Kingdom Hearts: Motherland escrita por Kyra_Spring


Capítulo 19
Libertação




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            A dor finalmente golpeou Sora com força, depois que o efeito da Angel Form se desfez.

            De repente, ele tomou consciência de tudo o que acontecera. Erinia se fora. A Fonte havia sido selada. E tudo estava no seu devido lugar.

            E, para que isso acontecesse, o preço já havia sido pago, também.

            Ele podia sentir o sangue quente e espesso escorrer pela sua barriga a partir dos ferimentos provocado pela lança da feiticeira. Uma dor pungente se irradiava daquele ponto para toda a extensão do seu tronco, subindo pelo peito, arrastando-se pelos ombros, caminhando pelas costas... Além da dor, ele sentia tudo ao seu redor. A chuva escorria pelo seu rosto, um toque frio e suave em contraste com o calor do sangue. Cada batida do seu coração parecia ecoar em seus ouvidos.

            Até porque ele sabia que aquelas seriam as últimas.

            A Mother’s Promise ainda estava em sua mão, inerte, e de repente ela parecia pesada demais. Seus dedos perderam a força e a deixaram cair no chão, com um som seco de metal contra pedra. Enquanto isso, seus olhos percorriam as paredes do salão, agora semidestruídas pela batalha, e o chão coberto por milhares de cacos de espelho e vidro. De qualquer forma, aquele era um belo lugar para se estar. Mesmo depois de tantos danos, ainda era um belo salão.

            Lentamente, ia tomando consciência de tudo. A lança certamente perfurara algum órgão importante, e o ferimento sangrava muito. Isso explicaria a dor, e a letargia que ia se espalhando por seu corpo e o arrastando gentilmente para o fim.

            Então, seus joelhos enfraqueceram. E ele caiu ajoelhado no chão, com um baque.

            De repente, sua mente começou a vagar. A dor, agora, parecia apenas uma sensação muito distante, uma lembrança apenas. A consciência de que sua vida estava chegando ao fim lentamente o preenchia, clara e palpável como água. Ele sempre se perguntou como seria o fim. Seria doloroso? O que haveria depois? Como seria? Tantas perguntas o intrigaram por tanto tempo...

            E ele sempre teve tanto medo... medo de partir, medo de deixar para trás aqueles que amava...

            Mas, agora, encarava a morte de frente. Ele quase podia vê-la, esperando-o. E, dessa vez, não tinha medo ou dúvida. Era daquele jeito que deveria terminar. E era daquele jeito que ele queria que terminasse. Era melhor do que ser obrigado a ver todos os mundos desmoronarem em meio à dor e ao ódio.

            Tudo ficaria bem agora. Todas as pessoas a quem amava.

            Donald. Goofy. Leene. Leon. Yuffie. Tifa. Cid. O rei Mickey. Selphie. Tidus. Wakka. Pence. Olette. Todos aqueles que haviam cruzado o seu caminho e que haviam lutado ao seu lado.

            Riku... seu irmão, nas palavras dele mesmo. Um irmão pelo qual iria até o fim do mundo.

            Kairi... a dona do seu coração, a garota que ele amava, e que tinha um coração tão puro e tão grande que era capaz até de aceitar o dele, cheio de falhas... ele já havia aberto mão de tudo por ela uma vez, e não hesitava em fazê-lo de novo...

            Era por eles que Sora lutava. Eram eles que faziam tudo valer a pena.

            A consciência começava a oscilar, a visão ia se tornando lentamente turva... era como se ele afundasse lentamente num lago pacífico de águas frias e refrescantes... não era ruim, de maneira alguma. Pelo contrário, era... agradável, gentil... e ele não tinha medo. Tudo o que precisava fazer era se deixar afundar em direção ao silêncio, e toda a dor ficaria para trás.

            Os outros sofreriam, e isso o entristecia. Mas eles saberiam entender porque ele fazia aquilo.

            Então, ele se lembrou de uma frase, dita por Erinia:

            “O fim de todo mestre da Keyblade é triste, prematuro e solitário. E assim será o seu.”

            “Triste, solitário e prematuro...”, ele pensou. Bem, ela não estava totalmente errada. Certamente o seu era prematuro, e triste... mas não, não solitário. De certa forma, todos aqueles a quem amava estavam ali, por perto, guiando-o, ajudando-o a seguir em frente.

            Tudo ficava escuro... de repente, ele começou a sentir frio...

            E então, finalmente, seu corpo cedeu. E ele foi caindo, o rosto se aproximando do chão. Tudo parecia acontecer em câmera lenta, enquanto pela sua mente iam passando lembranças desconexas de pessoas e acontecimentos na sua vida.

            Mas ele não iria cair. Não sozinho, pelo menos.

            Como se estivesse dentro da água, ele ouviu passos pesados de alguém correndo na direção dele e o segurando pelos ombros, impedindo-o de cair de cara no chão. Ele não reconheceu, a princípio, mas logo ouviu sua voz, trêmula e cheia de raiva:

–Por que fez isso comigo, idiota? Por quê?!

–Riku? – ele disse, numa voz fraca – Não devia... estar aqui.

            Riku havia vencido Bahamut... que bom... Ele tentou se virar, e viu que o dragão estava de pé, encarando-os. Kohryu estava certo. E, agora, eles estavam livres.

            Ele demorou a perceber o estado de Sora. Depois que a Angel Form se desfez, ele não atinou imediatamente para o que estava acontecendo, mas logo viu uma trilha vermelha-clara de sangue e água de chuva misturados, escorrendo para o chão. Por um momento, o ar fugiu de seus pulmões, enquanto ele corria na direção do amigo.

