Foclore Oculto. escrita por Júlia Riber


Capítulo 3
Capítulo 2 (2º parte)


Notas iniciais do capítulo

Continuação do capítulo anterior.



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Núbia Cabrall se arrependeu amargamente de voltar para o casarão quando viu o clima presente no local.

Do quarto do casal era possível ouvir Iara discutir com o marido. O chamava de irresponsável e cruel. Ordenava Edgar á dar os remédios de volta a Ângela antes que algo grave acontecesse e ele respondia somente que daria os remédios se Iara em troca lhe desse os venenemos que guardava.

O Trato pareceu justo na visão de Núbia, pois tudo havia começado graças à ideia insana de Iara em envenenar o marido e era natural que Edgar quisesse se certificar que aquilo nunca mais aconteceria. Por outro lado, Ângela não merecia ser usada de refém naquele tiroteio de vinganças, e Iara claramente sentia-se culpada e responsável pelo envolvimento da cozinheira naquela briga, pois esta somente estava cumprindo ordens da patroa e agora era a mais afetada.

As horas que se seguiram foram acompanhadas de um silêncio angustiante. Edgar ficou um longo tempo no escritório lendo livros ou ás vezes, fingindo que os lia, tudo na intenção de evitar esposa. Iara por sua vez passou o anoitecer na área de trás da casa, sentada a beira da piscina e fitando, com olhar perdido, a estrada que levava a vila. Já Núbia ficou no quarto olhando as mensagens de Lucas e pensando no quanto aquela traição lhe parecia fútil agora.

Ela ainda sentia raiva de Rebeca e Lucas, claro, mas aquilo era de menos, considerando que Núbia sempre estava com raiva. Decepção era o sentimento que ela esperava sentir naquela situação, mas que por algum motivo não sentia, o que significava que Cissa estava certo.

— Eu nem gostava tanto assim do Lucas — concluiu Núbia para si mesma, jogando o celular para o canto da cama.

Por outro lado, se seus problemas amorosos costumeiros da sua idade não lhe incomodavam, o fato da cozinheira e nova amiga ser a mula sem cabeça, além de nada costumeiro, a preocupava bastante.

 Ao notar o quão tarde era, Núbia foi à procura de Iara e considerando a falta do jantar e a expressão emburrada da tutora, concluiu que o trato com Edgar não havia dado nada certo.

 — Você faz ideia de onde ela pode estar agora? — perguntou Núbia simplesmente.

Iara se virou para a garota e deu de ombros.

— Não faço a mínima ideia. Só espero que ela volte amanhã.

Núbia faria mais uma pergunta, mas Iara estendeu a mão pedindo silêncio.

— Não quero falar sobre isso com você, mocinha. Perdão.

Iara se levantou e respirou fundo enquanto Núbia a encarava.

— Por que não? Eu não sou uma criança para você ficar me escondendo as coisas, Iara.

Iara caminhou para dentro do casarão e ao passar por Núbia deu palmadinhas em seu ombro.

— Você não é criança, mas é jovem de mais para saber de certas coisas. Seja como for, amanhã eu te explico melhor tudo isso. Agora minha conversa é com outra pessoa.

Iara prosseguiu caminhando, atravessando a cozinha, a sala de jantar, e logo subia as escadas e Núbia como não tinha mais o que fazer a seguiu, mas de maneira lenta.

Do andar de baixo, quando Núbia viu Iara entrando no escritório bufou, pois sabia que viria um segundo round daquela briga de casal.

— A culpa do sumiço da nossa cozinheira é sua! — acusou Iara ao entrar na sala.

Edgar sentado de frente á escrivaninha levantou o olhar.

— Deveria agradecer por eu ter me vingado somente dela, além do mais, Ângela foi apenas uma ferramenta sua — retrucou ele. — Agora pare com frescura, tchê, amanhã de manhã ela volta, tu sabe disso.

— E se não voltar? Edgar o que você fez foi imaturo, irresponsável!

— Olha quem fala — murmurou ele.

— Eu também errei — concordou Iara o que até fez Edgar olha-la com certa surpresa. — E você tinha todo o direito de revidar, mas em mim! Não na Ângela.

Edgar pousou o livro na escrivaninha e juntou as mãos com um olhar analisador.

— Te ver nervosa e culpada dessa maneira só me faz ter mais orgulho e satisfação da minha atitude.

Iara rosnou e o encarou com fúria enquanto Edgar sorriu de canto de maneira maldosa. Ela então berrou de raiva e saiu do escritório batendo a porta, só então notou Núbia parada no corredor perto da porta de seu quarto e com expressão um tanto assustada.

