Foclore Oculto. escrita por Júlia Riber


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Se acharem o texto muito longo, comentem para que eu não cometa esse erro novamente. ;)



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Numa sala sombria, com somente uma mesa de ferro no centro e paredes cinza, uma câmera nada discreta no canto superior gravava Núbia de Elis Cabrall de um lado da mesa e o psiquiatra Dr. Ricardo Fernandes, sentado do lado contrário, a encarando, tentando decifra-la, mas a garota prosseguia com olhar baixo e expressão rígida.

— Eu sei que a ultima coisa que a senhorita quer é falar sobre o passado, entendo que queira esquecer tudo, mas saiba que eu estou aqui exatamente para te ajudar a seguir em frente — falou o Doutor, com sua voz tranquila.

— E me tirarem da minha própria casa é a melhor forma que vocês encontraram de me ajudar?

— A senhorita é menor de idade, precisa de um tutor, é a lei Núbia, sinto muito.

Núbia somente bufou.

— O doutor vai colocar o exame psicológico na minha ficha? Se sim, é certo que não conseguirei casa alguma para ficar — debochou Núbia encostando para trás de sua cadeira.

Dr. Ricardo colocou os cotovelos sobre a mesa e apoiou a cabeça.

— Hum. Por que diz isso?

— Você sabe o porquê, só quer ouvir da minha boca.

— Inteligente.

Núbia concluiu que a melhor forma de acabar com aquilo, era dizendo tudo que aquele psiquiatra queria ouvir.

— Meu pai estripou minha mãe ao lado do meu berço quando eu tinha 10 meses e desapareceu, eu fui suspeita do assassinato da minha melhor amiga quando eu estava na oitava serie e desde que minha mãe morreu, fui criada por minha tia, que lutou contra um câncer durante os últimos dez anos, até não resistir, semana passada. O senhor concorda que meu histórico não é lá muito atrativo? Pense então no meu psicológico, que maravilha.

— Você não é uma má garota, a vida que foi má com você, Núbia. Mas vamos achar um lar, um lar onde você poderá ter uma vida melhor.

Núbia riu em deboche.

— Não há lugar para uma amaldiçoada como eu, doutor.

No entanto, para surpresa de Núbia, após uma semana morando na casa do melhor amigo, William (algo que foi difícil o juiz permitir), um parente distante chamado Edgar Cabrall, aceitou ficar com ela por um ano, até a garota completar maioridade.

E não demorou muito para a justiça lhe despachar á casa deste desconhecido. Foram o oficial tutelar que cuidava do caso de Núbia e o Dr. Ricardo que lhe deram a noticia e tentaram anima-la, dizendo que seu futuro tutor era um homem de muitas posses, que poderia lhe dar uma boa vida, mas nada disso a deixou mais segura. Ela pediu pela milésima vez para ficar na casa dos pais de William, até mesmo a mãe dele também pediu pela guarda provisória de Núbia, mas "leis são leis e vocês apesar de conhecidos, não tem laços familiares com ela", dizia o oficial tutelar.

Após um avião e muitas viagens de ônibus, Núbia chegava ao seu destino, no interior do Rio Grande do Sul. Ela fitou a paisagem e notou que realmente estava perto de um fim do mundo. A rodovia era completamente deserta e nas laterais não se via nada além de uma espessa mata. Logo tirou da carteira a foto da sua tia e desejou que aquilo fosse só um pesadelo, que logo acordasse e se deparasse com Rita de Elis preparando o café, lhe repreendendo por acordar tarde e coisas do tipo, mas não, ela morrera, a única pessoa que tinha e que a amava morreu e agora Núbia iria para outra casa, em um lugar isolado, com pessoas estranhas.

O ônibus então chegou em sua parada final. Núbia foi a última descer, ela pegou sua bagagem com certo esforço e na saída falou com o motorista:

— Eh... O senhor saberia me dizer se a vila Fim do Mundo fica perto?

O motorista levantou uma sobrancelha e Núbia suspirou.

— É, eu fiz a mesma cara quando me disseram o nome da vila — admitiu — quer saber, eles devem estar de brincadeira com minha cara.

Ela fungou nervosa e o motorista se pronunciou:

— Não, não, essa vila existe mesmo, não fica tão longe, é só pegar uma estrada de terra logo após a rodoviária, mas... Por que a moça quer ir lá?

— Na verdade não quero. Mas por que pergunta? — disse Núbia ao notar que o motorista parecia ter certo temor aquele assunto.

— Ah, bem. Dizem que a vila é um local esquecido por Deus, moça.

— Ótimo. Eu também fui esquecida por Deus — disse Núbia com naturalidade —. Bem, obrigada pela informação.

Ela desceu enfim e caminhou pela rodoviária aberta e precária. Observou o ônibus em que viera partir com um novo grupo de passageiros, todos com malas grandes e vestes surradas, como se fossem refugiados.

Os poucos passageiros que vieram com Núbia, entraram nos carros que já os esperavam e outros caminharam rumo á estrada de terra que o motorista de ônibus indicara a ela. Não havia mais ônibus algum na rodoviária e a garota sentiu-se totalmente sem rumo até ouvir alguém chamar:

— Núbia Cabrall?

Núbia se virou e viu um homem barbudo e pálido com roupas surradas, mas botas bem engraxadas, encostado em um jipe negro estacionado num canto da estrada. Ele fez sinal para que ela se aproximasse. Núbia olhou para os lados para se certificar que realmente era com ela e sim, era. Ela não gostou nem um pouco da cara daquele homem, mas se aproximou mesmo assim.

— Venha, garota — disse o homem um tanto impaciente —. Vim busca-la. Meu nome é Messias, eu sou o homem de confiança do senhor Cabrall.

Núbia o olhou de baixo a cima. Ela não conhecia seu futuro tutor, mas já notou que ele tinha gosto duvidoso para homens de confiança.

— Hum... Como sabe que sou eu a Núbia?

Messias a analisou.

— Ruiva e com roupas de enterro, você prova o sangue que tem.

— Não entendi.

— Vai entender. Entra ai no carro.

Mesmo sem vontade Núbia entrou sentando-se no banco do carona e Messias, após colocar a bagagem da garota no porta-malas, assumiu o lugar do motorista e deu inicio a viagem.

Os dois não trocaram palavra alguma até chegarem a uma pequena vila, com pessoas de andar manso e casas velhas sem cor.