–E deixar você sangrar até morrer aqui? De jeito nenhum! – agora, a voz de Riku estava instável, inconstante – Você vai ficar bem, cara. Eu vou te levar pra fora, pra cuidar desse machucado... ele nem tá tão feio assim.

–Você mente mal, sabia? – Sora se forçou a dar um sorriso – Tá tudo bem... Erinia se foi... a Fonte está a salvo... e... e...

–Fique quieto, e poupe suas forças – Riku o cortou – Vamos... vamos sair daqui...

–Riku – ele tentou colocar força na voz, sentindo que seu tempo se esgotava – Tem uma coisa que eu... preciso te pedir...

–Corta essa, Sora! – disse o outro, com raiva na voz, sentindo os olhos começarem a ficar marejados – Não me venha com essa história de último desejo, você vai sair dessa!

–Me escute... por favor... – o primeiro insistiu, urgente – Prometa que você não vai deixar que isso aconteça outra vez... que não vai deixar ninguém tentar destruir nosso lar outra vez...

–Eu... eu... – Riku gaguejou, as lágrimas correndo livres pelo rosto – Eu prometo...

            Os dois apenas se encararam, por um instante. Os olhos de Sora estavam turvos, perdidos. Os de Riku, cheios de lágrimas. O coração do rapaz estava despedaçado. Então era daquela forma que terminaria? Depois de tudo pelo que lutaram, ele teria que assistir ao seu melhor amigo morrendo? Não era justo! Sora não merecia isso, não depois de tudo pelo que havia passado... Se havia alguém que merecia estar naquela situação, era ele!

–Você vai ficar bem, cara – murmurou Sora, quase sem voz – Você sempre foi a mente criativa, vai saber se virar...

–Eu não quero saber me virar, droga! – então, ele reagiu, furioso – Eu não quero, entendeu? Tudo o que eu quero é não ser obrigado a ver meu melhor amigo morrer na minha frente por causa de uma guerra sem sentido! O que eu quero é não perder o meu irmão!

            Mas Sora já não podia fazer mais nada para amenizar a dor do amigo. Ele teria que seguir em frente sozinho, e se sairia bem nessa jornada. Sora sabia disso. Da mesma forma, ele teria que seguir sozinho, e tudo o que poderia levar era a lembrança de todos aqueles que lutaram ao lado dele. Ele fixou o olhar no rosto de Kairi, desenhando-o mentalmente, memorizando cada traço... sim, era ela que o acompanharia em direção ao que quer que o aguardasse do outro lado... e tudo se perdia em névoa, e todo som se desvanecia em meio ao silêncio...

            E então, ele afundou, por fim, no mar de silêncio e calma que o aguardava.

            Riku só pôde observar, com o coração em pedaços, os olhos do amigo se fecharem lentamente. A expressão dele era tranqüila e serena, entregue. Por um instante, Riku não soube o que fazer, o que sentir. Ele não seria capaz de salvá-lo, seria? Da mesma forma que não fora das outras vezes... talvez, aquele fosse o seu castigo final.

            Não... aquilo não estava certo... Se havia alguma punição a ser dada ali, seria sobre ele, e não sobre seus amigos. Era sua função salvá-lo. E era o que iria fazer.

            Então, ele ouviu passos vindos da porta. Leene, Rikku e Kairi corriam na direção dos dois. Leene foi a mais rápida, correndo na direção dele e ajoelhando-se no chão ao seu lado. Kairi veio logo depois, os olhos arregalados e cheios de pavor.

–O que houve aqui? – Leene gaguejou, a voz trêmula, colocando as mãos sobre o rosto de Riku. Só então ela se virou e viu a roupa dele coberta de sangue, e Sora desacordado – Ah, meu Deus! O que houve com você, cara? – ela tocou o pulso dele – Droga... não, Sora, não faça isso conosco! CURAGA!

            Uma luz verde envolveu o corpo dele, mas não parecia ter surtido efeito algum. Ela tentou de novo e de novo, sem sucesso. Kairi se ajoelhou do lado deles, e observou o ferimento, gaguejando:

–A lança de Erinia era amaldiçoada. Os feitiços não vão funcionar...

Eu não vou deixá-lo morrer aqui! – vociferou Riku, os olhos vermelhos e cheios de lágrimas – Tem que haver alguma coisa que possamos fazer!

–Afaste-se, Riku – então, Leene arrancou as longas luvas que usava e atirou-as para Kairi, que improvisou um curativo com elas. Depois, colocou Sora deitado no chão, e com as mãos unidas, começou a massagear seu peito com força – Anda, seu idiota, você não vivia falando que seu coração era forte? Então diga pra ele voltar a bater agora mesmo!

–Ele não tá respirando... – murmurou Riku, quase sem voz.

–Vamos, Sora, lute! – Leene estava decidida a trazê-lo de volta, e começou a alternar os ciclos de massagem com respiração boca-a-boca – Droga, reaja de uma vez... reaja...

–Sora, pelo amor de Deus, acorde – Kairi sussurrava em seu ouvido, chorando – Não me deixe aqui sozinha. Você prometeu que voltaria para mim, não prometeu? Por favor... volte... volte pra mim...

            Riku passou a ajudá-la com a massagem, mas ainda assim ele continuava inerte, sem pulso e sem respiração. Ele se recusava a acreditar que iria perder seu amigo. Não podia. Perdê-lo seria extremamente doloroso, e ele já tinha dores demais para suportar.

–DROGA, POR QUE VOCÊ NÃO REAGE? – então, ele começou a esmurrar o peito de Sora com toda a força que tinha. Estava desesperado. Precisava haver alguma coisa, qualquer coisa, que o fizesse acordar. Ele podia perceber as lágrimas de Kairi e de Leene, e que Rikku assistia a cena de longe, com um olhar desolado e triste. – A CULPA É SUA, SEU IDIOTA! VOCÊ NÃO TEM O DIREITO DE MORRER E ABANDONAR TODO MUNDO AQUI! VOCÊ... NÃO TEM... ESSE... DIREITO...