— Sinto muito — disse Núbia sem saber como agir.

Iara tentou abrir um leve sorriso.

— Que menina doce é você, Núbia. Como pode ter o sangue de Edgar?

Núbia deu de ombros e Iara soltou risadinha.

— É melhor você já ir dormir, querida. E tranque bem a porta e as janelas.

Núbia não retrucou e fez o que lhe foi pedido. A garota já estava começando a questionar se ela fazia tudo que Iara mandava por simpatizar com a tutora, ou se estava sendo enfeitiçada, pois definitivamente não era de seu feitio obedecer.

Seja como for, diante de toda a loucura daquele lugar, Núbia só sentia-se tranquila e segura quando estava dormindo, então sem dúvida aquela era melhor parte do seu dia.

...

De madrugada Núbia acordou com o barulho de cavalgadas bruscas no quintal. Ainda sonolenta ela foi até a janela, mas não a abriu. Pelo vidro embaçado, conseguiu ver um borrão marrom em chamas correndo pelo jardim, fazendo voltas pela casa, como se procurasse alguma forma de entrar.

Depois de muitas voltas a provável Mula sem cabeça pareceu desistir da ideia de invadir a casa e avançou dentre a mata.

No dia seguinte, Núbia encontrou Iara na cozinha tirando algumas frutas da geladeira, enquanto a cafeteira terminava o café.

— Oi mocinha — disse Iara ao vê-la —. O que vai querer comer?

— Ham... Só vou tomar café mesmo.

— Ótimo, fruta para mim, café para você, Edgar e Messias que se virem.

— Ângela ainda não voltou? — perguntou Núbia.

Iara assentiu lamentando.

— Infelizmente sim. Acho que terei que procurá-la antes do almoço, se não, quem vai cozinhar é o Edgar e eu realmente temo o que ele pode colocar na minha comida.

Núbia levantou uma sobrancelha.

— Então por que você não faz o almoço?

Iara fez cara feia e abanou as mãos.

— Oh não, eu sou péssima na cozinha, foi Edgar quem sempre cozinhou quando não tínhamos empregados.

Núbia levantou as sobrancelhas surpresa, mas depois deu de ombros.

— Bem, a gente vai achar a Ângela — concluiu Núbia confiante e Iara assentiu com um sorrisinho, concordando.

Na longa mesa da sala de jantar, Iara e Núbia tomaram o café da manhã sozinhas e só quando estavam do fim que Edgar pareceu.

— Cadê o café? — disse ele olhando a mesa de jantar vazia.

— A pergunta que você devia fazer é: cadê a nossa cozinheira? — retrucou Iara.

Edgar suspirou.

— Ela ainda não voltou?

— Não e agora você vai ter que me deixar procurar por ela, não pode me negar isso.

Os dois se encararam por um bom tempo, como uma briga de olhares que pelo jeito Iara ganhou, pois Edgar revirou os olhos e disse:

— Bah Tchê. Está bem, vá atrás de Ângela, mas Messias vai com você.

Iara fez cara feia, porém Edgar a ignorou e caminhou até a cozinha provavelmente para fazer seu café.

— Se eu não acha-la, eu te mato Edgar — avisou Iara.

Quando ele se foi Núbia concluiu que era melhor acompanhar Iara na busca pela cozinheira do que ficar naquela casa sozinha com Edgar, então cochichou para a tutora:

— Posso ir procurar a Ângela com você?

Iara a fitou ponderando a pergunta.

— Hum... Pode. Só vista algo confortável. Acho que vamos andar ou até mesmo correr bastante hoje.

Aquilo não tranquilizou Núbia, mas também não a fez desistir e assim ambas subiram cada uma para seu quarto para trocar de roupa.

...

Logo estavam Messias, Iara e Núbia no jipe de Edgar.

No banco do carona, Iara observava pela janela atentamente cada pessoa que passava, ela estava com uma camiseta simples azul, mas que lhe caiu muito bem, uma calça jeans justa e bota preta e com os cabelos negros amarrados em um rabo de cavalo, tudo isso lhe dava uma aparência mais comum, porém continuava lindíssima. Isso quem sabe explicasse porque Messias, que dirigia o carro, parecia fazer o máximo de si para não olha-la, sempre desviando a cara e tentando não encara-la de maneira alguma. Já Núbia no banco de trás, com calça preta rasgada, camisa regata e um tênis também da mesma cor, só observa a paisagem e de vez em quando fazia uma pergunta ou outra para Iara.

— Onde querem ficar? — perguntou o capataz enquanto atravessavam as ruas de paralelepípedos da Vila.

— No cemitério — murmurou Iara franzindo os olhos.