— Essa é a vila Fim do mundo? — questionou Núbia.

— Sim, horrível, né?

— Muito. Bem, ao menos estamos perto da casa do tal Cabrall.

— Mais ou menos, digamos que a vila é o algo civilizado mais próximo do sítio Cabrall.

Núbia arregalou os olhos.

— Esse homem não mora, se esconde!

Messias riu.

— É exatamente isso, moça.

Núbia só ficava menos tranquila a cada segundo.

Ao chegar no casarão do tal parente, teve certeza que os dias seguintes seriam um tédio (grande engano de sua parte). Casa grande e velha de madeira, pintada de vermelho sangue que já desgastava, com janelas e porta feitas de madeira negra.

Já o quintal era amplo, com um jardim até bem bonito e repleto. Mais a longe havia uma grande baia redonda coberta e adiante um bosque escuro que realmente atraia um pouco a enorme curiosidade de Núbia. Ela colocou as pesadas malas na varanda, deixando as mãos livres para bater na porta aparentemente trancada.

Segundos antes de tocar a porta a mesma abriu-se revelando uma mulher com sorriso de garota propaganda.

— Olá Núbia Cabrall.

— Eh... Oi.

— Entre querida, deixe as malas grandes ai que Messias as levarão para cima depois.

Sem opções Núbia assentiu e obedeceu a mulher que, alias, tinha uma beleza única. Ela era evidentemente indígena, com olhos puxados, os belos cabelos negros e lisos quase até a cintura e lábios grandes cor carmim, ela seria somente uma índia comum e bonita se não fossem os olhos verdes que entravam em contraste com aquela cor de pele morena avermelhada. Seu vestido longo era azul em vários tons que conforme o movimento se assemelhavam as águas de um rio e seus pés estavam descalços.

— Estávamos te esperando, mocinha – disse a índia caminhando para o centro da sala e fazendo sinal para que Núbia a seguisse – o oficial tutelar avisou que você viria hoje e seu avô pediu para que eu a recebesse.

— E você é?... — disse Núbia ainda perdida.

— Iara Tupânae Cabrall. Só Iara para você. Sou a esposa do seu avô.

Núbia não segurou a cara de espanto e Iara riu.

— A maioria disfarça a surpresa — comentou ela e só então Núbia notou o constrangimento.

— Oh. Desculpa.

— Tudo bem... — disse Iara abanando as mãos.

— Eh... O cara da justiça, que me mandou para cá, sabe. Ele disse que seu... Marido é meu Tataravô.

Iara assentiu.

— Sim, ele é. Mas Tataravô é algo muito complicado para se dizer, vamos considera-lo somente seu avô, está bem?

Núbia assentiu ainda perplexa. Lembrou-se que o próprio oficial tutelar tinha dúvidas sobre a árvore genealógica de Núbia ser verídica, pois era quase impossível o tataravô dela estar vivo. Mas considerando as probabilidades, Núbia imaginava o tal Edgar como um velho de cento e poucos anos, numa cama, sendo alimentada por sonda, com a veia direita conectada a uma bolsa de sangue e a esquerda a uma bolsa de soro. E definitivamente, uma esposa linda e jovem como Iara não aparecia ao lado de Edgar quando Núbia o imaginava.

— Agora me acompanhe — disse Iara tirando Núbia de seus pensamentos mórbidos. — Vou lhe mostrar seu novo quarto.

E assim subiram as escadas presentes ali mesmo na sala.

O quarto de Núbia era uma suíte confortável. Guarda roupa, penteadeira, cama e uma mesinha, tudo de madeira negra, algo de Núbia adorou. Iara lhe apresentou alguns cômodos da casa, como sala de estar e de jantar, a cozinha, a garagem do lado de fora, a área atrás da casa, com piscina e churrasqueira e depois ambas voltaram para o andar de cima, onde ficavam os quartos. Naquele corredor havia quatro portas, segundo Iara, no final do corredor estava o escritório e biblioteca de Edgar, depois o quarto dele, o quarto de hospedes e por fim o de Núbia, todos eram suítes. No andar de baixo, havia uma entrada pela cozinha que levava a mais três quartos, para os empregados.

Enquanto apresentava a casa, Iara parecia se esforçar muita pare ser simpático o que incomodava um pouco Núbia.

— Estou com fome — disse Núbia colocando a mão na barriga.

Iara levantou uma sobrancelha, provavelmente pela objetividade de Núbia.

— Ah. Está bem — disse a mulher. — Já sabe onde fica a cozinha e agora nossa cozinheira deve estar lá, você pode pedir o que quiser ela.

— Ok — disse Núbia. — Mas e o Edgar. Cadê ele?

Iara desviou o olhar como se pensasse numa boa resposta.

— Deve estar no quarto, como de costume, ele é muito reservado. Olha, de aparência, Edgar, seu avô, pode parecer um tanto sério e resmungão.

— Hum. E provavelmente você vai me dizer que por dentro ele é uma boa pessoa — supôs Núbia em deboche.

— Na verdade não, por dentro ele é bem pior do que a aparência pode demonstrar.

Núbia fitou Iara com estranhamento, realmente não esperava aquela resposta da esposa de seu “avô”. Iara notou que aquilo não havia caído nada bem e tentou sorrir.

— Bem, mas é possível conviver com ele, você vai se acostumar, acredite. Agora vá, coma algo e fique á vontade.

Núbia não falou nada, resolveu somente descer as escadas e seguir até a cozinha, mas algo lhe dizia que não, ela não ia ficar nada á vontade naquela casa.

Cruzou a sala, a sala de jantar e abriu uma porta de ferro vermelha e enferrujada, chegando enfim a cozinha. La encontrou uma mulher franzina de olhos arregalados, ombros contraídos e cabelos castanho—escuros espetados e sebosos. Ela mexia em um pote o que parecia a cobertura de um bolo. Núbia pigarreou e a mulher estranha enfim notou sua presença.

— Eh, Oi — disse a menina —. Eu sou...

— A neta de Edgar — completou a mulher num sussurro.

— Acho que sim — disse Núbia.

A cozinheira assentiu.

— E a senhora, como se chama? — perguntou Núbia tentando ser simpática.

A mulher prosseguia com seus olhos esbugalhados, como se sentisse medo de algo.

— Ângela, meu nome é Ângela — disse ela em sua voz fina e meio sofredora.