–Riku, pare! – Kairi, chorando livremente, tentou impedi-lo, sem sucesso. E ele continuou socando, e gritando, e as lágrimas correndo livres pelo seu rosto, até que...

–Pare! Droga, Riku, pare! Ele está respirando! – então, Leene segurou o braço dele. E ele percebeu, com um misto de alívio e choque, o peito de Sora subindo e descendo lentamente. Era possível também sentir seu pulso, fraco, mas constante, como se ele estivesse decidido a não cair daquela forma e permanecer lutando enquanto ainda lhe restasse uma faísca de força.

–Vamos levá-lo para o centro de primeiros socorros – comandou Riku, colocando-o em seus ombros, sentindo uma esperança feroz arder em seu peito – Vamos salvá-lo, Sora. Eu juro. Nós vamos te salvar.

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            Pouco depois, todos se reuniam no saguão do Templo de Shiva, em Waterfall City.

            A batalha havia sido vencida. Depois que Maleficent caiu, cuidar dos Heartless e Nobodies foi relativamente fácil. E, sem Erinia para comandar as ondas de ataques periódicos, não havia grandes desafios. Assim, eles conseguiram resistir a todos os ataques, e manter a cidade intacta. Os Nobodies que infestavam a cidade também haviam diminuído, o que permitia que as sacerdotisas do Templo de Shiva pudessem purificar novamente a cidade da superfície.

            Não houve perdas, mas houve muitos ferimentos, alguns deles graves. Nenhum deles, porém, era tão grave quanto os de Sora. Naquele momento, ele jazia, desacordado e fraco, na enfermaria do Templo. Sua pele estava pálida e seu corpo era constantemente agitado por tremores violentos. Sua força parecia diminuir a cada hora que passava.

            Todos os que estavam relativamente ilesos se alternavam na vigília de Sora. Kairi se recusava a sair do lado dele. Riku, por outro lado, não conseguia se aproximar. O medo que oprimia seu coração era infinito. Não podia perder o seu melhor amigo, não ali, não daquela forma. E não podia encará-lo, também. Ele deveria tê-lo protegido, mas não o fez. E isso o machucava ainda mais.

–Como ele está? – a própria Lulu foi verificar o estado dele. Naquele momento, Riku, que aguardava por notícias na porta do quarto, perguntou, ansioso.

–É difícil dizer – ela respondeu – Os ferimentos dele não parecem reagir a nenhuma das poções. Nossos médicos estão trabalhando nisso, mas não tivemos ainda muito sucesso. Também estou fazendo todo o possível... e Sora é um rapaz forte, e está lutando.

            Riku impediu que as lágrimas viessem. Ele não tinha tempo para aquilo.

–E os outros, como estão? – ele perguntou, sem muito interesse.

–Em sua maioria, apenas escoriações e ferimentos leves – ela respondeu – Cloud deslocou o ombro, e Leon está com um ferimento feio nas costas. Yuna teve um corte no braço, também. E o Zell, aquele idiota, caiu do chocobo e bateu a cabeça no fim da luta. Não parece ser grave, mas ele ainda está desacordado.

            Riku teve que disfarçar uma sensação maldosa de satisfação ao ouvir isso. E logo sua mente se voltou outra vez para Sora. Ele tentava deter os pensamentos pessimistas que ameaçavam tomar conta da sua mente. Ele sabia que as chances estavam contra o amigo. Sem feitiços ou poções que funcionassem, ele provavelmente não sobreviveria àquela noite...

            Não. Não pense nisso. Ele repetia para si mesmo.

–Tem mais uma coisa, Riku – continuou Lulu – Há algo... diferente em Sora. Uma espécie de aura diferente, algo sombrio... posso estar enganada, ele passou por muita coisa essa noite, mas há algo estranho nele. Sei que você é sensível a essas coisas, talvez devesse dar uma olhada.

            Ele acenou com a cabeça, e ela fez o mesmo, afastando-se. Aquilo deixou Riku intrigado. Por que ela procurou justamente ele? Que respostas ele poderia dar?

            A não ser que...

            Nesse momento, ele arregalou os olhos, aterrado. Não era possível. Então, aquela névoa que envolveu Sora e Erinia, durante a batalha, era...

            Então, ele se levantou, e correu para a enfermaria onde Sora estava.

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            “Onde... eu estou?”

            Demorou um pouco para que Sora conseguisse entender o que estava acontecendo. A primeira coisa que ele percebeu foi que não chovia. A segunda coisa que percebeu foi que estava de pé, em algum lugar qualquer.

            E a terceira era a de que ele não estava sozinho. E que aquele lugar era muito familiar.

            De repente, as lembranças do que havia acabado de acontecer foram voltando. A luta, os ferimentos, a letargia... Riku, Leene e Kairi ao seu redor... Kairi... Sim, a voz dela. Ela estava chorando naquela hora, não estava? Chorando... por ele. Mesmo depois de ela prometer.

            Então, ele entendeu o que estava acontecendo.

–Eu estou morto... – ele murmurou. O som da sua voz parecia estranho. A constatação era mais estranha ainda. Ele não esperava que o outro lado fosse daquele jeito...

            Na verdade, quando sua visão voltou a entrar em foco, ele percebeu que ainda estava no topo da torre. Mas não chovia. A cúpula estava intacta, e não havia cacos de vidro e espelho por todos os lados. Na verdade, os espelhos estavam intactos. A lua brilhava no céu, uma lua cheia. A mente de Sora, então, começou a formular uma teoria. Ele não poderia ter sobrevivido àquilo, isso era óbvio. E, pelo fato de não ter ferimentos aparentes, significava que ele realmente havia morrido. Então, talvez, aquele não fosse realmente um outro mundo. Talvez ele fosse apenas um espírito, um fantasma, preso ali...