O capataz não pareceu gostar muita da ideia, mas não discutiu. Já Núbia achou empolgante, também não batia muito bem.

Messias estacionou o jipe e todos desceram, no entanto enquanto Núbia e Iara adentravam o cemitério, o capataz ficou encostado no carro, o que fez Iara levantar uma sobrancelha e colocar a mão na cintura.

— Se acha que vai ficar ai parado está muito enganado, deixa de ser medroso e venha conosco, inútil.

Messias bufou, mas não desobedeceu a patroa.

Os três caminharam pelo cemitério por um bom tempo, calados, até Iara se prenunciar.

— Eu sei que você sabe — disse ela olhando para Núbia.

— Sei o que? — perguntou Núbia.

— O que Ângela é. Só me pergunto se você achou a resposta sozinha, ou se alguém lhe contou. Também me pergunto como pode ficar tão tranquila sabendo de tudo isso.

— Já percebi que é melhor me acostumar com essas loucuras, ou quem fica louca sou eu — esclareceu Núbia dando de ombros.

Iara sorriu.

— Boa conclusão — disse ela.

Foi quando encontraram um dos túmulos quebrado. Iara analisou o caixão ali presente, era muito pequeno, estava aberto, mas parecia recente.

Núbia viu caída do lado do túmulo uma fotografia, ela a apanhou e observou a foto que continha uma criança de no máximo cinco anos com cabelo em duas tranças e uma roupa cor—de—rosa repleta de babado. Um arrepio percorreu o corpo da garota enquanto observava a imagem.

— Iara, você acha que Ângela... Devorou essa garotinha?

— Ao menos o que sobrava dela — disse Iara, natural de mais para tal situação.

O capataz só observava de braços cruzados.

— Achem logo essa mulher, tenho mais o que fazer no sítio — reclamou ele.

Iara o olhou feio e aquilo foi o suficiente para ele voltar a se calar e ficar de cabeça baixa. Foi quando alguém passou correndo dentre os túmulos, chamando a atenção dos três.

Messias farejou o ar e franziu o nariz.

— Maldição... É ela — concluiu.

Núbia não compreendeu o porquê de tanta certeza, mas largou a fotografia e correu junto a Iara.

Ângela corria logo à frente, sumia a aparecia do nada, correndo de um lado para o outro.

— Ou ela está brincando conosco ou está muito doida — murmurou Iara. — Ângela! — chamou. — Sou eu sua amiga Iara.

— Você não é minha amiga! — gritou Ângela de algum lugar.

— Sou sim — afirmou Iara. — Ângela, sei que fazia muito tempo que não se transformava, isso deve ter mexido com sua cabecinha, mas me ouça! Estou aqui para lhe ajudar!

Ângela surgiu de trás de uma lápide de mármore negro. Suas roupas estavam rasgadas, seus olhos ardiam em chamas e seus cabelos negros estavam mais espetados que de costume. Em compensação, ela já não parecia tão magra e abatida, aparentava-se até mais jovem.

— Sua pagã — disse ela fitando Iara. — Se acha melhor e mais bonita do que todos. Mas eu vou provar que sou melhor que você, vou acabar com Edgar sozinha!

— Primeiro: Você sabe que isso é impossível. Segundo: só eu posso tentar acabar com meu marido, sua louca.

— Eu vou ficar poderosa! Depois dessa noite me lembrei do quão deliciosa é a carne de uma criança e a força que me dá — disse Ângela esticando o corpo. — Nem que eu tenha que devorar todas as crianças dessa vila, desse estado, ou até mesmo do país! Eu vou ser mais poderosa que Edgar! Muito mais que você!

Iara a encarou.

— Você está fora de si, Ângela, me deixe cuidar de você, deixe eu te fazer lembrar quem você é!

Ângela rosnou e repentinamente avançou contra Iara e a derrubou colocando seus braços contra o chão.

— Eu sou um monstro! É isso que nós somos!

— Ângela me solte! — ordenou Iara.

Ângela realmente largou os braços de Iara, mas foi para socar sua cara.

— Seu feitiço não funciona mais em mim, não te obedeço mais — disse Ângela enquanto batia ainda mais na Tupânae. Por sorte, Iara não era só um rostinho bonito e conseguia se defender bem dos ataques e provavelmente só não revidava por que não queria.

Núbia não pode ajudar, gritava para Ângela parar, mas aquilo obviamente não adiantava em nada, ela olhou para os lados, porém não achou nada que pudesse usar contra Ângela.

Então Messias enfim apareceu, ele segurava um pedaço de madeira que provavelmente pegou dos caixões quebrados espalhados pelo cemitério, e com este acertou a costa de Ângela, o que a fez se afastar amedrontada.

