não a visitara, mesmo quando soube que ela se mudaria para o Sul do país. Isso tudo a fez ficar com certa raiva dele e assim, decidiu tentar ignora-lo e por poucos dias, ela realmente achou que estava começando perder qualquer sentimento por aquele garoto, mas ali estava ela, toda sorridente fitando a mensagem na tela do celular.

Wiliam que nunca foi com a cara de Lucas dizia ser grande sacanagem dele não estar presente no momento mais complicado da vida de Núbia, já que ele dizia gostar tanto dela, mas o Lucas, mandava mensagens dizendo-se ocupado e Núbia acreditava naquilo, sem contar que o rapaz sempre foi um tanto fraco e preferia ficar longe de coisas pesadas e muito tristes.

Porém, as ideias de Núbia sobre Lucas mudaram totalmente com a conversa que tiveram nessa ocasião. Uma hora depois, Núbia corria pela mata, seus olhos estavam lacrimejantes e seu corpo cheio de adrenalina, ela correu, correu, se distanciando ao máximo do casarão e logo sentiu suas pernas bambas e sentou abaixo de uma árvore, e ali, sentiu-se segura para enfim chorar.

Cinco minutos se passaram entre soluços, murros na árvore e no chão, urros de raiva e lágrimas, ela estava com a cabeça enterrada entre os joelhos, mas sentiu uma presença ao seu lado e imediatamente se virou em um sobressalto.

— Cissa!

Cicero que estava sentado ao seu lado sorriu com cinismo.

— Oi menina.

— Eu odeio seu poder de tele transporte.

— Se chama passos leves.

Núbia conseguiu dar uma risadinha.

— E então, por que estava chorando? — perguntou Cissa.

Núbia desviou o olhar.

— Eu não estava chorando...

— Sua cara está vermelha e inchada, se não estava chorando está se transformando num tomate.

Núbia rosnou e Cissa sorriu de canto. Ele pegou uma flor que havia perto da árvore em que estavam encostados e colocou com delicadeza no cabelo de Núbia, que paralisada, não interviu.

— Pronto, coloquei um pouco de cor em você, com essas roupas pretas e cara de choro está parecendo muito aquelas garotas que dizem que a vida é uma merda, mas nunca pagou um boleto e eu sei que você já sofreu coisa pior que boletos, é forte de mais para ficar chorando.

Núbia revirou os olhos com um sorrisinho.

— Idiota.

— Também te adoro, E aí? Vai desabafar com seu amigo pago por comida ou não?

Núbia suspirou.

— Eu... Na verdade só juntei tudo que me aconteceu até agora. Sabe quando você guarda vários problemas e tudo junto acaba explodindo? Então, foi isso.

— Entendo bem, mas para explodir alguém tirou a proteção da granada.

Núbia concordou com a cabeça.

— Um garoto que eu era a fim... Ele estava me tratando meio entranho, sabe, ele sempre mandava mensagem, a gente sempre conversava, mas depois da morte da minha tia eu fiquei um tempo no conselho tutelar, bati em alguns policiais que tentaram me levar para lá, aliás, depois fiquei na casa do meu amigo e nesse meio tempo o Lucas, o garoto, sumiu. Agora descubro que ele está com outra. Ele disse que foi por eu ter ficado muito tempo fora, mas eu só não o vejo a uma semana!

— Ele é rápido — observou Cissa.

— E o pior, é que falando com meu melhor amigo, Willian, descobri que ele está com alguém que conhecemos, tanto eu quanto o Lucas, ela andava conosco, minha amiga.

— Tenso.

— Você sabe o que isso significa, né? É obvio que ele já estava com ela e foi só eu me afastar que ele assumiu, mas já me traia com aquela garota há muito tempo. A gente não namorava de verdade, mas... Eles me fizeram de idiotia! Não precisavam mentir para mim, de verdade não precisavam! Que raiva!

Cissa ficou um tempo pensando no que diria enquanto a observava e enfim concluiu:

— Olha menina, te olhando assim, você não perece magoada só com raiva mesmo. Isso significa que você nem gostava tanto assim desse tal Lucas.

— Porque é exatamente isso — respondeu. — Minha tia morreu, uma traição não é nada para mim, nada pode me deixar mais triste que a falta da minha tia—mãe, ninguém tem mais importância que ela. Mas... É que me revolta, não consigo entender, por que alguém se esforça tanto, perde tempo conquistando uma pessoa se nem gosta dela de verdade.

Aquilo pareceu afetar Cissa de alguma maneira porque ele desviou o olhar com certa tristeza.

— Me fiz essa pergunta por muitos anos, menina, muitos...

— E achou a resposta?

— Não exatamente, mas uma coisa entendi, pessoas assim não merecem nem mesmo nossa raiva.

Núbia assentiu.

— É... Mas ainda quero muito dar um soco no Lucas e na Rebeca. Admito.

— Menina, você tem um grave problema com raiva, sabia?

Núbia não respondeu nada, somente riu, mas é claro que ela sabia.

Cissa se levantou e limpou a roupa das folhas secas, enquanto isso Núbia o observava pensando no quanto estava grata por ele estar ali com ela.

— Obrigada por me fazer rir — disse por fim.

Cissa estendeu a mão para ajudar Núbia a se levantar.