            Exatamente como Seth.

–Achei que você merecia ver isso – então, o próprio Seth apareceu ao seu lado. Agora, porém, ele parecia muito mais real e concreto do que antes – Tá vendo ali, no meio da plataforma?

–Não... – murmurou Sora, mas depois ele olhou com mais atenção – Peraí... tem alguém caído ali.

            Ele correu até lá, mas assim que percebeu quem era, estacou.

            Era um rapaz, mais ou menos da sua idade. Cabelos pretos com uma mecha branca, um colete sem mangas, luvas... e um grande buraco no peito. Ao redor dele, uma poça de sangue. Os olhos castanho estavam abertos e fixos no teto, sem realmente o ver. A expressão do rosto estava congelada em choque e dor.

            Sora lançou um olhar apavorado a Seth. E ele o traduziu em palavras, respondendo:

–Sim, sou eu. Essa foi a noite em que eu morri.

            Então, eles ouviram um barulho na porta. Através dela, surgiu uma garota de cabelos vermelho-fogo presos em uma trança longa. Sora reconheceu prontamente a princesa Selene, mas naquele momento ela estava vestida quase igual a um garoto. Assim que ela viu Seth caído, correu até ele, colocando a cabeça dele em seu colo. Logo, eles puderam ouvi-la chorar, enquanto ela afagava o rosto dele com as mãos.

–Eu queria ter dito a ela que a amava... mais uma vez... – murmurou Seth, a voz sufocada – Já faz tanto tempo... mas, mesmo assim... vê-la chorar ainda dói.

            Sim. Sora sabia disso. Era o que sentia pelas lágrimas de Kairi.

            Então, tudo ficou escuro. Ao longe, eles puderam divisar uma silhueta familiar. E, vindo na direção dele, um vulto claro, imponente e luminoso. Sora percebeu que o primeiro vulto era Seth, outra vez, e sentia que conhecia o segundo.

–Então é assim que termina... – ele murmurou, e se virou na direção do vulto – E agora?

–Você lutou bem, criança – era uma voz de mulher. Sora a reconheceu na hora, mas não acreditou prontamente – Seu coração é realmente forte.

–Sellie vai precisar de alguém que a ajude, agora – havia amargura na voz do Seth que falava com o vulto. O que estava do lado de Sora mordia o lábio – Alguém que... fique do lado dela – e, virando-se na direção do vulto – Pode cuidar dela para mim, por favor?

–É claro – respondeu a outra. Sim, era ela! Era Shiva! – Agora, tudo ficará bem. Venha...

            Ele hesitou por um instante, os olhos fixos no chão. E então, disse:

–Por favor, me deixe protegê-la – a voz dele estava engasgada – Sei que não pode me mandar de volta, mas... tem que haver algo que eu possa fazer para protegê-la, para cuidar dela... para ajudá-la...

–Você já sacrificou demais, meu rapaz – disse Shiva – É hora de deixar isso para trás.

–Não posso – ele insistiu – Eu... eu a amo. E ela vai precisar de toda a ajuda disponível.

            Ele percebeu que ela o observava, intensamente. E, por fim, ela disse:

–Corações fortes e decididos como o seu são raros. Você se disporia, então, a oferecer o seu coração para ajudar aqueles que virão depois de você a lutar?

            Ele hesitou por um instante, os olhos baixos, a mão no peito. E, então, disse:

–Erinia ainda existe, não é? Eu não... não a matei.

–Sim – ela respondeu – Mas você conseguiu neutralizá-la por completo. É provável que ela volte, mas até lá todos estarão mais preparados. Então... você se dispõe a isso?

–Sim – ele respondeu, decidido.

–Tem certeza disso? – ela insistiu – Você ficará preso a esse mundo. Isso pode ser doloroso, até enlouquecedor.

–É minha responsabilidade – ele retrucou – Sim, eu aceito.

            Shiva hesitou por um instante, antes de colocar a mão sobre o peito dele. No segundo seguinte, uma luz forte os envolveu. Sora observou, pasmo, o coração dele deixar o corpo, ascender e, então, cristalizar-se e fundir-se à espada que ele trazia embainhada na cintura. Quando terminou, os olhares deles se cruzaram, enquanto ela dizia:

–Seu coração dará força aos que lutarem pela sua princesa, e pelos que vierem depois dela – ela estendeu a mão a ele – E essa força manterá o mundo em equilíbrio. Mas você estará preso a ele...

            A mente de Sora divagava, confusa e perdida com a revelação inesperada. Então, quando ele conseguiu articular novamente as palavras, murmurou:

–Então... você é...

–A essência da Keyblade – completou Seth – Meu coração foi fundido à espada. E ela se tornou a primeira Keyblade. As outras Keychains surgiram do mesmo princípio: fragmentos dos corações dos antigos mestres da Keyblade que foram cristalizados nesse mundo e dão força adicional aos atuais mestres. Pode parecer estranho, eu sei – ele abriu um sorrisinho – mas é por isso que posso falar com você. Posso falar com mestres da Keyblade, se eu quiser. Mas nunca fiz isso. Quer dizer, não até agora, quando os sinais do despertar de Erinia começaram a aparecer...

–Despertar? – Sora ergueu uma sobrancelha

–Quando lutei com ela, consegui selá-la numa cúpula do Reino da Escuridão. Deixei-a lá presa, sem poderes, e adormecida. Mas... bem, ela conseguiu me acertar antes. Mas algo a despertou agora, e eu não consegui descobrir o que era. Por isso, tentei entrar em contato com você. Shiva havia me avisado que seria difícil, e que eu não podia revelar muito. Mas, aos poucos, ao mostrar o meu próprio passado, consegui ajudá-lo a entender o que estava acontecendo.