— Demorou hein — reclamou Iara enquanto se levantava. Ela colocou a mão no rosto ferido e quando tirou, não havia mais hematoma algum. Messias não pareceu surpreso, mas Núbia ficou boquiaberta.

Ângela chiava e se contorcia em um canto enquanto Messias a ameaçava com o pedaço de caixão.

— Eu só quero ser livre — disse Ângela já não tão ameaçadora e sim tristonha, amedrontada.

Iara tentou se aproximar.

— Todos nós queremos, minha querida. Mas você sabe que pode confiar em mim.

Quando Iara iria tocar em Ângela, esta ultima a empurrou e rapidamente pegou o braço de Núbia e saiu em disparada arrastando a garota.

— Ângela, me larga! — disse Núbia tentando se soltar e tropeçando nas lápides baixas sem sequer conseguir acompanhar o ritmo de Ângela.

— Núbia! — exclamou Iara enquanto tentava ir atrás, mas Ângela estava rápida de mais.

Foi tudo muito rápido e assustador. Logo Núbia não via mais Iara, somente ouvia seus gritos.

 Ângela estava com força sobre humana e Núbia não conseguia se soltar nem ver para onde ia, tentou bater na cozinheira, porém Ângela sequer dor sentia.

Logo as duas entraram em uma capelinha em ruinas que havia no cemitério e desceram as escadas em caracol até a catacumba, com gavetas empilhadas, quatro de cada lado, caixões de uma família inteira. Núbia foi jogada para aquele cubículo e Ângela entrou logo depois e fechou a portinha de madeira que separava a catacumba da capela.

— O que fará comigo? — perguntou Núbia não com medo e sim de forma ameaçadora.

— Ainda não sei — admitiu Ângela. — Mas sei o que farei com esses gêmeos — disse ela olhando para duas gavetas ao lado.

Ângela as abriu, depois fez o mesmo com os pequenos caixões ali dentro. O terrível odor de carniça percorreu o local e Núbia teve que segurar o vômito. Logo Ângela tirou do caixão um bracinho pequeno, de criança, que já estava se decompondo e começou a devora-lo, até mesmo com as larvas. Dessa vez Núbia não teve como segurar e vomitou, o que piorou ainda mais o fedor do lugar.

— Ângela, você não é assim, para com isso — implorou Núbia. Mas a cozinheira a ignorou. E voltou a procurar o que restara da criança no caixão.

— Ah, pouca carne — reclamou Ângela fechando o caixão. Logo abriu o outro e sorriu satisfeita. — Esse morreu só um dia depois, mas está bem mais conservado.

— Eu pensei que você só comesse... crianças na sua forma Mula sem cabeça — disse Núbia tentando distrai-la, pois não queria vê-la comendo outros restos mortais, ainda mais preservados. — Mas está na forma humana agora, ou quase isso.

— Eu já disse, quero poder.

Ângela introduziu a mão no caixão e com certo esforço, arrancou uma perna de lá. Grande parte na carne já estava podre, mas ainda se via um sapatinho branco com lacinho negro que a criança usava. Antes que Ângela devorasse aquilo também, Núbia disse:

— Eu soube que você ficou amaldiçoada por ter tido um romance com um padre, mas... se for um romance era culpa dos dois né, por que só você foi amaldiçoada?

Ângela encarou Núbia por um tempo.

— Porque a raiva de todos se voltaram contra mim, não contra ele.

— Isso é injusto.

— A vida é injusta — disse Ângela, baixinho. — Agora preciso dar um jeito em você. Um Cabrall confiável é um Cabrall preso ou morto.

Ângela deixou a perna do cadáver no caixão e pegou uma corda que havia no canto e se aproximou de Núbia que tentou fugir, mas Ângela estava com uma força incomum e quando Núbia a jogou para o lado e correu em direção à escada Ângela rapidamente se ergueu, a pegou pelo cabelo e empurrou com força a cabeça de Núbia contra a parede, a partir dai tudo ficou escuro.

...

Horas depois Núbia acordou com uma terrível dor de cabeça e uma longa corda amarrando-lhe as pernas e os braços. Ela estava deitada no chão ainda daquela catacumba, mas Ângela não estava lá e Núbia aproveitou isso para tentar fugir, o que não conseguiu, pois os nós eram muito bem feitos, a corda estava extremamente justa ao corpo da garota. Depois de meia hora tentando, Núbia sentiu seu corpo dolorido de tanto ser contorcido, ela estava se sentindo uma lagarta presa num casulo sem saber virar borboleta.