— Ah...

Núbia fitou na mesa atrás de Ângela, vários bolos e pães diversos e sua boca salivou.

— Coma — disse Ângela notando o fitar de Núbia.

— Posso?

Ângela conseguiu expressar um sorrisinho.

— Claro.

Núbia então perdeu qualquer timidez e sentou-se a mesa, estava até perdida com tudo aquilo, não sabia por onde começar.

Ângela depois de alguns segundos parou de bater a cobertura e fitou Núbia comer.

— O que? — disse Núbia com a boca cheia.

— Oh nada, nada não. É que é bom ver alguém que goste tanto de comer quanto eu gosto de cozinhar. E eu gosto muito de cozinhar sabe, eu sempre faço essas guloseimas e ninguém come, ninguém. Edgar não tem apetite e Iara não quer engordar.

Ângela deu de ombros de seu jeitinho acanhando com uma risadinha.

Núbia levantou uma sobrancelha.

— Então por que você faz tudo isso?

— Por que cozinhar me acalma, acalma muito. E depois eu levo o que meus patrões não querem para vila Fim do mundo, para as famílias pobres de lá, pobrezinhos.

— Isso é muito legal.

— Sim, sim. Gosto de fazer o bem, fazer o bem me faz me sentir menos culpada.

— Culpada pelo o que?

Ângela fitou Núbia por alguns segundos, depois simplesmente virou-se e voltou a preparar o bolo.

— Nada, nada de mais.

Núbia estava começando a achar que ninguém naquele lugar era normal e isso apesar de preocupante, fazia Núbia sentir-se em casa. Ela riu sozinha com aquela ideia e voltou a comer.

Após sentir-se de barriga cheia, ela foi para seu quarto, desfez as malas que Messias levara para lá naquele meio tempo e pegou o celular e foi assim descobriu algo terrível:

— Não tem Wifi!

Ela desceu correndo as escadas e após procurar um pouco achou Iara na piscina, ela estava com os braços apoiados no piso, de biquíni, e parecia muito confortável, o que era estranho considerando o frio que fazia naquela região.

— Iara?

Iara abriu os olhos e fitou Núbia de pé ao seu lado.

— Oi mocinha.

— Essa casa não tem internet?

Iara riu.

— Estava demorando... Tinha mas deu problema já faz algumas semanas. Eu falei para Edgar resolver logo isso, você é adolescente, vem de um centro urbano, é normal que seja viciada nessas coisas.

— Não sou viciada é que... Tenho amigos em São Paulo, achei que ao menos poderia falar com eles pelas redes sociais.

— Você vai poder, mas não agora, estou resolvendo a reinstalação da internet ainda.

— E o que eu vou fazer, então?

— Sei lá, dá para se distrair sem internet sabia? Nosso sitio é enorme, impossível você não achar algo que te divirta.

— Você quer que eu suba em árvores pegar frutas ou prefere que eu brinque com os bichinhos da floresta? — ironizou Núbia

— Nem uma das hipóteses é uma má ideia, eu fazia tudo isso quando pequena — disse Iara com seu tom sarcástico. — E pescava com lança também. Bons tempos.

Iara emergiu o corpo, fechou os olhos e boiou na piscina, demonstrando que a rebeldia de Núbia não a afetava em nada. Porém, a própria garota também percebeu que sua revolta era ridícula e decidiu que realmente não era má ideia explorar um pouco sítio.

 Apesar de morar numa selva de pedras, Núbia sempre gostou da natureza. Quem sabe ficar sem internet e longe de tudo até lhe fizesse bem. Ela observou a mata que cercava o casarão e novamente sentiu-se atraída por aquela escuridão.

— Eu posso explorar o sítio então?

Iara sequer abriu os olhos somente soltou um murmúrio ponderando a pergunta.

— Hum... Pode, mas não se distancie do casarão. A natureza é bonita, mas também pode ser perigosa.

Núbia assentiu.

— Vou tomar cuidado com as onças — brincou a garota enquanto caminhava para longe da piscina.

Iara voltou a tocar os pés no fundo da piscina e observou Núbia ir embora. Um lado seu dizia que a aquela garota poderia dar grandes problemas, outro lhe dizia que isso era ótimo.

Núbia passeou pelo jardim. A baia dos cavalos estava fechada. Resolveu então se aventurar pelo bosque. Caminhou pela mata com árvores lindas repletas de cipós; folhas secas e galhos pelo chão e o ar úmido e frio. Pouca luz passava pelas árvores, deixando o local um tanto sombrio e todas essas características fizeram Núbia concluir que aquele lugar era perfeito.

Foi quando ouviu um som estranho, algo que se mexia dentre as árvores e arbustos. Núbia estava com medo e curiosidade, então se aproximou cautelosa.

Seja o que fosse que estava lá, fugiu rápido, porém deixou um tufo de pelo marrom alaranjado nos galhos mais baixos da árvore.

— Quem sabe seja um Bugio Marrom — murmurou Núbia a si mesma. — Esses bichos podem ter essa cor. Mas... O que um macaco faria no chão ou em um galho tão baixo?

Então teve a conclusão que ele poderia ter caído da árvore, assim, estando machucado! Núbia sempre quis ser zoóloga, veterinária ou algo assim e aquela poderia ser a chance de salvar seu primeiro animal selvagem, então avançou dentre a mata a procura do tal bugio.

Os tufos marrons alaranjados deixaram um rastro a qual seguir e distraída com tais pistas Núbia não notou que se distanciava cada vez mais do casarão.

Núbia então se deparou com uma trilha de terra molhada e as pegadas ali presentes não pareciam em nada com as de um Bugio, sequer faziam sentido. Eram pegadas de pés humanos e descalços que iam em direção a Núbia, mas se prolongavam mais a frente, como se alguém corresse de costas. 

Antes que Núbia conseguisse processar tudo aquilo, um assobiou percorreu a mata, um som agudo que quase ensurdeceu a menina. Depois uma risada maléfica e fina ecoou pelo bosque. Núbia olhou para os lados, mas não conseguia localizar de onde vinham tais sons. Então sua reação não foi outra a não ser correr, correr muito.