            Sora ficou em silêncio por um instante, antes de dizer:

–E o que acontece agora? Bem... você viu como terminou aquela luta. Isso significa que ficarei aqui, preso também?

–Não – então, ele ouviu a voz etérea de Shiva. Mas dessa vez ela não era parte das lembranças de Seth, apenas. Não. Ela estava ali, parada ao seu lado. Sora se virou na direção dela, sobressaltado – Você ainda não deixou o mundo dos que vivem, criança.

–O quê? – a voz dele sumiu – Então... por que estou aqui?

–Você lutou muito bravamente, também – ela disse. De perto, ela era ainda mais imponente. Os cabelos longos, a expressão delicada e quase sobrenatural, e uma aura estranhamente gentil e acolhedora ao redor dela o faziam se sentir seguro – Mas o preço que você pagou nessa luta foi alto demais.

–O que quer dizer com isso? – ele ergueu uma sobrancelha – Eu já sabia que isso poderia acontecer...

–Não se trata apenas da sua vida – ela o cortou – Sim, ela é muito preciosa. Mas o que você sacrificou foi ainda mais precioso. Você sacrificou parte do seu coração, uma parte importante.

–Como assim? – ele gaguejou, apavorado.

–A verdade, Sora – ela disse, depois de um suspiro – é que você...

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–O QUÊ? – grasnou Kairi, na enfermaria, sentada ao lado de Sora, depois do que Riku acabava de lhe contar. Ela se recusava a acreditar naquilo – Não faz o menor sentido! Como Sora...

–Eu também não sei – replicou Riku, tenso – Mas a verdade é que foi isso que ele fez. A mesma sombra que eu sentia perto de Erinia agora sinto perto dele!

–Por que ele fez isso? – Kairi estava sem voz – Isso... isso é loucura...

–Não acho que tenha sido intencional – respondeu ele – Mas... essa é a verdade.

            Então, Lulu entrou no quarto, acompanhada por Leene e pelo rei Mickey. Ele se aproximou de Sora, observando-o com um olhar consternado, antes de dizer:

–Ele vai ficar bem... não vai?

–Eu não sei – murmurou Lulu – Riku... você percebeu, não é?

–Sim – ele murmurou, a voz fraca – Ele... selou Erinia dentro do próprio coração, não foi?

–O quê? – a voz de Leene falhou naquela hora – Como? Por que?

–Eu não sei – respondeu ele – Não sei se ele conseguirá contê-la por muito tempo.

–Sei que o que eu vou dizer agora vai soar muito cruel – disse Lulu – mas, se Sora não resistir, ele levará Erinia consigo para sempre. Talvez... esse fosse o plano dele.

            Leene, Riku e Kairi reagiram com olhares furiosos na direção da feiticeira, que apenas acenou com a cabeça, como que pedindo desculpas.

–Ele é forte – disse Kairi, tentando deixar a voz firme – E vai sair dessa. Eu sei disso.

            Mas ela própria duvidou disso por um instante, ao observá-lo, pálido, suando frio, o rosto impassível e vazio. Que tipo de conflito estava sendo travado dentro do coração dele? Ela se sentiu ainda pior. Queria estender a mão a ele, queria ajudá-lo, queria salvá-lo – mas não podia. Tudo o que podia fazer era esperar.

            Esperar... até que fosse tarde demais.

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            Naquele momento, Sora desejou imensamente enlouquecer e perder a noção de realidade.

            Não podia viver com aquilo. Uma coisa era poder levar Erinia à Fonte das Eras e, com isso, provocar uma destruição sem precedentes. Isso já era terrível o suficiente. Outra coisa era tê-la dentro do seu coração, apenas aguardando, envenenando-o lentamente até que pudesse tomar o controle dele. Através do corpo e do coração dele, ela poderia causar ainda mais caos.

–Sei que isso é doloroso, e desesperador – disse Shiva – Mas o simples fato de você ter sobrevivido a isso, e de estar lutando para se manter vivo, já é uma prova de que você pode lidar com isso melhor do que ninguém. Ela não pode controlá-lo, a menos que você permita. E o seu coração é uma torre, ela não poderá atingi-lo.

–Não... eu não quero isso... – ele murmurou – Não posso... ser responsável por isso.

            Então, uma luz se acendeu em sua mente. E, com a voz séria, ele murmurou:

–Eu não quero mais isso. Me deixe partir de uma vez. Assim, ela virá comigo, e não causará mais dor.

            Foi nessa hora que outro vulto surgiu ao seu lado. Ele o reconheceu. Era Roxas. E ele disse:

–Sora, não precisa terminar assim – o olhar dele era sério – Eu continuarei aqui. Vou ajudá-lo a mantê-la sob controle. Eu juro.

–Também vou ajudá-lo – disse Seth – Tenho lutado ao seu lado este tempo todo, mesmo que você não perceba. E vou continuar fazendo isso.

–Mas... – a voz dele era um fiapo – Ela pode destruir tudo, e me usar para isso! Não... é melhor acabar com isso de uma vez. É mais fácil. E... eu não tenho medo.

–Você, que abraça o seu destino com as próprias mãos... – disse Shiva – Não precisa ser escravo desse destino. Não precisa simplesmente se deixar cair aqui. Você pode lutar, e pode viver.

–E, Sora... – nessa hora, Seth o encarou – Eu não tive a chance de dizer uma última vez que amava a Sellie. Se eu tivesse, não desperdiçaria. Kairi está lá, te esperando. Se quer um motivo para voltar, volte por ela!