Logo, porém, ouviu batidas forte na portinha de madeira, olhou para a entrada da catacumba e viu a porta de madeira sendo destroçada pelo o que parecia um machado. O coração de Núbia acelerou, quando a porta estava totalmente destruída e uma pessoa pulou para dentro da catacumba.

— Você tá bem enrolada hein — disse Cissa segurando um grande machado com uma mão e limpando o suor da testa com a outra.

Núbia riu, não só pelo sarcasmo de Cissa, mas pelo simples fato dele estar ali.

— Cissa! Como chegou aqui?

Ele foi até ela e começou a desamarra-la.

— Não que eu seja de espionar os outros, claro, mas estava... hum... por perto do casarão quando ouvi a Iara gritando desesperada que não havia te achado. Disse que Ângela estava maluca e muito forte, e que havia te levado por algum motivo. Parece que ela e Messias te procuraram bastante, mas não te acharam, nem você nem Ângela. A partir dai eu peguei meu machado e vim te procurar e como honestamente, sou mais esperto que os outros, aqui estou eu.

Enfim livre da corda Núbia mexeu os braços e se levantou para esticar as pernas.

— Muito obrigado, sério.

— Ah, por nada menina, se você morresse quem me arranjaria o almoço? Hoje mesmo tive que fazer minha própria comida, você não apareceu!

Núbia revirou os olhos.

— Desculpa. Estava ocupada sendo feita de refém por uma comedora de cadáveres. — ironizou ela.

Cissa riu.

— Tudo bem, acontece com qualquer um. Agora vamos, antes que a mulinha volte.

Cissa pegou a mão de Núbia e assim subiram a escada, porém ao chegarem na capela, viram Ângela entrando, ela estava com a roupa e cara toda suja, provavelmente havia violado muitos túmulos naquele dia.

— Onde pensam que vão? — disse ela fechando os punhos.

Cissa ergueu o machado.

— Ângela, a última coisa que quero é machucar você, então saia da minha frente. E eu acho, em minha humilde opinião, perca de tempo ficar atrás de Núbia, ela não é criança, então nem vale a pena devora-la, além disso, ter uma prisioneira da muito trabalho, tem que prender toda hora, alimentar, torturar, essas coisas. Se eu fosse você, terminava de devorar essas criancinhas aí da vila e deixava a ruiva ir embora.

— Nunca! — bradou Ângela. — Posso usa-la para me vingar ou ameaçar Edgar.

— Edgar está pouco se importando para garota. Sai logo da minha frente, vai.

— Não!

— Que pena — lamentou Cissa. — Então vamos para o plano A. — Tanto Núbia quanto Ângela fizeram expressão interrogativa. — De Agua benta, — prosseguiu ele com seu sorriso sapeca.

Logo ele tirou do bolso da camisa um vidrinho com um liquido que ao tocar a pele de Ângela a queimou. Enquanto esta se contorcia de dor, Cissa e Núbia correram para fora da capela.

— O que fazemos agora? — disse Núbia ofegante enquanto corria junto a Cissa.

— Igreja — disse Cissa apertando mais a mão de Núbia, como se essa palavra lhe deixasse nervoso. — Temos que ir até a igreja.

Ao saírem do cemitério, correram ruas e esquinas até a praça matriz, no centro da vila. Núbia refletiu em como Fim do Mundo era diferente da grande São Paulo, onde vivia antes. Não era movimentada, e podia-se correr que nem louco, sem ser atropelado, ao menos as chances eram menores.

Logo ambos chegaram à praça matriz onde se erguia a única Igreja da vila.

Os dois olharam para cima notando que já escurecia, e quase que em simultâneo, fizeram caras feias.

— Ela vai se transformar, — disse Cissa sem expressão — por completo e mais poderosa.

— Então vamos logo!

Núbia puxou Cissa para dentro da igreja, mas ele resistiu.

— Eu não sou bem vindo aí — disse ele. — Entra você, fique aí que a Ângela sem cabeça não vai te pegar.

— Como assim não é bem vindo? — Núbia olhou para trás analisando a igreja — Está vazia, pode vir. Ninguém vai ficar te enchendo o saco por você ser umbandista.

— Não é por isso — murmurou Cissa com certo desconforto.

Núbia revirou os olhos.

— Vem logo!

Cissa negou com cabeça então Núbia usou toda sua força para leva-lo com ela e conseguiu coloca-lo para dentro, o que inicialmente pareceu deixa-lo nervoso, mas logo sua expressão mudou. Cissa olhou para o chão e o teto e sorriu surpreso.

— Eu... Eu consegui entrar!