Todas as árvores em seu caminho pareciam iguais, ela estava perdida, fugindo sem rumo. Seus sentidos aguçaram e ela conseguiu ouvir passos rápidos logo atrás. Alguém lhe perseguia e isso a distraiu o que a fez tropeçar em um tronco apodrecido de uma árvore. Quando olhou para trás viu em uma região escura da mata, entre galhos baixos e trepadeiras, uma criatura que certamente não era um bugio marrom. Era peludo como, mas os olhos eram verdes e maldosos, e tinha quase a mesma altura que Núbia, aproximados um metro e sessenta. O humanoide ficou ali parado, observando Núbia enquanto fungava, depois deu um passo á frente, sendo mais bem iluminado.

Agora ela podia vê-lo melhor, aquela criatura humanoide e ruivo de cabelo espetado, corpo peludo, pele verde e pés virados para trás era horrenda. Ele sorriu e revelou seus dentes verdes e afiados.

— Olá descendente do mal — disse ele em uma voz um tanto irritante e roca.

— Descendente do que? — conseguiu dizer Núbia.

A criatura expressou uma cara que fez Núbia se arrepender da pergunta. Ele chiou e Núbia levantou e voltou a correr, porém somente em um pulo a criatura a alcançou e a pegou pelo braço.

Ele a aproximou e colocou sua lança afiada, mas artesanal na garganta de Núbia, que apesar de ameaçada por uma criatura horrenda não se deixou amedrontar.

— Me solta!

A criatura pegou com mais força o braço de Núbia fincando as garras no braço dela, ela segurou o grito de dor e ele rosnava de raiva, mas algo fazia com que o monstro não conseguisse prosseguir a ação e mata-la, então virou Núbia e a fitou nos olhos, e apesar daquela criatura ser a mais a assustadora que a garota já viu, ela tentava não demonstrar medo, somente o encarava com firmeza. O monstro fincou as garras no outro braço da garota, ela podia sentir seu sangue escorrendo, fez cara de dor, mas novamente não gritou, nem deixou de encara-lo, estava juntando força para se livrar daquele monstro na primeira chance que tivesse, porém sequer foi necessário.

— Você não merece morrer — concluiu ele jogando Núbia com força no chão.

Na queda Núbia ralou os braços e as pernas, mas realmente esperava coisa pior daquela criatura, porém quando se virou ele já havia sumido como se tivesse evaporado.

A garota então ficou ali sentada no chão, imóvel, seu coração estava a mil e sua cabeça também.

— Ei, menina — disse alguém logo atrás e imediatamente Núbia pegou uma pedra do chão, se levantou e virou pronta para se defender. Porém se deparou somente com um rapaz comum de uns 20 anos a fitando de cima a baixo com certa estranheza. — Nossa ela tem uma pedra. Melhor eu tomar cuidado.

Núbia ainda não conseguia dizer nada então somente fungou com aquela ironia, mas o rapaz prosseguiu:

— Axé, parece que você rolou uma ribanceira cheia de pedras, garota.

Núbia fitou a si mesma e realmente suas vestes estavam cobertas de mato e lama.

— Não foi isso.

— O que foi então?

— Nada — respondeu Núbia, pois sabia que ele não acreditaria, nem ela acreditava em si mesma. — Aliás, quem é você?

— Pode me chamar de Cissa.

— Cissa é nome de mulher — observou Núbia.

Cissa revirou os olhos

— Na verdade meu nome é Cicero Akilah. Mas todo mundo me chama de Cissa. E você menina?

— Núbia Cabrall.

Os olhos cinza de Cissa brilharam ao ouvir a palavra Cabrall, mas Núbia não notou aquilo, estava abalada de mais e só queria sair daquele lugar.

— Hum... Você sabe se eu estou muito longe do Sítio Cabrall? Eu corri meio que sem saber para onde.

— Você ainda está no sítio Cabrall, menina. Se quiser eu te levo para o casarão.

Núbia não conhecia Cissa, porém não tinha muitas opções então somente aceitou a proposta.

No Caminho, a Cabrall se pegava observando Cicero, depois voltava a atenção para a trilha. Algo naquele rapaz definitivamente chamava a atenção.

Cissa tinha porte atlético, mas era um tanto magro e usava uma camisa branca meio aberta e uma calça vermelha desgastada. Porém seus olhos cinza claro entravam em contraste com a pele negra e os cabelos Black Power fortemente escuro. É, bonito, pensou Núbia consigo mesma.

— Você estava fugindo de algo, não é? — perguntou Cissa.

Núbia o encarou.

— Sim...

— Do que?

— Você me chamaria de louca.

— Com esse cabelo desgrenhado e esse estilo gótica trevosa, você já me parece louca sem precisar dizer nada.

Núbia franziu os olhos.

— Você não é nada educado, sabia?

— Algumas pessoas dizem que eu tenho problema com a sinceridade — admitiu Cissa dando de ombros.

Núbia revirou os olhos.

— É, você tem.

— Mas e aí. O que faz por aqui, menina? — disse ele ignorando o fitar raivoso da garota.

— Vou morar com meu... Avô por um tempo. O dono do sítio.

— Edgar — disse Cissa com um sorrisinho maldoso. — Não sabia que ele tinha uma neta.

— Nem eu — admitiu Núbia. — Mas e você, mora por aqui?

Cissa balançou a cabeça com uma careta como se dissesse: Mais ou menos.

— No momento sim. Nos arredores do sítio, aliás, digamos que as terras de Edgar são bem grandes, então ele nem se importa se alguém perambular por elas, na verdade nem nota.

— Hum... então, ao menos é conhecido do Edgar?

— Muito — respondeu ele com certo deboche. — Ás vezes eu cuido dos cavalos do Edgar também, levo eles para passear.

Núbia achou aquele afazer um tanto curioso, mas não discutiu. Já podia ver o casarão vermelho sangue entre as árvores.

Cissa repentinamente parou, um pouco antes de chegar ao jardim.

— Bem, está entregue.

Núbia tentou sorrir simpática, mas não era boa nem em sorrir nem em ser simpática.

— Obrigada. Se não fosse você eu só chegaria aqui amanhã.

— Ou nem chegaria — lembrou Cissa a encarando com aqueles olhos claros.

Núbia soltou uma risadinha nervosa, o que Cissa tinha de lindo tinha de assustador.

— É...

— Bem, de nada e eu sei que sou incrível. Espero te ver de novo, menina.

Dizendo isso Cissa se foi mata a adentro.

— Pode me chamar de Núbia — disse a garota já um tanto irritada.