            “Kairi...”. A menção do nome dela o enfraqueceu. Ele queria voltar para ela, claro que sim! Mas o risco era grande demais, até para ela mesma. E ele não podia suportar a idéia de ela se ferir. Mas – e isso era difícil de admitir – a proposta parecia mesmo muito tentadora.

            Ele tinha que admitir. Não queria morrer ali. E tinha medo disso. E se sentia egoísta por isso.

            Mas... ele merecia, não merecia? Depois de tudo...

–Senhora Shiva... – ele começou, hesitante – Você me ajudaria a manter Erinia sob controle?

–É claro que sim – ela respondeu, com um sorriso maternal – Não precisa lutar sozinho.

–Roxas? Seth? – ele perguntou, agora mais confiante – As coisas vão ficar um pouco mais loucas do que o normal daqui para frente. Acham que vamos dar conta de encarar isso?

–Pode apostar – Roxas abriu um sorriso – Não vamos deixar toda a diversão para você.

–Você tem a Keyblade, Sora – Seth também sorriu – O que quer dizer que ficarei ao seu lado.

            Sora os encarou. Os olhares deles estavam cheios de determinação.

            Eles eram parte dele. Então, talvez fosse melhor confiar neles.

–Você ainda não irá despertar – disse Shiva – Seu corpo ficou muito debilitado, e precisa de repouso. Continue dormindo, um pouco mais... Descanse... você irá precisar para o que virá...

            E, então, foi como se ele flutuasse.

            Era como um imenso oceano, sem fim, para nenhum dos lados. E as águas levavam seu corpo gentilmente, como se fizessem parte dele. Era como se elas se fundissem ao seu sangue, ao seu corpo... como se ele se tornasse aquelas águas. Era uma sensação agradável, revigorante. Ele apenas se entregou ao momento, deixando-se fazer parte dele.

            E, então, o próprio tempo desapareceu.

            E, em seu lugar, só restou silêncio e paz.

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            Os dias se arrastavam, lentos e incertos.

            Sora continuava desacordado e fraco. Apesar de finalmente ter começado a responder aos tratamentos e seus ferimentos darem os primeiros sinais de que iriam cicatrizar, ele ainda não acordava. Riku, Leene, Kairi, Donald e Goofy se alternavam em vigília, expulsando uns aos outros da enfermaria de tempos em tempos.

            Enquanto não estava com Sora, Riku pesquisava na biblioteca do templo. Deveria haver alguma coisa para expulsar a bruxa sem que ela recuperasse todo o poder! E ele pesquisava, e procurava, e perguntava para todos os que encontrava, mas não conseguia encontrar nenhuma pista que o ajudasse. Tudo o que encontrava eram mais e mais enigmas.

            Havia uma grande movimentação em Crystal Fortress. As sacerdotisas do Templo de Shiva trabalhavam a todo vapor para restaurar e purificar a cidade da superfície. A população da cidade também ajudava na restauração e reconstrução, e tanto a superfície quanto o subterrâneo viviam movimentados, com pessoas, veículos, naves e chocobos deslocando-se de um lado a outro.

            Foi num dia desses em que Riku decidiu ir um pouco à superfície para respirar e espairecer. O sol brilhava forte, o que tornava os prédios brancos de mármore de Waterfall City ainda mais belos. Agora, porém, não era a beleza etérea e quase fantasmagórica de antes. Não. A cidade, aos poucos, voltava a despertar. Havia movimento, havia vida. Aquilo deu a ele uma sensação de paz que não sentia há muito tempo, enquanto a brisa afastava seus cabelos do rosto.

–Ei, Riku! – uma voz, porém, fez com que a paz desse lugar a um sentimento de irritação – Era com você mesmo que eu queria falar. Tem um minuto?

–Zell – a voz dele tinha uma nota educadamente disfarçada de hostilidade. Zell passava pela rua naquele momento, montado em um chocobo que puxava uma carroça com tábuas. Ele ainda tinha uma faixa enrolada na cabeça, por causa da luta – O que você quer?

            Ele não respondeu imediatamente. Em vez disso, apeou do chocobo e parou ao lado dele, sem encará-lo. Seus olhos estavam fixos em pedrinhas no chão, enquanto ele finalmente tomava coragem e dizia, com a voz baixa:

–Eu quero pedir desculpas...

–O quê? – Riku ergueu uma sobrancelha – Do que você está falando?

–Eu agi como um idiota – ele parecia lutar consigo mesmo para dizer aquilo – Fui estúpido, e egoísta. Magoei a Leene com isso, e fui injusto. Você é um cara legal – ele abriu um sorrisinho – Sei lá... o pessoal me contou o que aconteceu antes de eu chegar. Você foi muito corajoso...

–Se eu fosse corajoso, teria te dado um soco na primeira vez que tive a chance – então, Riku riu quase contra a vontade – Além do mais, todos nós lutamos. Todos nos arriscamos.

–Mas você esteve ao lado da Leene quando ela precisou de você – observou Zell – E ela escolheu estar ao seu lado, também. Sabe, eu vi o jeito que ela te olhava. Na verdade, acho que percebi isso desde quando vocês chegaram aqui, mas fingi que não vi nada porque fiquei com ciúmes.

            Ele parou um instante, uma expressão surpresa no rosto. Ele parecia não acreditar que realmente estava dizendo aquelas coisas.

–Eu também agi como um imbecil – murmurou Riku – E também fiquei com ciúmes. Mas... acho que também quis fingir que não era verdade. Me desculpe...

–O quê? – então, Zell recuperou o tom zombeteiro – Eu ouvi direito mesmo? Pode repetir mais alto?

–É melhor você não forçar a barra – Riku sorriu, mas havia algo feroz em seu sorriso.