— Por que não conseguiria? — perguntou Núbia com expressão estranhada.

— Hum... Por nada — disse Cissa forçando um sorriso —. Vamos logo procurar uma cruz, eu li que isso espanta a Mula.

— ok.

Cissa voltou a pegar a mão de Núbia, (pelo jeito ele gostou disso) e juntos foram até o altar da igreja, onde ao lado havia uma porta branca.

— Será que padre está? — perguntou Núbia.

— Esperamos que não, porque é para lá que a gente vai.

Os dois praticamente invadiram o local, que por sorte estava vazio, havia algumas batinas dobradas sobre uma mesinha, junto a taças e objetos costumeiros numa igreja católica.

Cissa e Núbia procuraram pela tal cruz desesperadamente bagunçando o local. Pela janela daquele cômodo, era possível ver que já escuro lá fora.

— Eu fiquei desmaiada por muito tempo — murmurou Núbia para si mesma, se sentindo uma inútil.

— Achei! — disse Cissa.

Núbia ignorou aqueles pensamentos e foi até ele. A cruz simples de madeira estava no meio das batinas dobradas. Ao tocar em tal Cissa exclamou:

— Ai!

— Tudo bem? — perguntou Núbia preocupada.

— Sim, sim tudo. Só... Poderia segurar a cruz para mim.

Núbia não quis questionar, ou quis e resolveu não ser a melhor opção, assim simplesmente segurou a cruz.

Logo o som de galopadas rodeou a igreja.

— Ela não pode entrar, certo? — perguntou Núbia esperançosa.

— Até pode, mas isso a enfraquece.

Núbia fez cara feia e ao olhar para o lado notou que alguns dedos da mão esquerda de Cissa estavam queimados, e tinha quase certeza que não estavam assim antes.

— Eh... Cissa, é impressão minha ou a cruz queimou sua mão — disse ela com estranhamento.

Cissa fitou a própria mão com um sorriso nervosa.

— Está me estranhando menina? Isso aqui eu fiz fritando ovo — disse ele com uma risada, e Núbia apesar de não estar convencida assentiu, além do mais, tinham problemas mais sérios a resolver naquele momento.

Os galopes ficaram mais pesados.

 Cissa e Núbia saíram cautelosos da sala onde estavam e ficaram no altar. Logo a Mula Sem Cabeça parou na entrada, batente uma das patas dianteiras no chão e com sua cabeça (ou seria, a falta dela?) em chamas. Ela deu alguns passos a frente, mas depois se afastou. Núbia apontou a Cruz e as chamas no pescoço decepado da criatura ficaram mais fortes. A Mula dava passos para trás toda vez que Núbia lhe apontava a cruz, mas logo tentava avançar novamente.

— Não podemos ficar aqui presos á noite toda — disse Núbia.

Cissa soava muito, mas não parecia ser de medo, ao menos não da Mula. Ele olhava o teto decorado com gravuras de cristo e anjos e aquilo parecia lhe deixar realmente nervoso.

— Sem dúvida não podemos ficar aqui — concordou ele. — Vamos mata-la?

— Não! A criatura pode ser má, mas Ângela não, ela não está controlando o próprio corpo, a própria forma!

— Tem uma ideia melhor então?

— Não teria como fazê-la dormir? Ao menos até o sol surgir outra vez.

Cissa ficou pensativo.

— Quebre a cruz — disse Cissa. — Lasque ela, deixe-a afiada, temos que furar a Ângela sem cabeça com a madeira da cruz, de forma que não a mate, mas tire o sangue dela. Dai vamos quebrar a maldição.

— Como sabe disso?

—Li em algum lugar.

— Não podemos mata-la Cissa. Acha que vai dar certo?

— Não. Mas não custa tentar.

Núbia não entendia nada dessas criaturas, mas Cissa parecia especialista por isso não discutiu com a ideia. Não teve outra escolha a não ser quebrar aquela cruz o suficiente até surgir um lado afiado.

— Tomara que isso não seja pecado — disse Núbia batendo a cruz contra o chão.

— Nada feito para o bem é pecado, eu acho — disse Cissa.

Infelizmente Núbia não tinha força o suficiente, então, com certo lamento Cissa pegou a cruz e quebrou ele mesmo.

Entretanto, a Mula sem cabeça, que não era tão Mula assim, aproveitou-se do distraio dos jovens e entrou na igreja, no inicio suas pernas tremeram, mas mesmo com dificuldade, ela avançou devagar até o altar.

 Cissa e Núbia imediatamente saíram da mira da mula correndo para esquerda e a mula ainda atordoada tentou ir em direção deles.