— Estou sendo um ótimo amigo mesmo, ne? O que um pão de carne não faz com as pessoas — brincou ele.

...

Cissa decidiu então que levaria Núbia para ver uma cachoeira que ficava ali mesmo no sítio e como se ela dissesse não, ele a levaria de qualquer forma, resolveu então acompanha-lo por espontânea vontade.

Após caminharem seguindo um riozinho que passava em meio a mata, chegaram a cachoeira que realmente era lindíssima, caindo sobre um lago azul e límpido. Núbia ficou encantada e Cissa pareceu adorar aquilo. Logo acharam uma grande rocha na qual resolveram se sentar e observar a cachoeira.  Cissa então perguntou o porquê da gritaria mais cedo e Núbia lhe respondeu contando tudo que ouvira no casarão.

— Ah não — disse Cissa balançando a cabeça. — Que oxalá nos cuide.

— O que, é algo muito ruim? — perguntou Núbia.

— Se esses tais remédios forem os que eu estou pensando, todos nesse sítio e na redondeza dele não terão uma noite nada tranquila.

Núbia levantou uma sobrancelha.

— Do que está falando?

Cissa revirou os olhos.

— Menina, o que você tem de bonitinha você tem de lerda — disse ele e Núbia o fuzilou com os olhos. — Desculpa, é mais forte que eu — disse ele tentando acalma-la. — Mas então, para pra apensar: Hoje é quinta feira; Iara falou para você dormir de porta trancada e a própria Ângela já da as pistas. Aquele jeito franzino, amedrontado, são característica de que já sofreu ou já fez muita gente sofrer, alguém amaldiçoado, entende?

Núbia estava perdida e ficou o fitando sem expressão. Cissa balançou a cabeça.

— Está bem, vou ser mais claro. Ângela é a mula-sem—cabeça.

— Que? — exclamou ela.

— É isso aí — disse Cissa. — O remédio que ela tanto fala, é o que a impede de se transformar, mas alguém muito sacana deve ter roubado dela, só para ver o circo pegar fogo.

Núbia estreitou os olhos, pensativa.

— Foi Edgar, sem dúvida foi ele. O Velho descobriu que Ângela e Iara estão tentando envenena-lo e resolveu se vingar.

Cissa levantou as sobrancelhas surpreso, depois sorriu.

— Olha, você não é tão burra. É, isso faz todo sentido.

Cissa então resolveu contar mais sobre a mula sem cabeça:

— Me contaram que antes, Ângela era uma moça lindíssima, porém sempre foi muito religiosa, então nunca se envolvera com ninguém e passava a maior parte do tempo na igreja, mas foi ali que ela conheceu um padre jovem e bonitão, que acabou com a vida dela. Bem, não sei muito bem como aconteceu, mas sei que rolou.

Núbia franziu as sobrancelhas.

— Rolou o que?

— Um romance entre Ângela e o padre, oras. Os dois quem sabe tenham tentado resistir, mas... Sabe como é, a coisa ficou mais sério e os moradores de onde Ângela vivia, todos muito religiosos, descobriram e quiseram castiga-la pelo "pecado", ela foi quase linchada na rua, após ser pega no flagra saindo dos dormitórios do padre. E naquela mesma noite de quinta—feira quando todas aquelas pessoas jogavam pragas e amaldiçoavam a pobre moça na rua, a lua a iluminou e fez aquelas energias mútuas e más darem vida a uma criatura horrível, uma mula sem cabeça que devora cadáveres de criança mortas, para que sua forma humana, que volta no dia seguinte, prossiga jovem. Essa parte da juventude pode parecer boa, mas foi o que sempre entregou Ângela, toda vez que ela tentava fugir e morar em um novo local, notavam que ela não envelhecia e colocavam nela a culpa dos ataques da mula sem cabeça, além do mais — Cissa se aproximou de Núbia — A mula sem cabeça quando não acha um bom cadáver de criança, faz os cadáveres ela mesma ou as devora vivas — murmurou ele tentando assustar Núbia, o que não deu muito certo.

— Como ela vai comer se não tem cabeça? — perguntou Núbia.

Cissa abaixou o olhar pensativo.

— É, agora você me pegou. Não faço ideia. Mas que ela come, come.

— E deixa eu adivinhar, a Ângela não quis mais comer criancinhas e ficou daquele jeito... Abatida.

— Isso mesmo — disse Cissa. — Pelo que sei, Edgar e Iara prometeram a cura para Ângela se ela fosse fiel a eles e assim foi. Só que sem comer cadáveres, ela fitou daquele jeito, como se ela fosse o cadáver.

— E agora que Ângela está tramando contra Edgar, sendo fiel somente a Iara — completou Núbia, — Edgar descumpriu a promessa e tirou a cura dela.

— Exato! Menina você está começando a me encantar — brincou Cissa.

Núbia riu. Cissa então olhou para o céu e entortou os lábios.

— Já está entardecendo — observou ele. — Melhor voltar cada um para sua casa.

Núbia assentiu concordando. Apesar de seu espirito aventureiro e sombrio, não estava nada a fim de encarar monstro algum, só queria ficar em um lugar seguro ignorando a maluquice daquele lugar.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado e até a próxima ;)



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