–Me desculpe, também – disse Zell, agora sério – Eu fui muito cego. E muito estúpido. E você é um cara de sorte, sinceramente – ele sorriu outra vez – Leene é uma em um milhão. Mas – ele acrescentou, num tom debochado – É melhor você cuidar muito, muito, muito bem dela. Porque, se partir o coração dela, eu juro que quebro suas pernas.

–Combinado, então – Riku acenou com a cabeça – Pode deixar.

            Eles ficaram em silêncio. Mas, dessa vez, não foi um silêncio tenso e hostil como das outras vezes. Era um silêncio de respeito mútuo. Ele não teria a pretensão de chamar aquilo de uma amizade nascente, mas, pelo menos, aquilo marcava o fim da troca de farpas entre eles. E isso já era muito bom.

–Ei, tô vendo você levar essas tábuas... quer ajuda? – Riku decidiu mudar de assunto.

–Bem, a gente tá reformando a praça central. Você pode ir lá nos dar uma mão?

–É claro! Não sei se vou ser muito útil, mas acho que não vou atrapalhar muito se vocês me colocarem para carregar as ferramentas.

–Ei! Ah, então vocês estão aí! – então, Yuffie surgiu no final da rua e acenou, correndo na direção dos dois – As meninas prepararam doces para o pessoal que está trabalhando na praça. É melhor vocês irem até lá ou os outros vão comer tudo!

–Tá bem, Yuffie, tá bem! – Zell deu uma risada alta. E Riku pôde perceber um brilho diferente nos olhos dele. Diferente, mas ainda assim... familiar. Ele tinha que admitir, os dois combinavam.

            E, então, os três foram, juntos, na direção da praça central, sob a luz do sol. As coisas mudavam, lentamente, em pequenas doses. Mas mudavam na direção de dias mais luminosos. Dias mais luminosos... e mais felizes.

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            E, então, numa noite, Sora ouviu uma voz em meio à água.

            E, com essa voz, lentamente, ele foi tomando consciência de quem era, e de onde estava. Ele foi aos poucos se lembrando de como era ser. E a consciência ia tomando forma, aos poucos...

–Desperte do teu sono, minha criança – a voz era calma, mas firme – Está na hora de despertar.

            Seu corpo formigava. Ele o sentia tão intensamente...

–Desperte do teu sono, criança destinada – a voz continuava – Levante-se! Procure! Todo um mundo o aguarda, um mundo que precisará de você.

            “Um mundo... me aguardando...”, ele pensou. “Preciso... lutar...”

            “Agora...”, e então a voz parecia soar em sua cabeça. “Está na hora. Respire.

            E, de repente, foi como se algo o puxasse de dentro da água. Era forte, e rápido.

            E, então, o choque entre água e ar. Foi estranho, doloroso. Mas quando encheu os pulmões de ar pela primeira vez, foi como um sopro de vida.

            Foi nesse momento que tudo começou a girar e a sumir.

            E, quando se deu conta, estava deitado numa cama macia demais. Havia o som de pessoas murmurando ao seu redor. E sua boca estava terrivelmente seca. Havia algo colado à sua pele, e seu corpo doía horrivelmente. Mesmo assim, ainda não abriu os olhos.

–Onde eu estou? – ele murmurou, com a voz rouca e baixa – E... quem está aí...?

            Imediatamente, os murmúrios pararam. E uma voz conhecida disse, abismada:

–Sora... você está...

–Kairi? – ele abriu os olhos. A princípio, a luz forte transformou tudo em um borrão indefinido, mas aos poucos as coisas foram entrando em foco – O que houve... comigo?

            Suas memórias estavam confusas, e ele não se lembrava de muita coisa. Só se lembrava que houve uma batalha, mas o que realmente aconteceu ainda era um mistério.

–Sora? Sora! – então, ela saltou sobre ele. Aquilo fez com que a mente de Sora entrasse nos eixos à força. Ela o abraçou com força, rindo entre lágrimas – Ah, graças a Deus você acordou! Eu fiquei tão preocupada, achei que você iria...

–OUCH! Saia de cima de mim, Kairi, está doendo! – ele começou a berrar. Ela havia atingido alguns ferimentos dele (ou pelo menos o que ele supôs que eram ferimentos, pela forma como eles começaram a doer quando ela os tocou) quando saltou sobre ele. Imediatamente, ela se controlou, e saiu de cima, corando furiosamente. Com aquela imagem, Sora pôde apenas sorrir e dizer – Também estou feliz em te ver, Kairi. Mas... tente não me fazer apagar outra vez, está bem?

–Está bem – ela disse, rindo, enquanto enxugava as lágrimas teimosas com as costas da mão – Mas é que eu estou tão feliz... tão feliz...

–Não tinha mais alguém aqui? – ele perguntou, tentando se sentar. Isso foi um erro. Ele sentiu uma fisgada violenta na barriga, fazendo seu rosto se contorcer em uma careta de dor. Ele tocou a barriga, e percebeu dois imensos curativos, ainda com os pontos – Argh... péssima idéia!

–Não se mexa, ou os pontos vão soltar! – Kairi o censurou – Era a Leene, mas... ué, ela estava aqui há um segundo atrás...

            Sora ainda tocava os pontos. As lembranças começavam a voltar, e a ficar mais claras. A luta, e o ferimento... e a última lembrança de Seth... a Keyblade...

            Então não era mentira, Erinia realmente estava ali dentro. Aquilo o fez engolir em seco.

            Mas, de repente, tudo isso foi varrido da sua mente. Porque Leene irrompeu pela porta, um sorriso imenso no rosto. E ela não estava sozinha. Na verdade, ela parecia ter passado aquele tempo convocando todos os que pôde encontrar pelo caminho para vê-lo, porque naquele momento estava acompanhada por Riku, Donald, Goofy, o rei Mickey e Lulu.