— Podemos nos trancar na salinha do padre — propôs Núbia.

— Ela quebra a porta com esse casco fácil, a menos que... alguém fique para distrai-la.

Núbia e Cissa trocaram olhares, Núbia confusa e Cissa com cara de quem ia aprontar.

A mula já chegava perto quando Cissa simplesmente pegou Núbia pelo braço e a jogou para dentro da sala.

— Hei, o que pensa que está fazendo? — exclamou ela nervosa.

— Desculpa, e, de nada — disse ele fechando a porta e em seguida correu para longe dali enquanto gritava — Ei, mula e ainda sem cabeça, vem cá, vem.

Núbia rosnou de raiva, sem saber exatamente do que (ela tinha esse problema). Abriu a porta e viu Cissa pulando entre os bancos da igreja com a mula atrás dele tentando fazer o mesmo, mas quebrando a maioria dos acentos com seu peso e seu casco duro e afiado.

A Cabrall queria profundamente ajudar, mas não sabia como.

 A Mula mesmo com as pernas fracas por estar em uma igreja estava decidida a acabar com Cissa, no entanto ele pulava entre os bancos com tanta facilidade que parecia flutuar, logo tentou pular por cima da Mula e acerta-la com sua nova arma de madeira, mas o plano falhou miseravelmente. Até mesmo quando ele usou o machado para cortar as pernas da Mula, causou somente arranhões.

— Do que é feita a pele dessa desgraçada — reclamou ele.

...

Núbia tentou desesperadamente achar mais uma cruz no meio das coisas do padre para que pudesse ajudar Cícero, mas nada, porém encontrou numa estante vários vidrinho iguais com algo que Núbia concluiu ser água benta.

Ela correu para socorrer Cissa, mas sequer sabia como faria isso. Cissa era extremamente habilidoso e rápido e não conseguia vencer a mula, por que ela conseguiria?

 Logo, porém, Cícero tropeçou em um dos bancos, caindo com tudo no chão e em segundos a mula estava em cima dele. Cissa estava encurralado.

No momento em que caiu sua estaca de madeira rolou para longe e Núbia correu até lá pegando a estaca do chão. Aproveitou-se da aproximação e jogou com força o vidro com água benta que quebrou ao chocar-se com a pele dura da criatura. Quando a água benta tocou a mula a fez empinar relinchando de dor, e, Cissa imediatamente se arrastou para longe da criatura.

— Hei sua Mula — chamou Núbia segurando firme a estaca — Fui eu que joguei isso em você e sou eu que você queria antes, lembra?

Pelo jeito ela lembrava, ou somente quis se vingar pela água benta, pois imediatamente esqueceu-se de Cissa e foi em direção a Núbia.

Cissa correu e pegou o machado que também havia caído no chão.

— Menina, está maluca! — berrava ele, mas era tarde de mais, a Mula se aproximava em alta velocidade e Núbia sequer saiu do lugar, somente a encarava e segurava firme na estaca de madeira.

Uma onda de adrenalina e raiva passou pelo corpo de Núbia Cabrall no momento em que ela avançou contra a Mula e quando chegava perto, ela se jogou e escorregou no chão com a estaca erguida, rasgando a barriga da Mula sem cabeça. O animal se afastou e começou ficar com as pernas bambas.

Núbia se levantou com sangue nas roupas e Cissa foi ao seu lado enquanto observava a Mula cair aos poucos no chão.

— Será que a Ângela vai voltar? — disse Núbia com um sorriso esperançoso.

Depois de muitos gemidos e berros, a Mula caiu no chão e suas chamas ficaram mais fracas.

Cissa olhou Núbia por alguns segundos depois sorriu.

— Acho que a salvamos. Melhor. Você a salvou.

Repentinamente a Mula sem cabeça ardeu por completa em chamas e Cissa e Núbia arregalaram os olhos.

— Ou não — completou Cissa pasmo.

— Você disse que isso quebraria a maldição seu idiota! — exclamou Núbia revoltada.

Mas quando as chamas cessaram, deram lugar a uma mulher franzina deitada e encolhida no chão.

— Ângela! — disse Núbia correndo em direção da mulher.

— Quem você chamou de idiota? — questionou Cissa.

A mulher tremia, mas ao menos estava viva. Cissa ignorou a ofensa de Núbia e correu para a salinha do padre para procurar um cobertor ou algo assim, pois Ângela estava praticamente nua, com somente alguns trapos que cobriam seu corpo.

Já agasalhada, Ângela se sentou em um dos poucos bancos que sobraram na igreja e ficou em sua costumeira postura amedrontada.

— Está bem? — perguntou Núbia.