— Eu gostei de te chamar de menina — retrucou Cissa sem olhar para trás, somente com uma risadinha.

Núbia fungou, mas Cícero já estava distante de mais para que pudesse discutir com ele, sendo assim, a garota também seguiu seu caminho; ao abrir a porta do casarão certificou-se que não havia ninguém na sala ou no corredor de cima, depois subiu correndo para quarto e tirou aquelas roupas sujas vestindo agora mangas compridas para esconder as marcas deixadas pelo monstro, em seguida, decidiu agir como se nada houvesse acontecido.

No entanto, a Cabrall pensou o dia todo naquela criatura de pés virados, queria falar com alguém sobre isso, mas tinha medo de ser taxada como louca em seu primeiro dia na casa nova, sem contar que nem ela mesma acreditava no que viu. Núbia perambulou pela casa, arrumou o guarda roupa, tentou personalizar o quarto com pôsteres de banda e uns chaveiros de caveira que pendurou no espelho da penteadeira, como toque final colocou no criado mudo um retrato dela com sua tia Rita. Passou as seguintes horas fazendo coisas inúteis para passar o tempo e esquecer-se daquele monstro humanoide, mas isso não aconteceu, sequer poderia acontecer.

...

Aquele seria o primeiro jantar de Núbia no casarão, o que marcava também, seu primeiro dia naquele lugar.

A garota e sua tutora Iara estavam sentadas á mesa, enquanto Ângela colocava os pratos e alimentos. Ela trouxe também um jarro de suco natural de laranja e abriu um sorrisinho nervoso para a patroa Iara que não retribuiu tão simpática.

— Cadê o vinho de Edgar? — disse ela.

Ângela arregalou os olhos.

— Oh Deus, quase me esqueci, já trago, trago sim.

Ela correu para a cozinha e segundos depois trouxe uma taça e uma garrafa de vinho que sequer tinha marca.

Núbia começava a se perguntar se Edgar realmente existia, pois desde que chegara, não o viu pessoalmente somente ouviu todos citarem seu nome. É claro que considerando a provável idade de seu — ao que tudo indicava — tataravô, concluiu que Edgar sequer podia levantar da cama, isso explicava o porquê dele não sair do quarto, porém, o que ouvira sobre Edgar até então, definitivamente não combinava com um pobre velhinho.

— Cadê o Edgar? — murmurou Núbia para Iara que fez cara feia.

— É uma ótima pergunta mocinha. Se aquele gaúcho desgraçado não descer em dez minutos eu... — Iara não terminou a frase ao ver a cara de Núbia. — Oh desculpe... Acho que me esqueci de dizer que eu e seu avô temos uma relação... Um tanto complicada. Mas com o tempo você se acostuma com as ofensas e objetos voando.

Núbia arregalou os olhos e Iara riu, apertando a bochecha de Núbia.

— Fofinha — disse ela depois olhou sobre os ombros de Núbia —. Até que enfim.

Núbia sentiu a energia da sala de jantar ficar pesada e por extinto ficou toda torta na cadeira para ver quem se aproximava. Os passos dele eram silenciosos, somente o barulho de seu cajado de madeira negra ecoava ao bater no chão. Era um homem que aparentava no máximo 60 anos, com poucos fios ruivos entre os cabelos brancos, olhos azul gelo, pele manchada por sardas e expressão rígida. Ele vestia-se todo de preto, camisa, calça e sapato e apesar de ser um senhor muito charmoso e provavelmente, já ter sido um homem deveras bonito, não era o tipo de pessoa que você tentaria puxar assunto.

— Eu estava ocupado — disse o homem ao fitar Iara com cara brava.

— Eu imagino... Mas tanto faz, bem, essa é sua neta, Edgar — disse Iara apontando para Núbia.

Os olhos gélidos de Edgar e os olhos negros de Núbia se encararam por um bom tempo, em alguns momentos ele pareceu um tanto surpreso e confuso, olhava a tataraneta como se ela o fizesse o lembrar de algo, porém quando ambas as parte desvIaram o olhar, ninguém disse nada, somente voltaram à compostura e Edgar sentou-se a seu lugar na mesa.

— Bem, espero que você não nos cause tantos problemas — disse Edgar á Núbia que somente o encarou daquela forma ameaçadora que ela encarava quando não ia com a cara de alguém.

Edgar a ignorou e derramou vinho em sua taça, vinho este com uma cor um tanto avermelhada, e, mais viscoso do que um vinho devia ser, porém Edgar parecia realmente gostar daquela bebida e começou a jantar com a cara fechada de quem planeja um assassinato. Iara comia com tantos modos, que parecia estar numa etapa do Miss Universo e Núbia em um momento perdeu a paciência com a faca e pegou a coxa de frango com a mão. O jantar prosseguiu em silêncio, Núbia pensou várias vezes em perguntar como Edgar poderia ser seu tataravô e quantos anos ele realmente tinha, mas achou tudo isso muito inconveniente.

A cozinheira medonha, Ângela, ficava na porta acanhada e a todo o momento trocava olhares com Iara, depois ambas observavam Edgar se alimentar e logo voltavam a trocar olhares. Núbia queria tanto intender o que ocorria...

No dia seguinte, no café da manhã havia somente Iara e Núbia na mesa. Segundo Iara, Edgar tinha acordado com mal estar e teve que ficar na cama.

— E então mocinha — começou Iara. — Como foi seu primeiro dia no sítio?

— Bom — mentiu Núbia.

— Hum... Quem sabe no começo seja entediante já que não há ninguém na vizinhança com sua idade, sabe, nem temos vizinhos!

— Ah, eu conheci um garoto ontem — disse Núbia. — Ele mora aqui perto pelo o que entendi.

Iara riu.

— Acho que você ainda está com sono mocinha, não temos vizinhos, além dos moradores da vila Fim do Mundo, claro.

Núbia levantou uma sobrancelha.

— Como não? Ele também cuida dos cavalos, disse que os leva para passear. O apelido dele é Cissa.

Iara parou de comer seu mamão e suspirou como se segurasse a raiva.

— Os leva para passear... Forma muito conveniente de chamar um roubo. Aquele moleque macumbeiro.

— Oi? — disse Núbia perdida.

— Cicero Akilah ás vezes rouba nossos cavalos, se diverte e passeia com eles até ficarem exaustos e devolve os animais acabados para nós.