–Leene, você está ciente de que a enfermeira-chefe terá um colapso se vir que você trouxe tanta gente assim para a enfermaria, não é? – protestou Kairi – Além do mais, está tarde!

–Que se dane, o Sora acordou, e isso é algo a ser comemorado! – ela disse, efusiva – Seu imbecil, nós quase morremos de preocupação por sua causa! Mas estou tão feliz por você estar bem... tão feliz que poderia até pular em cima de você!

Por favor, não faça isso! – ele implorou, com uma careta – Kairi já me deu uma amostra disso e eu não quero repetir a dose!

            Todos riram, e então começou uma conversa animada. Todos faziam planos para quando Sora estivesse completamente recuperado, e debatiam idéias e coisas que poderiam fazer, depois que ele finalmente saísse da enfermaria. Apenas uma pessoa permanecia em silêncio. Riku. Ele observava a cena com um olhar de alívio profundo, mas também havia algo triste no olhar dele... algo que Sora percebeu. E foi isso que o fez dizer:

–Eu gostaria de conversar em particular com o Riku por um instante, se não se importam.

            Os outros concordaram, e saíram. Riku não se moveu, e ficou parado no mesmo lugar e com a mesma expressão no rosto. Eles ficaram em silêncio por um instante, até que ele próprio o quebrou, dizendo:

–Fico feliz por você estar se recuperando, Sora. Em breve, poderemos voltar para casa e...

–Por favor, Riku, pare – Sora o cortou – Vá direto ao assunto.

–Direto ao assunto... nossa, eu queria ter mais tempo para pensar no que dizer, quando essa hora chegasse – ele deu um sorrisinho amargo – Então... eu vou direto ao assunto. É sobre o que vi no Claustro de Testes. E sobre... o que aconteceu naquela noite em que lutamos contra Erinia.

–Do que você está falando?

–Eu não devia falar dessas coisas, você acabou de acordar...

Fale de uma vez, droga!

–Está bem, está bem... – Riku mordeu o lábio – Eu vi... no Claustro... que provavelmente... teria que lutar contra você. E você absorveu a essência de Erinia. Tenho medo de um dia ela assumir o controle. Acho que aquela visão falava desse momento. E, se isso acontecer... não sei o que farei.

            Sora o encarou. Os olhos dele estavam cheios de dor.

–Está tudo bem – ele disse, suavemente – Sei que essa é uma possibilidade, também. Se ela sair do controle... se eu sair do controle... você irá me deter, não importa o que tenha que fazer para isso. Sei que é uma carga imensa para colocar em seus ombros, mas você é o único em quem posso confiar para isso – os olhos de Riku cresceram de choque e revolta, mas Sora não o deixou falar – Por favor, eu imploro. Não recuse. Somos amigos, não somos? Então, por favor... prometa que você não me deixará machucar ninguém.

–Como pode pensar tão friamente nisso? – a voz de Riku sumiu – Como pode... aceitar isso tão prontamente? Por que você não grita, não xinga, não joga alguns copos nas paredes e diz que o mundo é injusto ou algo assim? Droga, por que você tem sempre que ser o cara legal e altruísta só pra fazer com que eu me sinta pior? – ele escondeu o rosto nas mãos, e ficou em silêncio um momento.

            Sora não pôde deixar de sorrir com a última afirmação dele. Então era daquela forma que ele o via? Era bom saber daquilo, apesar de fazê-lo parecer meio idiota.

–Eu aceito – disse Riku, por fim – Mas... pode ter certeza de que, antes disso, irei mover mundo e fundos para te ajudar. Não vou desistir de você tão facilmente, então é melhor fazer o mesmo.

–Está bem – Sora sorriu. De certa forma, ele contava com aquilo. Agora ele entendeu. Não precisava carregar aquele fardo sozinho, pelo menos não enquanto houvesse ao seu redor pessoas que se dispusessem a ajudá-lo – E... muito obrigado. Por tudo. Por estar lá, naquela noite.

–Não me agradeça – Riku deu de ombros – Estamos juntos nisso até o fim, lembra?

            Os dois se encararam, decididos. Até o fim. E aquele era apenas o início.

–Bem, eu não devia dizer isso... – então, Riku mudou de assunto, se espreguiçando – Mas eu ouvi alguém dizer para alguém que, quando você acordasse, haveria uma grande festa para reinaugurar o Mooncastle, sabe? Um baile, pelo que sei. Coisa elegante mesmo.

–Legal, acho que... ai, droga, isso é péssimo! – grasnou Sora – Um baile? Elegante? E eu num lugar desses? É um pesadelo, só pode ser...

–Por que isso agora? – Riku deu uma risada.

–É que eu fico péssimo em roupas de gala... e eu não sei dançar... e não quero parecer um idiota na frente da Kairi... não quero estragar tudo, não agora!

–A Kairi já o viu parecer um idiota de todas as formas possíveis e imagináveis ao longo desses anos, então não há com o que se preocupar – o outro riu mais alto – Ela já está até acostumada, se quer saber.

–Você não está ajudando... – o primeiro gemeu – Acho que vou voltar a ficar em coma.

            E então, os dois riram. E, naquelas brincadeiras tolas, algo ficou claro.

            O caminho dali em diante seria árduo, e provavelmente mais doloroso do que antes.

            Mas, mesmo assim – e essa era a parte surpreendente – ter esperança não parecia algo tão absurdo. Pelo contrário, era algo plausível, necessário. Eles podiam ter esperança. E eles precisavam disso.

            Ainda havia coisas pelas quais lutar. Coisas com as quais sonhar.

            E isso era algo que eles não esqueceriam nunca.


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