— Já estive pior — murmurou Ângela.

Núbia olhou para fora e notou que ainda era noite. Não conseguia intender o que havia acontecido, mas estava satisfeita. Ângela já não estava com os olhos em chamas e nem parecia o tipo devoradora de crianças cadáveres.

— Cissa, você estava certo sobre como quebrar a maldição — disse ela olhando para o rapaz com certa admiração. — Obrigada.

Cissa abriu um sorriso convencido.

— Sou foda ne, isso porque eu nem sabia se daria certo, hein.

— Como assim? — perguntou Ângela.

— Ah é que eu não me lembrava exatamente se no livro dizia, "tire sangue da Mula sem cabeça e a salvará", ou, "e a matará". São palavras parecidas, né.

Núbia e Ângela o fitaram raivosas por um tempo.

— Hei, o que interessa é que deu certo — defendeu ele.

Núbia revirou os olhos já Ângela parecia ter enfim acordado de um pesadelo.

— Vocês... Quebraram minha maldição? Quebraram para sempre, sempre, sempre? — perguntou Ângela com olhos brilhando.

— Acho que sim — disse Núbia.

Surpreendentemente Ângela sorriu, um sorriso verdadeiro, sincero. Pela primeira vez ela realmente estava feliz, alegre e viva. Não disse nada e nem precisou, a felicidade e o agradecimento de Ângela estavam em sua cara.

...

Ângela pediu para deixarem ela sozinha um tempo, pois queria orar, então Núbia e Cissa foram se sentar lá fora, nos degraus que levavam a igreja.

— Eu não sou de dizer isso, mas... obrigado — disse Cissa fitando Núbia.

— Você me salvou primeiro, acho que estamos quites.

Cissa riu.

— É, estamos. Mas foi incrível como você encarou a Mula sem cabeça, sério, fiquei boquiaberto com o que fez.

— Eu só me atirei para baixo dela, achei que a pele lá fosse mais sensível e que ela não poderia me acertar com as chamas, foi tudo tão rápido, agi por impulso, sabe. Nem eu estou acreditando que fiz aquilo.

— Sei... Lembra quando eu te disse que todos os Cabrall têm isso? Essa fúria, essa força guardada, esse dom com o sobrenatural.

— Aham.

— Então, alguns têm mais, outros menos. Você é do grupo que tem mais, você é como Edgar... — Cissa engasgou com as palavras, depois respirou fundo e prosseguiu: — só que... Bem mais especial que ele. Seu avô não arriscaria a vida por um desconhecido.

— Você não é desconhecido, você é meu amigo por comida — disse Núbia com um sorrisinho e Cissa sorriu de volta.

— Quer saber, por mais comida acho que posso incluir mais coisas em nosso contrato imaginário.

—Hum... Tipo o quê?

— Estou pensando em te ensinar algumas coisas, sei lá, sou bom capoeirista e sei enganar e fugir de um monstro como ninguém.

Núbia riu.

— É eu notei. Você acha que eu poderia ser assim como você? Ágil, rápida, essas coisas— disse Núbia muito interessada naquilo.

— Com esse gênio forte e esse seu gosto por tentar suicídio, sem dúvida. É só ter treinamento.

— E você me treinaria. Sério? Sempre quis fazer lutas, mas minha tia não deixava, pois dizia que eu já era difícil sem saber lutar.

Cissa riu.

— É... Errada sua tia não estava, mas, prefiro te ensinar a lutar que ter que te socorrer toda hora.

Núbia fez cara brava.

— Você me ajuda porque quer.

Cissa revirou os olhos.

— Tanto faz, aceita ou não? — disse ele estendendo a mão.

Núbia não conseguiu dizer não e apertou a mão dele.

— Aceito. Eu te dou comida e você me ensina a acabar com monstros. Parece justo.

Logo Ângela saiu ainda enrolada no cobertor.

— E agora? Iara deve estar preocupada, muito preocupada e Edgar também não deve estar muito feliz, nunca está. Eu estou bem encrencada, muito encrencada.

— Eu te ajudo com a Iara e o Edgar, eles sabem que você não teve culpa de nada — disse Núbia.

Ângela abriu um leve sorriso.

— Eu sempre serei grata, muito grata, a você menina Núbia, e a você também, menino Cícero, serei grata sim.

— Eu sou incrível mesmo — disse Cissa —. Agora vamos sair daqui antes que o padre chegue.

Núbia olhou para dentro da igreja, eles realmente destruíram o lugar.

— É, acho melhor — concordou ela.

E assim ao menos aquela noite foi encerrada.


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Notas finais do capítulo

Será que só eu shippo Núbssa?



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