— Por que ele faz isso?

— Porque ele odeia seu avô, não o culpo por isso na verdade, mas seja como for, ele faz qualquer coisa para tirar Edgar do sério e não é de confiança. Então não fale mais com ele, ouviu?

Algo em Iara era muito persuasivo, porque Núbia somente assentiu sem sequer discutir.

Mais tarde, após passar uma hora no quarto ouvindo música, Núbia decidiu novamente explorar a mata. Ela não havia contado a ninguém sobre o monstro que lhe perseguiu no dia anterior e apesar de sentir medo e tentar negar a si mesma oque viu, ela não conseguia tirar aquilo da cabeça e decidiu então achar respostas.

Núbia saiu de casa tranquilamente, Edgar ainda estava no quarto, Iara na piscina, Ângela na cozinha e Messias concertando algo no Jipe.

Entrou na mata e começou a caminhar, tentando marcar na memória cada árvore que via para saber voltar depois.

Logo achou as pegadas de ontem, fracas, mas visíveis, Núbia se agachou para analisar e ouviu um estrondo, como se algo tivesse caído ou se jogado da árvore, ela se virou em um susto, mas logo tomou uma expressão brava.

— Cissa!

— Menina! — retrucou ele com um sorriso sapeca.

— Seu garoto idiota. Quase me matou de susto!

— Que gentileza com o cara que te salvou ontem, hein, reze para não se perder de novo.

Núbia levantou uma sobrancelha.

— Não se preocupe, agora eu sei o caminho de volta.

— Olha, não é tão burra — ­ admirou ele.

Núbia rosnou.

— Já você, foi muito burro em pensar que eu não descobriria mais cedo ou mais tarde quem você realmente é.

Cissa agora parecia mais preocupado.

— O que te disseram?

— Que você rouba os cavalos do Edgar e odeia ele.

Cissa sorriu aliviado.

— Ah... Isso. Olha, não é roubo, já que eu devolvo, é que eu pego emprestado sem avisar ninguém e há quem não goste desse tipo de atitude. E sobre odiar o Edgar, quem não odeia?

No pouco que Núbia conhecia Edgar, imaginava que realmente ele não era uma pessoa muito carismática, então não discutiu com aquele argumento. Logo, porém lembrou-se da ordem de Iara sobre não falar com aquele garoto e tentou se afastar.

— Eu... Tenho que voltar.

Cissa rapidamente pegou o braço de Núbia e ela o encarou.

— hei!

— Você foi perseguida pelo Curupira, não foi?— disse ele simplesmente.

Núbia ficou muda por um tempo, depois riu.

— O que? Está maluco? Curupira não existe.

Cissa sorriu sapeca e olhou para o chão.

— Então o que deixou essas pegadas? Sejamos francos.

— Eu... Não sei o que vi ontem, mas não era o Curupira.

— Ah sim, provavelmente era só um deficiente que não usou botinha ortopédica quando criança e que não se depila. Por favor, menina.

— Isso é loucura.

— O mundo é uma loucura, gracinha. O que não intendo é porque alguém que não sei como se salvou do Curupira, volta para mata onde o encontrou.  É louca ou suicida?

Núbia soltou o braço das mãos dele.

— Eu só queria saber o que me perseguiu ontem.

— Bem, agora você sabe, então é melhor sair daqui antes que ele volte. Porque sério, essas historinhas de uma criatura amigável defensor de bichos fofinhos não tem nada a ver com o verdadeiro Curupira. Ele é protetor de crianças e animais? Sim. Mas se você não tiver nessa lista ele mata mesmo, foda-se.

Núbia baixou o olhar e Cissa por alguns segundos, deixou o jeito grosseiro de lado e curvou a cabeça pra ver melhor o rosto da garota.

— Ei, menina, deve ser difícil pensar em algo assim, que esse tipo de coisa existe e tudo mais, mas se ficará por aqui vai ter que se acostumar com isso, sinto muito, essa não será a ultima coisa sobrenatural que você vai ver.

— Nem é a primeira — disse ela baixinho.

Cissa franziu os olhos.

— Como?

— Nada — disse ela caminhando em passos largos e Cissa a seguiu —, eu só... achei, por poucos dias, achei que poderia parar de ser estranha, mas definitivamente sou amaldiçoada, não importe aonde eu vá. Droga!

Disse ela socando uma árvore e depois voltou a andar.

Cissa levantou as sobrancelhas.

— Nossa ela bate em árvores, estou com medo de você — ironizou ele, mas a garota somente o ignorou —. Me explica melhor esse negocio de ser amaldiçoada?

— Não é da sua conta.

— Ainda vou me apaixonar por sua delicadeza, garota. Mas falando sério. Eu posso te ajudar a entender isso, mas você precisa me contar tudo.

Núbia parou bruscamente e o fitou.

— Você nem sabe do que estou falando.

— Você vê coisas não é? Gente morta, quem sabe. Você ás vezes sente como se tivesse uma fera dentro de si e quando ela sai, você ganha uma força que não entende de onde vem e, quando se vê ameaçada, todos os seus sentidos aguçam.

Núbia ficou com expressão interrogativa que até tirou uma risada de Cissa.

— Aí, vai ficar me olhando com essa cara de idiota? Eu sei que eu sou lindo.

— Não é isso! — retrucou Núbia acordando de seu transe pasmo. — É que... Como... Como você sabe de tudo isso?

Cissa sorriu aquele sorriso sapeca e inteligente.

— Porque se deve sempre conhecer o inimigo, menina e estudando sobre os ancestrais do Edgar não é difícil notar que há algo de muito errado nos Cabrall, todos eles.

Um lado de Núbia estava feliz por encontrar alguém que lhe compreendia, outro se perguntava qual o tamanho da raiva de Cissa por Edgar para estudar até mesmo sobre a família dele.

— Se você odeia tanto meu avô, por que acha que eu confiaria em você?

Cissa fez uma cara que dizia claramente: pergunta idiota.

— Porque você não é ele, ôxe.

Núbia franziu os olhos, ainda desconfiada, porém antes que dissesse algo Cissa colocou a mão na boca dela.

— Fica quieta — murmurou ele. Núbia estava prestes a mandar ele se catar quando notou que algo o assustava, seus olhos cinza fitavam ao redor de forma apreensiva.

— Sente esse cheiro de grama cortada? — disse ele ainda em tom baixo — O pé virado tá perto.

Núbia olhou em volta e logo lhe percorreu um arrepio do lado direito, ela se virou para aquele lado e exatamente de lá emitiu-se um som tão agudo que os dois caíram de joelhos no chão enquanto tentavam desesperadamente tampar os ouvidos.

O som ficou mais alto, Núbia sentiu sangue escorrer pelo nariz e viu o mesmo acontecer com Cissa, os dois estavam totalmente atordoados, a visão de ambos estava turva, porém logo, o som sessou. Os sentidos voltaram para Núbia e Cissa, mas junto á uma enorme dor de cabeça. Núbia limpou o sangue do nariz com a manga da blusa enquanto Cissa se esforçou em levantar e gritar:

— Ei! Apareça. Quero falar com você Tarzan pirata! — A criatura surgiu e parou bem a frente de Cissa. — Eh... Quis dizer: Protetor da mata.

O Curupira franziu os olhos.

— Você? — disse ele curvando a cabeça.

— Eu! — disse Cissa abrindo os braços.

O Curupira rosnou.

— Não tenho tempo para suas brincadeiras bobas, demônio, quero resolver assuntos com essa aí — disse ele apontando para Núbia.

— Então, esse que é o problema. Você quer algo tão vago, né. Tanto incêndio ocorrendo pelas matas, animais morrendo em caças e você vem até o sul do país, só por causa dela?

Núbia franziu os olhos com aquilo, mas não interferiu, Cissa parecia bom de lábia e aquilo podia salva-la.

— Sem dizer que se quisesse mata-la teria feito isso ontem, perdeu a chance, agora já era.

— Ela é descendente do mal — disse Curupira, somente.

Os dois se fitaram por um bom tempo, esperando que alguém falasse algo.

— Então — disse Cissa, — Ser descendente do mal não é ser mau. Se você tem problemas com ele, resolve com ele. Deixa a menina em paz.

— Não me dê ordens!

Curupira colocou a ponta da lança no pescoço de Cissa; Núbia estava se levantando, mas Cissa fez sinal para ela parar.

— Eu jamais daria ordens para um deus indígena — disse Cissa tranquilo de mais para quem tinha uma ponta afiada milímetros da garganta. — É só uma ideia. Sem contar que... Olhe para ela, olhe bem, é só uma garotinha! Até onde sei você não mata crianças.

Curupira fitou Núbia e voltou-se para Cissa.

— Ela não é criança há alguns anos e você também.

— Você leva essa separação do que pode ou não matar muito a sério sabia?

Ele aproximou mais ainda a lança da garganta de Cissa.

Núbia estava totalmente perdida naquilo tudo, mas decidiu que seria bom para o Cícero, enrolar mais o Curupira.

— O Mal seria Edgar? Quer dizer... Você diz que sou descendente do mal, esse mal seria Edgar Cabrall?

O Curupira assentiu.

— Por que ele é o mal? — perguntou a menina.

— Por que ele é o mal? — repetiu Curupira serrando os dentes.

Cissa balançou a cabeça como se dissesse: Não faça isso.

— É uma longa história menina — disse Cissa. — Mas então Curupira — ele estendeu o braço, — vamos fazer um trato, acho que sei o que você quer e sei como te ajudar a conseguir, mas você precisa confiar em mim e na menina.

— Na menina? Não se confia em um Cabrall.

— Sim, mas você já deve ter percebido que ela não tem laço algum com Edgar. Então deixe-a. Está totalmente perdida, tadinha.

O Curupira estreitou os olhos, desconfiado. Cissa então começou a murmurar em uma língua que Núbia não fazia ideia de qual era, mas Curupira pareceu compreender bem. Segundos depois o monstrengo sorriu e os encarou.

— Quem sabe... Cinco dias, somente cinco dias — disse ele e Cissa assentiu. Curupira o encarou o pegando pela gola da camisa — Se não conseguir o que prometeu nesse tempo, te espanco até a morte e te empalo numa árvore.

— Nossa que assassinato mais complicado. Pode deixar que eu não vou te dar todo esse trabalho — disse Cissa com um sorrisinho.

Curupira rosnou e largou a gola do rapaz depois apontou a estaca para Núbia.

— E é bom que eu não me arrependa de não ter te matado quando tive chance — disse Curupira a Núbia e logo em seguida sumiu como um raio dentre a mata.

— O que disse a ele? — perguntou Núbia — e que língua era aquela?

— Falei o que ele precisava ouvir e numa língua indígena de tribos da região em que o Curupira vivia. Longa história. Agora vamos, antes que alguém no casarão sinta sua falta.

— Acho difícil — lamentou Núbia.

Cissa voltou a caminhar pela mata e Núbia foi logo atrás.

— Por que fez isso? — perguntou ela. — Por que me ajudou?

— Como faz perguntas — reclamou Cissa. — Eu fiz isso porque eu podia fazer. Notei o que estava ocorrendo e sabia como resolver o problema, então por que não? Você não me parece uma má menina, não é como seu tataravô.

Núbia franziu os olhos. Não se lembrava de ter dito a Cissa que Edgar era seu tataravô e sim, avô.

— O que meu... O que Edgar fez de tão ruim?

Cissa deu de ombros.

— Para irritar o Curupira ele poderia ter caçado animais por diversão ou algo assim. Mas se fosse esse o casso, Edgar já seria um cadáver há muito tempo, Curupira não costuma deixar para depois assassinatos que ele pode fazer na hora. Sem contar que o Pé virado não é o primeiro que vejo querendo matar Edgar.

Eles saíram do bosque e agora já estavam caminhando pelo jardim do casarão.

— Isso tudo é muito insano! — protestou Núbia — E foi incrível como você falou com o Curupira, quero dizer, ele é um monstro, como ficou tão calmo? Como sabia que ele ia te ouvir? 

— No momento em que aquele som agudo percorreu a mata eu conclui que fugir ou lutar não era uma boa escapatória, já li bastante sobre o Curupira, ele é insano e violento, mas gosta de uma boa proposta. Porém eu não fazia ideia do que falar nem como e é esse é meu segredo — ele deu uma piscadinha para Núbia — eu sou completamente doido.

Núbia riu.

— Quase não notei — ironizou.

Os dois se aproximaram da baia. Núbia encostou-se no portão de madeira do local. Estava atordoada, nada fazia sentido. Ela viu mesmo o Curupira? Seu tataravô era um feiticeiro ou algo assim? E quem era aquele garoto que lhe ajudara, mas escondia tanto?

— Obrigada Cissa — disse por fim. — Muito Obrigada.

Cissa assentiu.

— Quando precisar de um amigo ou coisa assim, pode contar comigo, menina.

Núbia sorriu de canto.

— É só me dar algo em troca — prosseguiu Cissa com seu sorriso sapeca.

— O que?

Cissa se aproximou de Núbia, o que lhe deu um friozinho na barriga.

— Comida — disse ele por fim.

— Sério? — disse Núbia incrédula.

— Claro! Há algo melhor do que comida? Sabe, no casarão deve ter umas coisas muito gostosas. Se você trouxer para mim todo dia algo bom, eu viro seu amigo e te salvo de qualquer outra criatura que lhe perseguir.

— Nossa, você está negociando sua amizade? Por comida?

— O mundo é dos espertos, gracinha. De acordo?

Núbia riu, mas não pode dizer não.

— Sim, de acordo. Mas tem que me falar mais sobre você.

— Por comida eu te digo até quem eu já matei — disse Cissa aproximando seu rosto do dela.

— Está brincando, né.

— Claro! — disse ele não muito convincente.

Núbia se esquivou afastando-se do rapaz.

— Te vejo mais tarde então, Cissa — disse ela acenando. — E te trago alguma coisa, prometo.

Cissa acenou com a cabeça e Núbia se foi. Ela olhou para trás alguns segundos depois, mas o garoto já não estava mais lá, então se perguntou como encontraria aquele misterioso rapaz todo dia, se ele tinha esse feitio de sumir, contudo, o que realmente interessava era que ao menos agora ela tinha um amigo, ou algo parecido.

Ela subiu as escadas e ao abrir a porta do quarto se deparou com Iara sentada na cama.

— Oi mocinha.

— Eh, oi. O que faz aqui?

— Quero que me responda algo.

— Tudo bem.

  Núbia engoliu seco, tinha certeza que ela diria algo sobre Cissa e a ordem que dera para ficar longe deste, porém, ela tocou num assunto bem mais delicado.  

— Você matou Carla Rodrigues?

Núbia sentiu suas pernas bambas. Iara pareceu notar isso e deu batidinhas na cama, para que Núbia sentasse-se ao lado dela e foi o que a garota fez, mesmo com certo acanhamento.

— Vimos todo seu histórico antes de aceitarmos te adotar é claro e de todas as tragédias que aconteceram na sua vida, essa foi a que mais me chamou a atenção — prosseguiu Iara.

— E mesmo assim me adotaram, por quê?

— Porque diferentes dos outros, eu vou te ouvir, Núbia e, vou acreditar em você. Então me diga, quem matou a Carla? Só estavam você e suas amigas no banheiro. Rebeca apareceu do lado de fora, nas câmeras da escola, você prosseguiu no banheiro, com a Carla, então...

— Não! — berrou Núbia — houve um apagão, quando as luzes se acenderam Carla não estava conosco, Rebeca foi procura-la no corredor e eu fiquei no banheiro, achamos que ela havia fugido, era medrosa, mas então eu notei gotas de sangue na ultima divisória do banheiro e a encontrei.

— Ela morreu durante o apagão então.

— Sim... Mas não fui eu, nem Rebeca, sequer ouvimos algo.

— Ela foi encontrada sem os olhos e a língua, como ela não gritaria enquanto alguém lhe arranca os olhos?

— Eu não sei! Droga, eu passei anos falando isso para todo mundo, eu não sei!

Iara ficou em silencio por um tempo depois pegou o rosto de Núbia e olhando com ternura perguntou:

— O que vocês estavam fazendo antes do apagão?

— Nada... Estávamos só brincando daquele desafio idiota da Bloody Mary, ou loira do banheiro, todo mundo faz isso, nunca acontece nada, mas foi só...

— Foi só o que?

Núbia suspirou.

— Foi só eu fazer, que aconteceu isso. Então quem sabe sim, eu tenha matado minha própria amiga — murmurou com tristeza.

 Iara a abraçou e acariciou os cabelos ruivos e lisos de Núbia. Depois de segundos confortantes e silenciosos, Iara se afastou da garota e disse com voz firme.

— Você não teve culpa de nada, está bem?

Núbia tentou concordar com a cabeça.

— Mas você não acha que foi ela, ne? A loira do banheiro?

Iara desviou o olhar, mas depois tentou abrir um sorrisinho.

— Você é que não foi, certo? Agora descanse um pouco e depois desça para o almoço.

— Ok — murmurou Núbia ainda não acreditando que Iara encarou aquilo tão bem.

Iara sorriu e saiu do quarto, fechando a porta.

Núbia deitou-se e ficou olhando o teto, tinha que admitir que estava começando a pegar carinho por Iara, já Iara, estava começando a pegar esperanças em Núbia. Ao sair do quarto da garota foi direto para o próprio quarto e encontrou Edgar sentado na cama, lendo aqueles livros antigos de sempre. Ela fechou a porta e pigarreou, mas Edgar não tirou os olhos do livro.

— Está bem querido?

— Cínica— disse ele somente.

Iara riu.

— Realmente, gosto de ver seu sofrimento, e... estou tão feliz.

— Sinto em estragar sua felicidade. Mas aquele mal estar de manhã já passou, tomei doses maiores do meu vinho — declarou Edgar.

Iara inicialmente pareceu desanimada com aquela noticia, mas depois deu de ombros.

— Dane-se seu mal estar, logo você fica doente de novo, velhos são assim — disse ela com um sorrisinho e Edgar rosnou não gostando nada daquele comentário —, Mas tenho boas notícias.

— Bah... O que?

— Como eu pensava, Edgar, aquela garota não é uma Cabrall qualquer. 

Iara caminhou até a cama com um sorriso maldoso, tirou o livro das mãos de Edgar e ficou sobre ele, rosto a rosto.

— Ela invocou uma entidade sem querer, por simples acidente! Estou começando a pensar que Núbia é até mesmo mais poderosa que você, Edgar Cabrall.

Edgar franziu os olhos.

— Nunca.


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Notas finais do capítulo

De elogio á crítica, comente! Para que eu possa melhorar a cada novo texto.



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